Em meio à comoção social de um tempo em que países como o México cruzaram os limites do inenarrável, a Bienal de las Fronteras, segundo Libertad García Cabriales, diretora geral do Instituto Tamaulipeco para a Cultura e as Artes, é uma estratégia para explorar as reservas criativas não só de uma nação como também de um mundo à deriva. Abre, na verdade, um espaço crucial para a busca das reservas criativas. Os jovens curadores, selecionados por uma excelente comissão que deu prioridade às práticas e aos olhares que estão aparecendo no horizonte, convidam a repensar o sentido da arte em um tempo obscuro.
Na seção com curadoria da mexicana Amanda de la Garza Mata, Um Corpo, Dentro de uma Ilha, em um Rio, Dentro de um Vulcão, em uma Praça, em uma Rua, em uma Cidade, os artistas abordaram a noção de deslocamento também como método de investigação. Destaco a obra do artista e urbanista Isaac Torres, O Eixo Histórico, com os nomes de lugares da Cidade do México. Ele traça um mapa da cidade atravessada pelos cruzamentos da história coletiva e da memória pessoal: são camadas de estratificações inscritas na mente da geração dos anos 1980. Em Novas Promessas, Ernesto Bautista registra uma ação poética realizada sobre um caminhão de carga, em que a pintura em vinil traz uma frase transgressora: “Mesmo que seja uma fronteira, te prometo não deter-me”.
Em Punto Ciego, os também mexicanos Paola Eguiluz e Silverio Orduña mostram duas obras que sugerem a ansiedade da mobilidade humana perseguida por forças invisíveis: o vídeo Sertão, de Ana Belén Rapizzani Vásquez, filmado com câmera fixa sobre uma paisagem desértica em que o movimento é expresso com o capim açoitado pelo vento e pelo som de um trem que se aproxima e logo se distancia sem que nunca o vejamos. Sua ausência enche a mente de imagens: o hiato entre os trens que anunciavam a modernidade e os que selam seu fracasso enquanto marcham em direção ao norte, como a Besta, com seu carregamento humano de medo. A fotografia de Rodrigo Jardón Galeana de um sapato abandonado, e já semidesfeito pelo passar do tempo, funciona como metáfora de todas as dispersões das multidões anônimas e extraviadas em qualquer lugar.
Entre os artistas selecionados, há obras que estabelecem uma relação de desconstrução com as fronteiras. Na fotografia de Gina Arizpe, Sem Pegada, o efeito é conseguido justamente pelo desaparecimento do rastro do homem que cruza o deserto. No vídeo Matamoros-Tijuana, Emilio Chapela se apropria de milhares de fotografias do Google dos caminhos da fronteira, e expõe a tensão entre o percurso visual pelo muro e o sinal de áudio da Rádio Bilíngue que flui livremente. A israelita Maya Yadid, ganhadora do segundo prêmio da Bienal de Las Fronteras, apresenta o vídeo do percurso, em um luxuoso carro, de uma sensual dupla que fuma e canta a plenos pulmões enquanto trafega pela rodovia 443, a mesma que somente os palestinos podiam utilizar a partir de 2002, sempre sujeitos a restrições.
O curador Rodolfo Andaur aborda, em Extremos, o modo como os artistas recriam as tensões fronteiriças entre México e Estados Unidos (Gonzalo Cueto faz uma projeção virtual da zona) ou entre Peru, Bolívia e Chile. No vídeo O Mar não Existe, da boliviana Raquel Schwartz, uma mão rabisca na areia a frase título. “Quando ela termina (de rabiscar), a água salgada apaga as letras”. A chilena Michelle-Marie Letelier reconstrói as rotas de navegação de um veleiro que transporta salitre em uma instalação com água salobra e soluções minerais. O mapa das estradas aparece pouco a pouco.
A excelente proposta das curadoras espanholas Claudia Segura e Virginia Roy, Limites Nômades, indaga sobre as implicações ontológicas e políticas do estabelecimento de limites e de como a arte os desloca. Levi Orta compra e exibe um pedaço do muro de Berlim, calculando o valor do muro total, hoje reduzido a um mero suvenir. O gesto contém uma interrogação sobre as fronteiras e expõe como o capitalismo converte inclusive, a resistência histórica em mercadoria. Laura Marte substitui os anúncios nos
outdoors pela paisagem que eles haviam ocultado. O gesto magrittiano de restituição questiona o próprio mercado. A supremacia do capital é abordada por Nuria Güell e Levi Orta em Arte Política Degenerada (reapropriação do título com o qual os nazistas condenaram o melhor da arte vanguardista), obra que expõe a oficialização de uma empresa em um paraíso fiscal: o lugar é aterritorial e corresponde ao fluxo flagrante do capital global deslocalizado. Pinar Ögrenci observa a construção das empresas multinacionais com uma documentação que revela um voyeur espiando sobre um muro e atrás do qual está a sede da loja Ikea.
Outros territórios são o da memória histórica, nas versões que reúnem Vahida Ramujkic, em Histórias em Disputa, sobre as fronteiras mutantes da antiga Iugoslávia, e a da fronteira entre ficção e realidade, na fotografia de Pedro Torres. Também Rodrigo Hernández apresenta em The Gay Science, paródia do título do livro de Nietzsche.
Entre os artistas selecionados, a pintura se revela como meio perfeito para o simulacro, para o desvio entre as fronteiras do real e da ficção: assim ocorre com o óleo de Alberto Ibáñez Cerda, Princípio de Incerteza, em que uma paisagem com um OVNI se mimetiza com a fotografia. Particularidades Cotidianas 2, de Carlos Humberto Ramírez Lara, simula a foto de uma instalação com materiais encontrados, porém é uma pintura. A escultura de Julien Friedler, A Nave dos Loucos, parodia a famosa obra de El Bosco sobre a condição humana.
Há também uma indagação de fronteiras de memória ou existenciais nas pinturas figurativas de Roberto Juárez Cervantes, Os Limites da Inocência, e Manuel Mathar, Nada é Muito, quadro onírico em que se lê “Tudo é Pouco” no cabo de uma vassoura que está queimando. Na curadoria de Julia Libertad Villaseñor Bell, Vivendo no Limite, convergem obras sobre as identidades móveis. Daí a sensação de estranhamento da realidade produzida pela colagem Lua Cheia, de Clémence Vazard. Uma metáfora poderosa é construída em Ferramentas pela dupla formada com a suíça Aglaia Haritz e o marroquino Abdelaziz Zerrou, que as recobre com um tecido de crochê.
Destaco a inteligente peça de Rogelio Raúl Meléndez Cetina, Dicotomía, de 2014, em que o material de uma mesa parece ser descontinuado para mudar para cubos, enriquecendo o conceito de subjetividades não idênticas entre si, capazes de se transformarem em outras. Juan Delgado Calzadilla, em Luz Turva e Obscuridade Aclarada, aborda a condição da insularidade e as fricções culturais. Eufemismo, a peça de Jorge Wellesley Bourke, é uma instalação com neon e o difícil jogo de palavras história e estória. As micro-histórias no mundo hispânico estão associadas à busca de saídas, como se adverte no trabalho de Carlos Alberto Fernández Montes de Oca, Não Há Outra Saída.
A escultura Puño Americano, do artista Andrés Felipe Castaño, mostra o trajeto de um artefato: a manopla que o exército americano usava no princípio do século é agora símbolo dos grupos criminosos. Linha Branca, do chileno Claudio Correa, ganhador do Terceiro Prêmio da BF, é uma instalação com moedas de cera, que replica diversos modelos de um “novo” peso na América Latina, como o emitido no Uruguai em 1975, ou no México em 1993. Na instalação de Manuela Viera-Gallo, um grupo de folhas presas na parede forma a palavra Jauja, nome da antiga capital inca, antes de Lima se converter no centro do vice-reinado. Ninguém mais se lembra do nome arcaico: país de Jauja, terra do nunca jamais, a Arcádia. Um grupo de folhas espalhadas pelo chão contém as mesmas letras, ilegíveis. A fronteira é também a passagem da história arrasando mundos.
Duas obras inquietantes supõem transmigração entre meios: as esculturas tecidas de Mayra Mashkanian, algumas podem fazer pensar nos ritos de extirpação, e que em todo caso recriam as práticas ancestrais de um trabalho manual típico de seu povo natal Guilan, no Irã. Em Reconfiguração de Espaços Específicos 2, o brasileiro Fabio Leão transfere desenhos encontrados na superfície de espaços arquitetônicos de um edifício (Lodge, em MacDowell Colony) para o papel e os monta em escala natural, formando um políptico. Essas imagens migrantes encontradas e transportadas lembram a invenção do frotagge que Max Ernst realizou no solo de um hotel evocando Da Vinci.
Por último, porém não menos importante, destaco a fronteira entre os limites estabelecidos onde tudo parece sob controle, porém o caos está à espreita. Essa potencialidade se expressa paradigmaticamente na peça ganhadora do Primeiro Prêmio da Bienal de las Fronteras: V.F(i)n_1, de Luz Maria Sánchez, uma instalação sonora que pressupõe uma fricção entre a impecável repetição minimalista da estrutura em cubos de MDF branco com 74 aparelhos de som pretos, e o mesmo número de trilhas que cada espectador pode tocar, liberando um caos sonoro, uma irrupção nas fronteiras da realidade estabelecida.
A curadoria geral da Bienal de Las Fronteras é de Othón Castañeda, artista e curador e o comitê de seleção compõe-se de María del Carmen Aguirre Treviño, artista e arquiteta (México), Leonor Amarante, jornalista, editora e curadora convidada da Bienal de Curitiba 2015 (Brasil), Julia P. Herzberg, historiadora de arte e curadora (Estados Unidos), Guillermo Santamarina, curador do Museo de Arte Carrillo Gil (México) e Emiliano Valdés, curador da Bienal de Gwangju e do Museo de Arte Moderno de Medellín (Coreia do Sul/Colômbia).Bienal de Las Fronteras
Até 30 de maio
Museo de Arte Contemporáneo de Tamaulipas
Av. Constituición y 5a – Col. Jardin Matamoros, México (www.bienaldelasfonteras).
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