Um marujo sobre rodas

Ele tinha 23 anos e trabalhava como tripulante de navios. O porto de Santos seria apenas escala de uma viagem de rotina. O marujo Emilio Zambello, no entanto, decidiu ficar. Algo lhe dizia que valia arriscar. Então, arrumou a mala e jogou as amarras no Brasil. “Falei pra mim mesmo: aqui está o futuro.”

De fato, Emilio “fez a América”, como se dizia naquele ano de 1949. Radicado em São Paulo, foi sócio em uma oficina de automóveis, em uma importadora de veículos italianos e também em uma fábrica de rodas. Em miúdos, ele se deu bem. Tudo isso em paralelo a uma longa e vitoriosa carreira nas pistas. “Foram 150 provas”, contabiliza. “Comecei em 1954 e só parei em 1971. Faça as contas, 17 anos nas corridas.”
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Aos 84 anos, muito bem vividos, Emilio preside o Automóvel Clube de São Paulo, onde fez questão de reativar a tradicional prova 500 km de Interlagos, criada 52 anos atrás. Vale lembrar: quando venceu essa longa e duríssima disputa pela última vez – na categoria grupo 5 -, já estava à beira dos 45 anos e em vias de pendurar o capacete. A proeza foi ainda maior, registre-se.

Lembremos da façanha. Corridas longas, como se sabe, são disputadas por duplas ou trios de pilotos, que se revezam ao volante no decorrer da prova. Daquela vez, no entanto, Emilio correu sozinho, o que exige “muito braço”, como ensina o jargão do automobilismo. “O Abilio Diniz faria dupla comigo”, conta. “Na véspera da prova, caiu do cavalo, machucou o joelho e não tinha condições de largar. Resolvi correr assim mesmo.”

Emilio costumava se dar bem em corridas longas. Sobretudo quando pilotava uma Alfa Romeo, carro que, mais do que os concorrentes da época, aliava performance e durabilidade. Para lembrar algumas vitórias da memorável folha de serviços de Emilio, fiquemos com as 24 Horas de Interlagos de 1966 (em dupla com Ubaldo Cesar Lolli), os 500 km da Guanabara de 1968 (com Francisco Lameirão) e os 1.000 km de Brasília de 1970 (com Marivaldo Fernandes).

Claro que, em algumas dessas maratonas no asfalto, nem tudo ocorreu como sonhava. Ele recorda: “Numa prova das 500 Milhas da Guanabara, a suspensão dianteira quebrou. Fui parar dentro de um pequeno lago interno do circuito de Jacarepaguá”. Uma risada e Emilio completa, brincalhão: “Abri a porta e subi na capota esperando socorro. Afinal, não queria me molhar”.

Segundo os astrólogos, não só a ousadia mas também a ironia são características do signo de escorpião. Procede no caso de Emilio Zambello, nascido em Pádua, na região italiana do Vêneto, em 6 de novembro de 1926. Ainda garotão, antes de zarpar como marujo, ele comprava e vendia motocicletas, sobras da Segunda Guerra Mundial – a maior parte de fabricação inglesa. Claro que andou participando de algumas provas. Escondido da família, bem entendido. “Meus pais só souberam que eu corria quando já estava no Brasil e publicaram o resultado de uma prova daqui em um jornal italiano”, diverte-se.

Da chegada ao porto de Santos até a estreia nas pistas brasileiras foram cinco anos. De início, Emilio empregou-se na Atlantic, a companhia de petróleo, como coordenador de tráfego. Ali, conheceu o conterrâneo Rugge-ro Peruzzo, então dono de uma oficina especializada em veículos Land Rover. Fizeram uma sólida amizade. Dois anos depois, eram sócios na oficina Garage Fulgor. Emilio cuidava do estoque; Peruzzo, da parte mecânica. Essa divisão do trabalho não iria permanecer tão estanque assim. A oficina criou fama e grandes pilotos passaram a recorrer à Garage Fulgor para amaciar motores. Em especial, os poderosos Ferrari.

Nos sábados pela manhã, Emilio esfregava as mãos: cabia a ele testar os carros em Interlagos antes de entregá-los, tinindo, aos pilotos. Foi quando descobriu que em cada volta, fazia tempos tão bons quanto os clientes da oficina. Portanto, por que não se inscrever em uma prova?

Já estava então casado com Dirce (mãe de seus filhos Rita, Silvio e Sérgio) quando fez sua estreia a bordo de um Fiat 600, com motor de 1,1 litro. No ano seguinte, 1955, sentou-se numa Ferrari de 3 litros. Era o Grande Prêmio Santos Dumont, e Emilio recebeu a bandeirada na quinta posição. Entre 1957 e 1961, viveu grandes momentos. Seu diminuto Fiat Fulgor tornou-se o bicho-papão da categoria 2 litros.

Mas Emilio queria mais velocidade. Ainda em 1961, comprou “um foguete”, um Maserati 550s, com motor V8 de 4,5 litros. Nas mãos de Emilio, o bólido fez os demais pilotos comer poeira nos 500 km de Interlagos daquele ano, prova disputada no anel externo da pista. Emilio revezou-se na direção com Celso Lara Barberis e o amico Ruggero Peruzzo. Ganhou. Já então era uma fera nas provas longas.

“Os pilotos ficavam doidos vendo aquele Maserati”, sorri, nostálgico. “Certa vez, o Ciro Cayres, que era um dos melhores, babou tanto que o convidei para dirigir o carro, pouco antes da largada de uma prova curta em Interlagos. Como não havia treinado, ele teve de largar em último no grid. Pior: o motor morreu. Mesmo assim, o Ciro passou todo o mundo e ganhou. Uma vitória magnífica.”

Carros italianos sempre foram os prediletos de Emilio. Também os de Piero Gancia (pai da jornalista Barbara), outro conterrâneo que se tornaria parceiro nas pistas e nos negócios. Com ele, abriu a Jolly Gancia, uma equipe para ficar na história – e, mais tarde, também importadora e revendedora Alfa Romeo. Da Itália, a dupla trouxe carros que fariam furor nas categorias Turismo Força Livre e Grand Turismo. Um dos primeiros foi o Alfa Giulia. De cara, Piero e Emilio venceram as 6 Horas de Interlagos (a rigor, chegaram em segundo na geral, mas em primeiro na categoria). Depois, importaram “um Grand Turismo puro sangue”: o Alfa GTZ. Em pouco mais de 20 corridas, Emilio ganhou oito, o mesmo número de vitórias que conquistaria, dessa vez na geral, com outro possante, o Alfa GTA – um carro ainda mais marcante na história do automobilismo brasileiro.

Todo o mundo queria pilotar para a Jolly. Alguns dos melhores tiveram esse privilégio. A relação inclui Wilsinho Fittipaldi, José Carlos Pace, Tite Catapani e os irmãos Abilio e Alcides Diniz. “O Emerson também correu uma vez”, conta. “Fez dupla com o Pace nos 1.000 km de Brasília de 1967, e os dois lideravam com facilidade, mas, mesmo assim, o Emerson catou uma guia.” Em outra edição da corrida do Planalto Central, três anos mais tarde, o diretor da prova confundiu-se, terminou a corrida antes e deu a vitória ao piloto de um Puma, que corria uma volta atrás de Emilio. Tremenda balbúrdia. Como bom italiano, Emilio bronqueou feio, encostou a turma na parede e, refeitas as contas, subiu ao topo do pódio.

Hoje, ele ri das velhas histórias. Comanda agora a TBA do Brasil, empresa que utiliza um maquinário moderno para reaproveitar artigos de borracha descartados – em especial, pneus velhos. Triturados, eles se mesclam e ressurgem como liga de asfalto e placas antirruído, entre outros produtos. Tudo em favor do meio ambiente. Pois é, Emilio demonstra que continua ousado e atento para o futuro. Tal como aquele jovem marinheiro de outrora.


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