O milagre da criação

No início existiam apenas trevas, depois se fez a luz e começaram a ser criados os outros elementos e seres. Essa versão simplista, criacionista, talvez não sirva para o homem, mas, com certeza, se encaixa perfeitamente para a criação teatral.

No teatro, e especialmente em In on It, a luz, de repente, desponta. Nesse momento, surgem os atores. São criaturas e também personagens. Essa geração mínima inicial vai se desenvolvendo em vários personagens. Alguns com conteúdos que se assemelham aos da gênese. Outros com anseios opostos, para que todos, juntos, possam evoluir.
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O mais curioso é que o próprio autor, o canadense Daniel MacIvor (que também desenvolveu as carreiras de ator, roteirista e diretor de teatro e cinema), fala por intermédio de um dos personagens, uma criança: “Se Deus teve apenas dois filhos, com quem eles se relacionaram?”. A ingenuidade infantil gera o questionamento: como chegamos a ser tantos?

No teatro, isso se resolve com mais tranquilidade e os personagens se reproduzem conforme a necessidade de conhecimento dos próprios autores. Multiplicam-se, e esse número pode ser infinito enquanto não resolvermos as questões da alma humana.

A dramaturgia de MacIvor é instigante e favorece o jogo cênico que vai se desenvolvendo de maneira desconstruída, mas, ao mesmo tempo, extremamente ordenada e que ousa e consegue contar a história de cada um de nós.

Ressonância magnética
O fato de os dois personagens em cena serem gays não é um dado fundamental, mas remete mais uma vez à criação e não à procriação. Sem estereótipos, a história de amor mal resolvida entre eles permite o distanciamento ético e estético dos dois, deixando claro mais uma vez que somos um e como tal temos de nos reconhecer.

Enrique Diaz, o diretor que tem nos oferecido na bandeja algumas das mais belas obras que o teatro brasileiro já produziu nos últimos anos – como a Gaivota (tema para um conto curto) e Ensaio.Hamlet -, abraça o texto de MacIvor e com a mão segura caminha, passo a passo, com os atores. É possível senti-lo em cena como o terceiro elemento. Sua concepção cênica para In on It é delicada e, ao mesmo tempo, tão presente, fazendo a plateia se deleitar e respirar profundamente a cada mudança de ação, que são muitas. Tudo é simples e preciso como em um processo de tatuador: a cada nova cena, ele prepara o ator; em seguida, desenha a ação e, com a mão certeira, imprime as imagens e as cores que perpetuarão em nossas retinas.

O trabalho dos dois atores, Emílio de Mello e Fernando Eiras, é estonteante e se, por vezes, envereda pelo mais deslavado humor, em outras leva a plateia à mais profunda emoção. Por meio deles, os homens e mulheres que interpretam são fatiados em camadas, como em um aparelho de ressonância magnética, ou tomografia computadorizada. Ao público é entregue apenas a essência. Embora somente Fernando Eiras tenha sido indicado ao Prêmio Shell 2009, no Rio de Janeiro, Emílio de Mello atua nos limites da preciosidade do jogo cênico e vai além, realimentando a atuação do parceiro para que também atinja a perfeição.

Pela amostra da primeira grande estreia do ano, 2010 promete ser um grande ano para o teatro. Resta ainda informar que a expressão In on It poderia ter várias leituras, mas o uso mais recente da expressão pode ser traduzido por “estar por dentro”.


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