Haiti no meio da tragédia

O fotógrafo Caio Guatelli, da Folha de S. Paulo, registrou uma das imagens mais chocantes e reveladoras dos dias que se seguiram à catástrofe. Um haitiano que acabara de tombar com um tiro dado por um policial; em meio à confusão, sua carteira imediatamente foi furtada por um conterrâneo no hediondo cenário em que a sobrevivência brada acima da comiseração. Caio viveu momentos tão terríveis em Porto Príncipe, a capital do Haiti, que admite: dias e dias depois de rodar pela cidade, continuar fotografando ia além de suas forças. Assim como ele, os demais jornalistas brasileiros presenciaram o horror, como jamais lhes ocorrera. Seis deles descrevem as condições de trabalho e a superação dos próprios sentimentos para cumprir a missão de informar

“Um dos momentos mais delicados foi quando uma avó quis me entregar sua neta, de três meses. Eu sentia dificuldade em olhar para a criança, magra e com fome, pois não sabia qual seria a minha reação diante de um bebê renegado. De repente, me vi perante uma tarefa cruel: a de explicar para uma avó aflita que eu era “apenas” uma jornalista e não estava interessada na criança, mas sim em sua história. Situações como essa exigem uma concentração no trabalho fora do comum.”
Fabrícia Peixoto, da BBC Brasil

“Chegamos em Porto Príncipe em uma carona da FAB (Força Aérea Brasileira). Eu e o fotógrafo Sérgio Dutti. Ficamos instalados na base militar brasileira, dividindo uma tenda com 25 jornalistas, dormindo em colchonetes e vivendo sob um esquema militar, com horário para comer e usar o banheiro. Sabíamos que teríamos apenas o básico. Era o suficiente. Até porque a situação do lado de fora era muito, mas muito pior. A primeira impressão, num rápido passeio, foi de destruição, pobreza e caos generalizado. Multidões andando de um lado para o outro sem rumo. Logo percebemos que não haveria possibilidade de trabalhar apenas com as caronas das tropas brasileiras. Precisaríamos nos deslocar para regiões onde os militares não costumam ir. Em um primeiro momento, alugamos um carro com motorista e um guia para nos ajudar a traduzir a língua creole. Esse guia, aliás, perdeu a casa no terremoto. Depois, com o trânsito cada vez pior e o fuso horário de três horas a menos em relação ao Brasil, decidimos contratar um motoqueiro. São meninos querendo dinheiro para comer, os bon bagays (“sangue bom”, na língua deles). Esqueçam qualquer preocupação com segurança: não há capacete, regras de trânsito. Os motoqueiros invadem calçadas, contramão, vale tudo. E, nessa hora, a preocupação é com a notícia, a informação. À noite, a ficha caía e percebíamos o risco que havíamos corrido. Quando necessário, usávamos capacetes e coletes à prova de balas. Mas foram poucas as vezes. Há gangues, brigas, saques, mas o que mais chama a atenção é a fome. Tiros são rotineiros, mas muito mais para espantar os arruaceiros do que para matar alguém. A briga é por comida. Um momento duro foi a patrulha na madrugada com as tropas brasileiras para entregar comida aos que dormiam na rua. Ficamos emocionados. Não teve como. Em outro dia, entramos em uma maternidade improvisada e assistimos a partos de bebês que nasceram sem casa. Também cobrimos a história dos órfãos. Quando as crianças descobriram que éramos brasileiros, começaram a jogar futebol gritando o nome dos jogadores do Brasil. Durante a cobertura, passamos por dois tremores de terra. No primeiro, estávamos dormindo, acordamos na hora, e vivemos o dilema: primeiro, dar notícia aos familiares ou apurar o ocorrido?”
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Leandro Colon, de O Estado de S. Paulo

“A cobertura testou até os limites nossa capacidade, mas por motivos diferentes do que eu imaginava ainda no Brasil. As dificuldades logísticas foram enormes. O fuso horário obrigava a um planejamento muito grande e a um permanente estado de estresse. Tínhamos apenas a parte da manhã para apurar as reportagens, e retornar para a base do Brasil para enviar o material. Perdia-se muito tempo em deslocamentos pela cidade. O trânsito é travado, e a alternativa era andar em moto-táxis, um perigo. Eu diria que o maior risco que corri foi a sobrevivência no trânsito. Também foi muito difícil falar com pessoas (muitos falam apenas o creole) e telefonar. Por outro lado, a situação de segurança não foi 10% do que eu temia. Os primeiros dias foram caóticos, mas a situação melhorou muito. Andei por favelas sem nenhum temor. E havia o desafio emocional de ouvir histórias terríveis e ter a frieza para escrever matérias sobre elas. Some-se a isso o desconforto de dormir num acampamento e você pode ter uma ideia da cobertura. O ambiente, dormindo e convivendo com os jornalistas concorrentes, era outro desafio. Estávamos ali para conseguir histórias exclusivas, afinal de contas. Nada se compara ao que ocorreu nesse país.”
Fábio Zanini, da Folha de S. Paulo

“Cheguei, com o Airton Freitas, uma semana depois do terremoto. O exército brasileiro nos acolheu. Dividíamos uma tenda com sete jornalistas, sendo um deles um free lancer americano, que mora em Porto Príncipe e perdeu a casa, que caiu. O grande problema da cobertura era o trânsito. Você saía para fazer uma matéria e, se a pauta furasse, não dava para se deslocar e fazer outra reportagem. Vim ao Haiti em 2008 e, já então, não tinha luz à noite. Agora, vi famílias dormindo nas ruas. Para que os carros não atropelem as pessoas, elas obstruem a passagem com blocos de cimento. Fiquei marcado, em especial, por uma das cenas. Era uma distribuição de arroz. As crianças brigavam entre si pelas provisões. Quando os grãos de arroz caíam no chão, elas lutavam para pegá-los. Agora, deu para trabalhar sem escolta. Você vê pessoas com faca na mão. Mas é mais uma medida de defesa. Os haitianos vinham é pedir ajuda, e isso o tempo todo.”
Chico de Gois, de O Globo

“Estive seis vezes no Haiti, de 2005 para cá. Ao todo, devo ter passado uns 70 dias no país. Em 2005 e em 2006, o cenário era muito diferente. Havia combates nas ruas, entre tropas brasileiras, ex-militares rebeldes e gangues armadas. Foi assustador. Havia o risco de sobrar uma bala para os repórteres. E as armas eram metralhadoras. Em 2007, as gangues foram debeladas e o risco diminuiu muito. Em 2009, o país começou a melhorar. Como havia feito amigos nos anos anteriores, fui ao Haiti até a turismo, com minha mulher. Andamos numa praia linda e pensamos: “Poxa, se não fosse tanta miséria, daria para eles explorarem o turismo”. Agora, depois do terremoto, sofri ao ver um amigo, haitiano, em estado grave no hospital. Foi duríssimo olhar a miséria e as intermináveis filas por comida.”
Luís Kawaguti, da Folha de S. Paulo. Escreveu um livro sobre o Haiti: A República Negra (Editora Globo)

“Eu e o repórter Fabiano Maisonna-ve fizemos parte das primeiras equipes a chegar. Saímos de São Paulo dez horas depois da tragédia. Não havia ainda a menor organização por parte da ONU. Era haitiano salvando haitiano. Estive em meio a tiroteios, saques e confusão. Tudo era absurdo: o tamanho da destruição, a quantidade de mortos e feridos, a expressão no rosto das pessoas. No início, eu era um dos poucos fotógrafos que perambulava pelas ruas. Fui bastante abordado. As pessoas pediam ajuda para tirar seus parentes debaixo dos escombros, indagavam o meu sentimento, tentavam me deixar acuado. Todos estavam com medo, tanto quanto eu. Houve momentos que tive de parar de fotografar para ajudar, como no caso de uma garota de 14 anos, com a perna esmagada. A minha foto que melhor descreve essa situação caótica é aquela que mostra um haitiano tirando dinheiro da carteira de um defunto. Aconteceu durante uma correria, com a polícia acuada. Eram nove policiais em meio a milhares de haitianos. Um policial disparou no haitiano, que caiu morto. Em seguida, aconteceu o furto. Pedi para voltar ao Brasil antes do prazo.”
Caio Guatelli, da Folha de S. Paulo, em entrevista à Folha Online


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