Aos 45 anos de idade, Adirley Queirós conta com quatro filmes no currículo. Entre curtas, médias e longas, são eles: Rap, O Canto da Ceilândia (2005), Dias de Greve (2009), Fora de Campo (2009), A Cidade É Uma Só (2010) e Branco Sai. Preto Fica (2014). Este chegou às salas de cinema brasileiras na semana passada. Atualmente, o diretor vive em Ceilândia com sua esposa e dois filhos gêmeos, de 11 anos. Mora de aluguel e culpa a especulação imobiliária pela situação.
Leia a resenha de Branco Sai. Preto Fica
Nascido na interiorana Morro Agudo de Goiás (GO), se mudou para a área rural de Brasília bem pequeno e em seguida para Ceilândia, em 1977. A cidade-satélite foi constituída em 1970, parte da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), que tirou milhares de moradores das ocupações nos arredores de Brasília e as levou à Ceilândia, cerca de 30 quilômetros do centro da capital federal.
“Anos depois, ainda existia uma tensão na cidade. Eu mudei quando teve uma espécie de expansão de Ceilândia. Depois do projeto original. Fizeram uma extensão e sortearam casas populares”, conta. Hoje, é vencedor de diversos prêmios na área, mas Adirley viveu de jogar futebol por cerca de 9 anos, em times amadores. Sua carreira foi interrompida por uma lesão aos 25, quando voltou aos estudos e se formou em um supletivo.
Veja o trailer de Branco Sai. Preto Fica:
Entrou na Universidade de Brasília com 29 anos e o curso de cinema foi algo quase acidental. Entre gostar e não gostar da faculdade, vê que nesse espaço se aprofundou na sétima arte. Como trabalho de conclusão de curso fez seu primeiro curta Rap, O Canto da Ceilândia, vencedor do Prêmio Oficial de Júri e de Público no Festival de Brasília, além de e mais 13 prêmios pelo País.
Por telefone, o diretor concedeu uma entrevista à reportagem da Brasileiros. A longa conversa foi além de sua carreira na cinematografia e abrangeu pontos como a Universidade de Brasília, Ceilândia, a produção cinematográfica brasileira, entre outros assuntos.
Veja a entrevista completa:
Brasileiros – Esse meio tempo entre parar o futebol e começar a faculdade? Como chegou ao cinema?
Adirley Queirós – Minha entrada no cinema foi muito casual. Eu não tinha a intenção de fazer cinema e nem uma cinefilia. Não tinha amizades na área. Nenhum motivo que me levasse para lá. Um dia passando na faculdade, me deparei com o curso de comunicação, achei que poderia ser legal esse espaço. Também não sei porque (risos). Para comunicação, a prova tinha três cortes, jornalismo, publicidade e cinema – que era o mais baixo. Entrei e nem sabia o que ia encontrar. A prova da UNB é bem difícil. Eu tinha uma experiência em dar aula particular de matemática e química, fiz isso por bastante tempo. Então essas aulas foi o que talvez tenha me dado esse interesse para fazer o curso.
E a sua visão da Universidade, ela ajuda um cineasta a se construir?
A minha relação com a universidade foi muito tumultuada, fiquei cerca de 8 anos na lá. Teve muito de gostar e não gostar, eu achava muito estranho. O lugar ainda é elitista, mas, na época que eu frequentava, era mais ainda. As pessoas do curso eram de outro mundo. De Brasília ou de fora, era classe média alta e viviam em outro universo. Para mim, existiam algumas barreiras. De território, entre Brasília e Ceilândia, a barreira de classe e também uma barreira de idade. Eu entrei com 29 anos e as pessoas tinham seus 17 ou 18 anos. Eu tive dificuldade de me adaptar. Acho que atualmente mudou com esse negócio do PROUNI, REUNI. Eu sempre circulo pela universidade e vejo que tem rostos diferentes. Na minha época, o curso de comunicação, quase não tinha um negro e quase ninguém morava fora de Brasília. Mas, ao mesmo tempo, a universidade me proporcionou o encontro com o cinema. Eu nem sabia o que era. Entrei na faculdade, comecei a ver filmes e ter a ideia de trabalhar com isso.
Quais foram os primeiros filmes que te atingiram?
Lembro como se fosse hoje. Minha primeira aula foi muito louca. Era história do cinema mundial, o professor entrou na sala com uma televisão de 14 polegadas, às 10 da manhã, o sol batendo em cima dela e botou A Greve, do Eisenstein. Para mim aquilo absurdo, foi muito marcante ver esses filmes na época. Minha cinefilia era popular nessa época, eu via Blade Runner, Mad Max, Rambo. Outro filme que me marcou foi o Bang Bang, do Andrea Tonacci. A partir disso, comecei a me interessar mais pela história do cinema. Disso, foi para Bandido da Luz Vermelha, outros filmes do Eisenstein, Cinema Novo e por aí foi.
Esse ano completam 10 anos do curta Rap, O Canto da Ceilândia, como foi fazer esse filme?
Foi muito louco. É um filme de conclusão de curso, quando eu comecei a fazer, a ideia era sair da universidade. O que me interessava era a discussão sobre a cidade de Ceilândia. Eu já tinha uma reflexão muito grande em relação a esse espaço entre Ceilândia e Brasília. O nome é Rap, O Canto da Ceilândia. A palavra “canto” é espaço e não o estilo musical. A gente não tinha dinheiro, consegui o equipamento na faculdade e gravava durante a noite e em finais de semana. Eu trabalhava. Tentei falar de tudo e tinha muito material para editar. O filme é muito honesto. Usava luz de jardim, não tem uma preocupação muito rígida com a forma. Era interessante, eu ia construindo e reconstruindo meu imaginário sobre Ceilândia. Todos os filmes que eu faço vêm do Rap. Assuntos de abordagem, o espaço que eu uso, a ideia de como chegar até os personagens. Hoje, eu vejo esse filme e gosto muito, mas também não é mais o caminho que eu quero traçar.
Veja uma parte de Rap, O Canto da Ceilândia:
A história que serve de mote para Branco Sai. Preto Fica, como ela chegou em você?
O Quarentão era o espaço mais famoso da cidade nos anos 1980. Na época do rock de Brasília, tinha também o movimento da música black nas cidades-satélite. Eu não era um frequentador assíduo, mas uma geração inteira frequentou o Quarentão. Ia dançar, namorar e tal. Ao redor dele se construiu tudo. Era um lugar que sofria muita repressão. Lá, se reuniam negros, operários e a polícia sempre ia para cima. Batia, tentava reprimir e acabar com os bailes. Todo mundo tem uma história nos bailes. Então, a ideia inicial era falar do imaginário da cidade. Existiu um dia que a polícia invadiu e todo mundo fala sobre isso. É como se a cidade inteira estivesse lá, virou uma espécie de lenda e são várias formas de contar essa história.
E essa mistura de documentário com ficção científica?
A gente queria fazer um filme e falar sobre a história da Ceilândia, mas não queria usar a mesma forma do A Cidade É Uma Só, que era uma linguagem mais crua. Queríamos um filme de ficção mesmo, no futuro. Uma narrativa de pessoas no futuro, tentando denunciar uma cidade sitiada, em guerra, uma ideia apocalíptica. Isso vem do que da nossa cinefilia popular. Eu queria fazer um Blade Runner também (risos). Aí eu falei com o Marquim e ele disse que não tava mais afim de falar da vida dele, que queria fazer outras coisas. Ele disse: ‘se vocês quiserem eu posso voar, dar tiro, jogar bomba, não quero mais fazer essas coisas realistas’. Então essas duas coisas casaram.
Em todos seus filmes você traz uma discussão social, com foco nas questões de Brasília. Como você enxerga esses trabalhos dentro do circuito comercial?
Acho que tem espaço. No Branco Sai.Preto Fica a gente pôde contar essa história de outro jeito, uma outra forma de narrar o documentário. Não é que não há espaço para documentário, mas, dentro do circuito comercial, teria que reinventar essa história em aventura, ação. O que tentamos fazer nesse filme foi trazer o ritmo de ação em algum momento. Mas acho que o grande problema é não ter o potencial de divulgação. No nosso caso, divulgamos basicamente nas redes sociais. Quem ajuda são seus amigos, pessoas que já viram o filme nos festivais. O Branco Sai.Preto Fica foi visto por mais ou menos 7 mil pessoas nesses espaços. Pessoas que não vão ver no cinema. Além de outros problemas. Antes da questão se a pessoa vai ou não no filme, tem a forma como ele é distribuído. O capital que você tem pra isso. Eu nunca fiz um filme muito comum para as pessoas que pagam o ingresso do cinema. Acho que elas tem outra relação com os filmes. Mas acho possível esses trabalhos entrarem em salas comerciais, mas a distribuição que é a tocaia.
Como é fazer cinema no Brasil hoje?
Para fazer cinema no Brasil, e praticamente no mundo inteiro, só é possível com edital. Como essas temáticas que a gente propõe vão encontrar espaço no cinema comercial? Um cinema que só pensa em reproduzir o que está sendo feito? Nesse sentido, só o estado é vanguarda. Só ele pode propor um filme com linguagem, perspectiva, pontos de vista diferentes e faça, do cinema, um espaço de reflexão. Esses filmes vão despertar interesse comercial? Como esses trabalhos que falam de questões populares, do trabalho, podem atingir um público que, de certa forma, não quer ouvir isso? O cinema no Brasil não é popular. O acesso é muito caro. Por isso eu não vejo o edital como privilégio. É um concurso público aberto. Fora disso é paternalismo. Se não se pode concorrer via edital, uma disputa coletiva e pública, vira balcão. Que os filmes vão continuar sendo feitos com o dinheiro do estado, eu não tenho dúvida. A questão é isso ser jogado para nós, cineastas, como algo ruim. Se o estado tem dinheiro para incentivar o cinema, é mais que a obrigação dele fazer isso. Muitos filmes não tem espaço nessa lógica americana. As pessoas vão atrás das empresas para fazer seus filmes, mas elas vão ter suas preferências e o filme não é algo publicitário.
E os critérios dentro dos editais?
Eu acho justo até. É pouco dinheiro para muita gente mas o edital brasileiro ainda é aberto a possibilidades. É difícil, mas é possível. Os critérios são de burocracia, não tem como mexer com dinheiro do estado sem ela. Prestação de contas é justíssimo. É dinheiro público. O que incomoda é como as pessoas apontam isso como crime. Ninguém questiona, por exemplo, o privilégio histórico de entrar em uma universidade pública porque a classe média alta sempre frequentou. Ninguém questiona a meritocracia de um concurso público grande, mas questionam o lugar do cinema. É uma responsabilidade pegar esse tipo de dinheiro, mas, nós cineastas, não podemos ficar com culpa em relação a isso. Hoje ainda estão falando em DF Cine, SP Cine, isso é besteira. Esses caras vão administrar e terceirizar o dinheiro do estado. Vão capitalizar isso para uma outra forma de edital preocupado com esse feedback de público. Imagina filme preocupado só com o feedback de público. É melhor importar só. Quando falo que tenho respeito pela política de estado é porque muitas pessoas já lutaram por isso. É um momento muito bom nesse sentido, já pegamos muitas coisas prontas. Existiu uma geração que lutou muito para conquistar esse espaço. Acho que a minha geração, nisso eu me incluo, é muito covarde. De se acomodar nesse espaço, quando as pessoas começam a falar que somos importantes por fazer filme. Isso é uma besteira. Temos que lutar para fazer do cinema cada vez mais democrático e popular, que só vai ser uma realidade via estado. É o estado que vai fazer uma sala pública de cinema que não dá lucro. Vira um pastiche a ideia de imitar uma indústria se você não tem os mesmos elementos. É impossível chegar até os norte-americanos. A gente não tem estrutura física, econômica e nem mão de obra para isso. Uma outra coisa pode ser feita. Acho um equívoco a permissa de que, em primeiro lugar, o cinema deve ser orientado pela quantidade de público. Segundo, o cineasta pensar que o público não é importante. Nem um extremo nem outro. Todo mundo faz filme para um público. Meu trabalho procura atingir um público de quebrada, de periferia, visando fortalecer um cinema popular. Além de levantar a questão de que existe um lugar para aquilo, que pode despertar outros interesses além do cinema.
Estamos num bom momento do cinema brasileiro?
Acho que é um bom momento. Tanto de produção como o fato do público estar mais aberto ao cinema brasileiro. Agora, acho que a questão não é nem o preconceito. As pessoas vão ao cinema do mesmo jeito que vão a uma festa, um restaurante. O cara da classe média trabalha, pega o dinheiro que ele tem e vai ao cinema com a namorada. É um programa, o filme que ele vai assistir é muito condicionado pela forma como ele é divulgado. O dinheiro aplicado é o que leva público ao cinema. Quem não tem dinheiro não leva, pode ter um fenômeno uma vez ou outra, como foi O Som Ao Redor, mas o investimento que se tem de divulgação é o investimento de público. Não é a questão da qualidade do filme que vai levar público para o cinema. Essas comédias da Globo, em geral, são horríveis mas fazem sucesso com o público.
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