O tênis no Brasil parece viver de espasmos repentinos, surtos solitários de superação e de virtuosismo, o mais recente dos quais foi a – surpreendente, para quem não é do ramo – vitória de Tiago Fernandes, 17 anos, alagoano de Maceió, em um torneio de Grand Slam: o Australian Open, categoria juvenil (até 18 anos).
Um triunfo e tanto do Tiago, já que antes dele só Maria Esther Bueno (Wimbledon, oito vezes; US Open, quatro; Austrália e Roland Garros um título em duplas), Gustavo Kuerten (Roland Garros, três vezes) e Thomas Koch (duplas em Wimbledon) frequentaram, sob a bandeira verde-amarelo, o Olimpo dos campeões dos torneios de elite.
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Tiago colhe as glórias e revive a dúvida, reiterada pelo histórico de seus predecessores: será ele um fenômeno de exceção, mais um solitário iluminado da raquete? Ou exprime, além de seu talento pessoal e intransferível, a evolução de um esporte que, afinal, muito concretamente, vê hoje um Thomaz Bellucci, 22 anos, paulista de Tietê, como 35o na lista da Associação de Tênis Profissional (ATP) – a entidade internacional do tênis?
Com Bellucci, Marcos Daniel (89o do mundo), Bruno Soares, Ricardo Mello, Ricardo Hocevar, Thiago Alves, João Souza (o Feijão), o Brasil já terá uma geração para fazer bonito nas quadras? Ou ainda engatinhará miseravelmente atrás da, por exemplo, Argentina, ou mesmo do Chile, sempre tão pródigos na hora de rechear o ranking dos melhores tenistas?
Roberto Marcher, filósofo da bolinha e poeta do backhand, exerceu seu otimismo crítico, em parceria com Gianni Carta, ao resgatar, nos geniais voleios de esquerda do carioca Ronald Barnes, Koch, e mais um elenco do primeiro time das quadras, uma história que deixa o Brasil bonito na fita (O Tênis no Brasil, Editora Códex, 2004). Agora, Roberto Marcher exerce, sob o guarda-chuva da Koch Tavares, esse mesmo otimismo crítico à frente de uma novidade que pode, sim, dar à nova geração uma consistência de jogo e um upgrade internacional.
A ideia é simples, aparentemente banal: a pré-temporada. Toda grande potência do tênis sabe o que é isso. Lá pelo final de outubro, início de novembro, as principais competições da raquete vão minguando. Um tenista como Thomaz Bellucci, de 22 anos, que venceu seu primeiro torneio de ATP em Gstaad no ano passado e fez o americano Andy Roddick, ex-número 1 do mundo, suar a camisa no Australian Open, em janeiro, chega a disputar 30 competições por ano, de Pequim a Santiago. Ganha então suas férias merecidas, mas, antes mesmo do Natal, já de olho no início da temporada, entra no mais minucioso, rigoroso e completo método de treinamento que um candidato ao estrelato das quadras pode aspirar.
“Imersão total”, conta Marcher. Médicos, fisioterapeutas, preparadores físicos, nutricionistas, sparrings e, claro, técnicos recepcionam um elenco de poucos e bons para um treinamento que começa às 7h30 com exercícios especiais de concentração e aulas de ioga, inclui no mínimo quatro horas diárias de quadra, muita sessão de ginástica e musculação, e se encerra na mesa do jantar, os pobres diabos dos tenistas clamando àquela altura por uma cama misericordiosa.
A Koch Tavares abriu esta que foi a primeira pré-temporada, em dezembro, no Hotel do Frade, em Angra. “É um hotel voltado para o tênis, tem todo tipo de quadra, dura, grama, saibro”, comemora Marcher, coordenador geral do evento. De mais a mais, havia a conveniência de ser ao nível do mar, assim como o primeiro Grand Slam do ano, o Australian Open.
“Com um corpo de especialistas à sua disposição, o tenista faz uma revisão da temporada anterior, aprimora os golpes fortes, trabalha o saque, corrige as deficiências”. Desta vez, fora profissionais de respeito como Thomaz Bellucci, Thiago Alves e Ricardo Hocevar, havia outros quatro tenistas da jovem guarda, todos eles muito promissores mas vivendo aquele crucial rito de passagem da fase teen para a maturidade.
“É nessa transição que muito talento se perde”, diz Luís Felipe Tavares, presidente da Koch Tavares, com a credencial de quem sabe o que fala. Afinal, Luís Felipe, o Ipe, foi um precoce fenômeno nas quadras (aos 16, já estava na equipe brasileira da Copa Davis enfrentando a Dinamarca) e tem as honras da unanimidade fora dela: foi ele quem, 37 anos atrás, com a Koch Tavares, inaugurou o circuito profissional de tênis no Brasil. Se não fosse a tenacidade empresarial do Ipe, nosso tênis seria mera brincadeira de diletantes (e, diga-se de passagem, foi ele quem inventou o beach soccer e profissionalizou o vôlei de praia, que enche o Brasil de medalhas nas Olimpíadas).
Sensibilidade também ajuda, claro. Marcher conta de uma peregrinação sua até Campos de Jordão, na Mantiqueira paulista, três anos atrás, à caça de determinado jogador que tinha acendido a luz verde na cabeça do patrão. “O Ipe me disse: ele deve ter 1,90 m de altura, é canhoto, saca que é uma beleza”. E lá foi Marcher descobrir – como fazem esses scouts de agência de modelo – uma promessa. O nome dele era Thomaz Bellucci.
Representado hoje pela Koch Tavares, o número 1 do Brasil saiu do semianonimato de 370o do ranking para o sonho muito próximo de, nas pegadas do Guga, chegar logo, logo ao top 10. Para isso é que serve uma preparação à moda da pré-temporada. Bellucci é um caso exemplar.
Técnica requintada, variedade de golpes, aquele “toque delicado” que Roberto Marcher foi buscar em San Juan de la Cruz, o Bellucci já tinha. Porém, era triste vê-lo falecer, subitamente, em partidas difíceis, mas que parecia ter sob controle. No Brasil Open de 2009, perdeu na final por 2 a 1 para o espanhol Tommy Robredo; tinha tudo para ganhar. Foi se recuperando ao longo do ano, chegou às semifinais de Estocolmo, passou à segunda rodada – vindo do qualifying – do Masters de Xangai e, na final do Torneio de Gstaad, seu primeiro título de primeira linha, venceu ninguém menos do que o suíço Stanislas Wawrinka, 24o do ranking.
O acompanhamento su misura que ganhou, além da atenção competente do técnico João Zwetsch, salvou Bellucci para o tênis e escancarou-lhes as portas do futuro. Muito do segredo de sua recuperação física atende pelo nome de Ronaldo Abbud. Mais do que médico, um cientista, um pesquisador, o doutor Abbud desvendou o mistério da fragilidade de Bellucci, a qual se manifestava numa brutal desidratação. Meia hora de jogo e o tenista já teria empapado três camisetas, não importa se a partida era em Melbourne ou em Cincinnati, no calor ou no frio. Ele tentava suprir com o reforço clássico de carboidratos e sais minerais.
Diagnóstico do doutor Abbud: Bellucci sofria de um problema na válvula que controla a insulina no corpo. Daí os súbitos surtos de moleza, exaustão. Ou seja, ele é um atleta atípico. A dieta receitada hoje é a lactovegetariana. Zero de carboidrato, muita proteína. Pelo bem ou pelo mal, Bellucci milita numa época do antigo esporte dos príncipes em que a força vale mais do que a elegância. Agora, ele, além de elegância, tem a força.
“Nosso tênis ganhou em estrutura e em musculatura”, festeja o grande campeão Luís Felipe Tavares. “Os patrocínios se consolidaram e a mídia despertou para o esporte, a cobertura dos eventos é total. Quando é que a gente poderia imaginar que um brasileiro campeão juvenil na Austrália iria virar instant celebrity com ampla cobertura do Jornal Nacional?” A propósito de apelo internacional, é bom dizer que o Brasil Open, que a Koch Tavares promove todos os anos em Sauipe, no início de fevereiro, teve este ano cobertura full time até da Al Jazeera. Tempos outros, bem mais magnânimos do que os de outrora, se você pensar que, certa vez, final dos anos 1950, a mais fina flor das quadras canarinhas teve apreendido na alfândega o troféu que abiscoitou em Wimbledon. Maria Esther Bueno, a “Maria Bueno” dos entusiásticos aplausos internacionais, a nossa Estherzinha, não conseguiu convencer a polícia que aquilo lá não era muamba, e sim objeto precioso e raro para o País se orgulhar.
Tiago Fernandes é, perdão, a bola da vez. Acabou de completar 17 anos, apresentou em Melbourne um repertório de surpresas, encarou na final Sean Berman, prata da casa, com uma serena maturidade e ainda fez o desaforo de fechar o jogo, na quadra central da Rod Laver Arena, com um petulante ace, um saque sem defesa. Por tudo, e ainda pela circunstância de treinar na clínica de Larri Passos, de Camboriú, Santa Catarina, Tiago ganhou de cara a fama de avatar de Gustavo Kuerten.
“O feito dele é importante”, concorda Luís Felipe Tavares. “Mas ele próprio já sabe que ainda não é hora de euforia. É na transição do juvenil para o profissional que muito talento se perde no caminho.” Tiago deve saber disso. Mesmo antes de ganhar Melbourne, ele havia sido convidado a subir direto para a chave principal do Brasil Open, em Sauipe. Por via das dúvidas, Larri Passos obrigou o campeão a disputar o qualifying, a chave dos iniciantes. Modéstia é um bom tempero para o talento.
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