Elis Regina, segundo Cesar Camargo Mariano

Elis Regina e Cesar Camargo Mariano durante os ensaio do espetáculo Transversal do Tempo, em 1977 (foto: Hélio Campos Mello)
Elis Regina visita o então marido, Cesar Camargo Mariano, durante ensaio do espetáculo São Paulo.Brasil que resultou no álbum de mesmo nome, um dos mais cultuados da discografia de Cesar  (foto: Hélio Campos Mello)

Destaque da quarta edição do festival Música em Trancoso  e, desde o início, um dos curadores de duas das oito noites do evento encerrado no último dia 14, na idílica cidade do litoral Sul baiano  o pianista, compositor, arranjador e produtor Cesar Camargo Mariano concedeu extensa entrevista à reportagem de Brasileiros. A íntegra da conversa será publicada em nossa edição de abril. No entanto, antecipamos hoje parte do conteúdo para celebrar a memória da cantora Elis Regina, sua ex-mulher, que completaria hoje 70 anos.

Radicado nos Estados Unidos desde 1994, há mais de cinco décadas Cesar mantém extensa e renomada carreira autoral, liderando grupos como Sambalanço Trio e Som Três  artífice de luxo da fase mais popular de Wilson Simonal , em álbuns solo e de duetos com outros grandes artistas, como Hélio Delmiro, Nelson Ayres e Romero Lubambo. Claro, seu nome também estará indissociavelmente ligado à trajetória de Elis, nos arranjos e produções de uma série de álbuns e espetáculos históricos, como Falso Brilhante, Transversal do Tempo e Saudade do Brasil.

Durante a conversa aprazível de quase três horas, realizada na pousada em que Cesar esteve hospedado, o pianista defendeu que, como os filhos, a cantora Maria Rita e o cantor Pedro Mariano, é a favor da liberdade de expressão para os biógrafos do País. O comentário veio a propósito da recém-lançada biografia Nada Será Como Antes (editora Master Books), do jornalista Julio Maria que, segundo Cesar, teve passe livre para pesquisar e esmiuçar livremente os temas que pretendia abordar sobre a trajetória luminar da saudosa Pimentinha. No entanto, apesar de reprovar o cerceamento imposto por artistas como Roberto Carlos, sensato, Cesar demonstrou indignação com abordagens que enviesam sempre por questões polêmicas, como a trágica morte de Elis.

A seguir, ele revela também por que, apesar de ainda compor com frequência, preferiu deixar em segundo plano a carreira autoral para privilegiar o papel de produtor e arranjador.   

Brasileiros – Em 2011 foi publicada sua autobiografia, Solo – Memórias de Cesar Camargo Mariano. Mesmo longe do País, você deve saber das polêmicas envolvendo a publicação de biografias por aqui. O que pensa sobre isso?

Cesar Camargo Mariano – As biografias são mais que necessárias. Defendo que elas têm de existir cada vez mais, mas devo admitir: às vezes, fico chateado porque em alguns filmes, documentários e cinebiografias os personagens são abordados sem a menor propriedade. Muitos vêm me perguntar sobre as coisas que foram feitas sobre a Elis. Geralmente respondo: “Não li, não vi e não quero saber”. Digo isso, não por que eu queira agir na base do “não vi e não gostei”. Pelo contrário. A questão é: no caso da maioria das coisas feitas sobre ela, não quero nem saber no que resultou porque fui abordado antes da obra ser feita, e a própria abordagem me dá uma visão do que virá pela frente. As pessoas vêm me pedir depoimentos sobre ela e os assuntos recorrentes são nosso casamento e drogas, e não a nossa relação artística. Mesmo assim, insisto que as biografias tem importância histórica e são da maior importância. Elas têm de existir até mesmo para manter preservada a imagem do artista, pois, no caso da música, nem sempre os discos são tão perenes quanto uma biografia.

A propósito, você fez alguma ressalva ao trabalho do Julio Maria, jornalista que acaba de publicar a segunda biografia da Elis, Nada Será Como Antes?

Ressalva é uma coisa, e posso tê-las, mas cerceamento e proibição são coisas que eu nunca vou defender. Censurar o trabalho do Julio é algo que eu e os meninos (Pedro e Maria Rita) jamais faríamos. Agora, concordar com tudo que as pessoas escrevem, ou não, é outra coisa. Em 2008, o Nelson Motta mandou para mim o trechinho de um filme que ele ajudou a produzir para a Rede Globo sobre a Elis (o especial Por Toda Minha Vida). Nós nos conhecemos desde moleque e sempre gostamos das mesmas coisas: curtimos as mesmas músicas, os mesmos filmes, os mesmos livros e as mesmas peças de teatro. Sempre tivemos grande afinidade. No trecho do filme que ele veio me mostrar havia uma cena que ele comentou: “Você não acha legal essa cena?”. Disse a ele: “Bicho, dramaticamente está interessante, mas não me peça para dizer se aprovo a cena, porque ela não diz a verdade”. Ele insistiu: “Eu sei que não é verdade, mas a cena vai fazer um belo gancho para a próxima. Ninguém vai perceber”. Respondi: “Ok, você é livre para fazer o que bem entender, mas não me peça aprovação. Posso até achar lindo, na hora em que eu vir o filme completo, mas não vou concordar com uma inverdade. Faça o que bem quiser”.

A valorização dramática de aspectos do personagem não pode ignorar a verdade…

Exato. É claro que a ação de um filme ou de um livro tem de empolgar as pessoas, mas calma lá… Comecei a tocar piano aos 13 anos, quando ganhei meu primeiro instrumento e meu pai teve um infarto quando me viu tocar (Miro, pai de Cesar, era músico e praticante do kardecismo, ao vê-lo tocar intuitivamente o instrumento, ele acreditou que o filho havia incorporado algum gênio da música, infartou e somente teve alta 48 dias depois). Eu poderia dramatizar isso da forma que eu quisesse. O drama é o infarto do meu pai, e é ele que enfatiza a historia, mas estou falando de uma história verdadeira. É errado e antiético criar um drama fictício para valorizar uma história e, com isso, vender mais. No caso da Elis, foram contadas muitas inverdades e mesmo as coisas que eram verdadeiras foram focadas apenas para gerar polêmica. Em minha opinião, o que dói mais é que esses estragos são irreparáveis. São essas merdas todas que vão ser sempre lembradas. Claro, existe muita gente que sabe que a Elis foi uma grande cantora. Muitos têm essa opinião formada. Mas alguém procurou saber porquê ela gravou É Com Esse Que Eu Vou (marchinha de Pedro Caetano, ouça)? Alguém procurou saber o que passava naquela cabeça premiadíssima? Nem mesmo eu e uma porrada de gente que a conheceu de perto conseguimos entender como é que foi existir uma cabeça como a dela. Mas ninguém fala disso. Alguém sabe por que ela gravou É Com Esse Que eu Vou, uma marchinha de carnaval? Se as pessoas soubessem por que, se essa menina que está agora nos servindo café e água, a Aline, se ela soubesse disso, tudo mudaria. Fico triste porque ninguém fala disso e acho que, sim, podemos falar das coisas polêmicas, mas, por favor, vamos falar também dessas coisas. Elis foi perseguida ideologicamente por ter sido obrigada a cantar nas Olimpíadas do Exército, em 1972, mas quando ela gravou O Bêbado e a Equilibrista, que se tornou o hino da abertura política, ninguém foi dizer que, na coxia dos shows, havia um monte da de militares com metralhadora na mão. É Com Esse Que Eu Vou foi gravada por ela por causa de situações como essas. Lembro que estávamos em casa e ela estava na cozinha fazendo um peixe recheado. Eu trabalhava no piano, pois estava montando os arranjos do novo disco e, na cabeça dela, um disco era como um filme: deveria ter começo, meio e fim, precisava contar uma história, uma música tinha de ter afinidade com a outra. Era nesse momento que ela se tornava autora, sem tocar nenhum instrumento. Era aí que ela imprimia sua personalidade – e porque ninguém explica isso para a Aline, que é uma grande fã da Elis?!

E por que ela decidiu gravar É Com Esse Que eu Vou?

Faltava uma música para fechar o disco, e o assunto do LP era o que estávamos vivendo, a grave situação do País, naquele momento difícil da ditadura. Elis lá cozinhando o peixe, as crianças brincando, de fraldas, no chão, de repente, ela dá um grito: “Achei a música! Achei!”. E eu: “E qual é a música, Elis?”. Ela diz: “É Com Esse Que Eu Vou”. Eu respondo: “Como assim?! Uma marchinha de carnaval?!”, daí ela diz: “Você é burro mesmo, César! Você já prestou atenção na letra?! ‘É com esse que eu vou até o fim / É com esse que eu vou sambar até o fim / … Pode vir senador, deputado’”. Ela foi recitando a letra, enfática, batendo a mão na mesa, com raiva e dizendo: “É com esse que eu vou, o Brasil, vou com ele contra qualquer um desses filhos da puta”. Então, o que é isso se não uma cabeça absurda?! Digo isso, não para falar dela como pessoa, mas como artista. Isso me emociona até hoje: a enorme competência e sensibilidade que ela tinha. Era algo muito bonito de se ver. Peço milhões de perdões, mas, hoje, não consigo achar nenhum artista que tenha essa força, e é isso que precisa ser mostrado.

Cesar reverencia o contrabaixista Sidiel Vieira, no festival Música em Trancoso
Cesar reverencia o contrabaixista Sidiel Vieira, no festival Música em Trancoso (foto: Jean de Matteis)

Você já tinha uma carreira consagrada de compositor e líder de grupos históricos como o Sambalanço Trio e o Som Três. De certa forma, suas colaborações artísticas com Elis acabaram desacelerando uma trajetória autoral das mais brilhantes. O que pensa disso?  

Na música, o coadjuvante é tão importante quanto no cinema. Ele tem de ser muito generoso, pois é fundamental para o sucesso do intérprete. Sou apaixonado por isso e é por isso que até hoje me dedico a ser arranjador e produtor. Acompanhar o artista é uma arte que não pode ser descuidada, muito menos relegada a um posto menor. O primeiro show que fiz com a Elis, em 1971, no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro, tinha a direção do Ronaldo Bôscoli, que já havia se separado dela. Ela havia mudado toda a banda e o Ronaldo pediu para eu seguir com a direção artística do espetáculo. Eu sempre fui muito amigo dele e do Miéle e, segundo ele, ela só confiava em mim para assumir a direção. Ronaldo havia criado um cenário que, da metade para trás, havia tapumes cenográficos e os músicos ficavam encobertos. A banda era formada pelo Hélio Delmiro, o Paulinho Braga, o Luizão Maia e eu. No meio de um dos ensaios cismei com um acorde, chamei o Helio e disse: “Helinho, vamos trabalhar esse acorde que não está legal. Nessa hora a Elis costuma segurar mais a nota e a gente precisa encontrar uma solução para ela poder cantar dessa forma”. A conversa durou a tarde toda e o Ronaldo, impaciente, andando para lá e para cá, veio se queixar: “César, para com isso! Que obsessão é essa?! Vocês estão a tarde inteira nesse acorde, ninguém vai ouvir essa porra desse acorde, que merda é essa?! Vamos passar para outra”. Disse a ele: “Ronaldo, espera aí, bicho. Isso é muito importante”. Enquanto isso, a Elis estava alheia a tudo, num cantinho do teatro fazendo tricô, e eu disse ao Ronaldo: “Bicho, o cara que está lá no fundo, quando ouvir esse acorde perfeito, ele nem saberá disso, mas é esse acorde que vai provocar nele um arrepio no coração. Esse acorde, do jeito que eu e Helinho estamos pensando, vai fazer com que Elis sinta-se confortável na interpretação e essa emoção vai atingir o público”. A música era Atrás da Porta, do Chico Buarque. Ronaldo insistiu em dizer que eu estava maluco, mas acertamos tudo e chamei a Elis para passar a música. Quando chegou na hora do acorde, que é bem no trecho “Dei pra mal dizer o nosso lar…”, ela entoou a frase, os olhos dela se encheram de lágrimas e ela não parou de chorar. Então, ninguém sabe o que está por trás disso, mas existe uma coisa, que mexe até mesmo com os mais durões dos seres humanos: a sensibilidade. Por isso é importante não menosprezar o papel do acompanhante. Ele é como um alfaiate, um arquiteto. É ele quem procura a precisão das coisas.

MAIS: 

Em 2011, no lançamento de sua autobiografia, Cesar comentou cinco álbuns clássicos de sua carreira autoral (leia).

Em 2012, na ocasião dos 30 anos da morte de Elis Regina, que coincidiu com os 70 de nascimento de Nara Leão, publicamos a reportagem Elis e Nara, que trata de alguns caminhos cruzados nas trajetórias das duas cantoras. Leia.

Leia também, na coluna Quintessência, a história do primeiro álbum do Sambalanço Trio, combo de samba-jazz formado, em 1963, por Cesar, Airto Moreira e Humberto Clayber.   

Veja Elis Regina interpretar Atrás da Porta, de Chico Buarque, em um especial da Rede Bandeirantes, em 1973: 


Comentários

4 respostas para “Elis Regina, segundo Cesar Camargo Mariano”

  1. Grande Artista… Elis chegou ao auge artístico com a parceria em todos sentidos com o César… Digo, a Elis o amava e o César a ama até hoje… Isso é de alma, espírito

  2. o Cesar Camargo é um arranjador brilhante. Para min, Elis teve o auge musical enquanto estava casada com ele… queR minha opinião verdadeira?…vejo entrevistas do Cesar e quando ele fala dela, os olhos brilham…desculpe a esposa atual, mas a ELIS REGINA É o grande amor da vida dele, assim como ele é o grande amor da vida dela… não precisa ser medium para notar… separados nesse plano, mas isso é só um detalhe…TÁ DITO!!!!

  3. Avatar de Lais de Castro
    Lais de Castro

    Por isso assino a Brasileiros. Uma revista que mostra o que ainda há de bom no Brasil. A revista do quanto melhor, melhor. Fui repórter por 40 anos, entrevistei Elis dezenas de vezes. Sempre tive loucura pelo canto e pela voz da baixinha e nunca yive nenhum entrevero com ela, mesmo sendo repórter. Bastava ter bom senso para entendê-la. Genios são difíceis. Espero com ansiedade a revista de Abril. E esse César, genio sem vaidade, o maior arranjador e pianista do Brasil depois do Tom. E como criou os filhos! Todos são do bem!

    1. Laís,

      O prestígio de leitores como você, que tanto se dedicou a nosso ofício, é para nós uma honra.
      Agradecemos sua manifestação de apoio.

      Abraços de toda a redação.

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