Que este dia não amanheça de novo – Uma entrevista com Flávio Tavares

Foto: Reprodução/Facebook
Foto: Reprodução/Facebook

Muitos dos que hoje saem às ruas com faixas para exigir a volta do regime ditatorial não eram nascidos naquele negro período que durou 21 anos – de 1964 a 1985. Outros, apesar de terem vividos estes tempos sombrios, se fazem de esquecidos, de mal informados e de cúmplices. Em separado ou tudo junto. Portanto, como ensina o poeta Thiago de Mello, “aos que não sabem, convêm contar; aos que se esquecem, convêm lembrar”.

Flávio Tavares, jornalista e escritor, é parte da história contemporânea. Ressuscitou de atrocidades físicas e mentais praticadas por integrantes de ditaduras militares no Brasil e na América do Sul. Em 1969, após ser preso e barbaramente torturado pelos militares, fez parte do grupo de presos políticos trocados pelo embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick. Foi para o México no avião Hércules 56, que levou, entre outros, José Dirceu, Luiz Travassos, Wladimir Palmeira, Gregório Bezerra, Maria Augusto Carneiro (a Guta) e Ricardo Zarattini. Viveu e trabalhou no México, na Argentina e em Portugal, até voltar ao Brasil, em 1979, após a anistia.

Nesse intervalo, foi sequestrado pela ditadura uruguaia, e, novamente, torturado.

Na entrevista a seguir, realizada em 2011, Tavares também  fala sobre o ódio, sentimento muito presente neste momento de polarizações políticas no Brasil.

Abaixo, algumas declarações sobre seu sofrimento nas mãos de torturadores.

MOMENTO QUE ENTROU PARA RESISTÊNCIA

“Eu costumo dizer que o golpe de 64 foi uma bofetada na minha geração, que havia se preparado para a política. Aos poucos, comecei a entrar para a resistência armada. (…) A partir de janeiro de 1969, passei a me integrar diretamente na luta armada.

Nesse mesmo ano, em agosto, fui preso em uma cilada aqui no Rio de Janeiro ao chegar em meu apartamento, delatado pelo porteiro do meu prédio. E, aí, eu conheci algo que eu desconfiava, mas não conhecia: a tortura.

Na verdade, comecei a ser torturado logo que entrei no táxi. (…) Fui colocado no banco de trás do carro, sentado entre dois policiais que fumavam e após tragarem apagavam o cigarro no meu peito. Quando desci, a recepção foi um corredor polonês, onde os soldados me davam pontapés e batiam com cassetete nas costas. Depois fui direto para o choque elétrico”.

O INÍCIO DO PENOSO CICLO DE TORTURAS

“Fiquei três dias sem dormir, tomando choque por todo o corpo e tomando apenas alguns copos de água. Só consegui dormir na quarta noite após a chegada do coronel Élber de Melo Henriques, que havia sido nomeado para comandante do Inquérito Policial Militar (IPM).

Um sujeito correto que quando me viu naquelas condições, dormindo em uma cela imunda, suja, toda molhada por urina, mandou suspender a tortura. Só que ele saía no final da tarde e de madrugada éramos todos novamente torturados”.

REVELAÇÕES SOB TORTURA

“Queriam saber nomes, situações e principalmente insistiam em fatos, na maioria das vezes inexistentes, como planos, organizações…Sob tortura, todo mundo revela alguma coisa. Mas o importante é saber o que revelar.

Eu, por exemplo, revelei esconderijos de armas que não existiam mais ou aparelhos onde todos os integrantes já não estavam mais lá, estavam presos. Com isso, dava credibilidade a eles e daí podia sonegar outros tipos de informações. Eu revelei um esconderijo em Copacabana e outro em Mesquita, subúrbio do Rio. Eram verdadeiros, existiam, algumas armas ainda estavam lá, mas não tinha mais ninguém.

Os policiais diziam que iria ficar 30 anos preso, mas fiquei mesmo 30 dias, até ser trocado no sequestro do embaixador americano. Aliás, quando cheguei ao México, tinha perdido o movimento da mão direita, porque os choques são dados sempre do lado direito para que o torturado não corra o risco de morrer do coração.

O choque na verdade não é para matar, mas para humilhar, desmantelar a pessoa. Eu não conseguia nem escrever com a mão direita, era preciso a ajuda da esquerda.”

NOVA PRISÃO, OUTRAS TORTURAS

Depois do México, Flávio foi para a Argentina onde trabalhou como correspondente dos jornais O Estado de S. Paulo e Excelsior, este mexicano. Desgraçadamente, quando se achava ileso de novas prisões, o raio caiu no mesmo lugar. Ele conta: “Um dia, foi preso o jornalista freelance do Excelsior em Montevidéu e o jornal pediu para que eu fosse até lá contratar um advogado para tirá-lo da prisão. E assim fiz. No dia seguinte, 14 de julho de 1975, o colega já solto foi me levar ao aeroporto. Eu senti alguma coisa estranha no aeroporto e isso já eram quase 21 horas. Passei pela migração e, quando começava a subir a escada do avião, um cidadão me chamou e perguntou se eu era Flávio Tavares. Disse que sim e ele pediu que o acompanhasse, pois tinha esquecido de “preencher minha ficha de saída do País”.

Retornei e eles começaram a fazer muitas perguntas e sempre alegavam que meus documentos eram falsos. Pedi que se certificassem com a polícia argentina, mas que fizessem rápido porque senão perderia o avião. Quando disseram que o voo já havia partido há 15 minutos, me dei conta de que estava sendo sequestrado. Fui levado para uma casa onde permaneci por cerca de sete dias e depois transferido a outra. Lá, eles ameaçavam me matar. Pediam para que eu caminhasse e atiravam para os lados. Isso se repetiu outras vezes.

No início, perguntavam sobre brasileiros que viviam no Uruguai. Fiquei preso 28 dias, comendo muito mal, sem tomar banho, em uma espécie de solitária, sem ver o sol. Fui transferido de uma casa a outra para confundir. Recordo que a primeira era de madeira; a segunda, uma casa imensa onde inclusive jogavam futebol, era de ladrilho.

Na primeira noite, me interrogaram durante toda a madrugada e continuaram no dia seguinte. Meu infortúnio foi que na segunda noite eles resolveram revistar o sobretudo que eu estava trajando e encontraram escondido algumas anotações que eu havia feito, em francês, onde descrevia dois centros de tortura no Uruguai. Aliás, acho até que uma dessas casas era justamente onde eu estava. Daí, eles queriam saber sobre essas descrições. (…)

No décimo segundo ou décimo terceiro dia (de prisão) eles fizeram algo que chamam de “colgamiento”, ou seja, “penduração”. Vedaram meus olhos, amarraram as mãos para trás e me deixaram só de camisa pendurado por uma roldana.

Após a segunda noite, eu rezava para não levar choque elétrico. O choque é terrível, ele destrói qualquer pessoa. E eu, aqui no Brasil, levei pouco choque na boca. Foram muitos nos pés, no pênis e ainda passavam de forma muito rápida pelos olhos. Uma coisa terrível, brutal. O irônico é que na máquina de choque estava o símbolo do programa Aliança para o Progresso, patrocinado pelos Estados Unidos.”

TRAUMA E OPINIÃO SOBRE O TORTURADOR

“O grande trauma que senti foi quando fui levado a uma cela no Quartel do Exército no Rio de Janeiro, no dia 4 de setembro de 1969, e encontrei uma pessoa estendida no chão. As luzes estavam apagadas, mas com o passar do tempo eu identifiquei que era um companheiro de luta chamado Roberto Cieto. A princípio, pensei que estivesse dormindo, mas depois pude constatar que estava morto. Percebi que ele tinha sido torturado e estrangulado. Ainda recordo sua camisa xadrez.
Esse foi meu trauma fisiológico, pois psicológico foram muitos. Durante muitos anos, não podia ouvir sirene de polícia. Eu recordo, ainda, uma vez que a polícia veio atrás de nós e atirou em nosso carro. Só fui salvo porque outro companheiro que vinha atrás, um exímio atirador, conseguiu acertar o carro da polícia”.

“Na minha opinião, o torturador obedece a dois sintomas. Um é caso patológico, neurótico e demente que serve a uma visão de mundo também demente. Eu costumo fazer uma analogia e dizer que o provador de perfume francês só pode ser alguém com bom olfato.

Assim como uma pessoa normal, sem desvio patológico não pode ser um torturador. Além de ser cruel e desumano, o outro sintoma é o de obedecer a uma patologia política, por usar a tortura como método de interrogatório”.

SOBRE O ÓDIO

Senti (ódio) durante muito tempo. Logo que chegamos ao México, em 1969, ainda prisioneiros de nós mesmos, eu sentia muito ódio. Talvez mais que isso: era o desejo de vingança. Mas aos poucos fui vencendo esse sentimento. Costumo dizer que o marco foi o nascimento do meu filho no exílio. Ele me libertou do ódio e pude então sentir a vida se prolongar.

Mas o que me aplacou foi justamente o fato de ter escrito o livro “Memórias do Esquecimento”. Ele foi meu divã. Eu escrevi em Búzios e lá, durante o inverno, faz frio. Pois eu transpirava enquanto escrevia, suava, sentia calafrios, a ponto de ter que trocar de camisa.(…)

O ódio mata a quem odeia. O ódio é um instrumento de perversidade. O ódio estraçalha a quem odeia e não a quem é odiado. Hoje, eu diria que posso ficar irritado com pessoas, mas não odeio ninguém”.

Leia aqui a íntegra do texto publicado em 26 de janeiro de 2011.

Na entrevista, Flávio Tavares falou do documentário “O dia que durou 21 anos”, dirigido pelo seu filho Camilo, naquele momento em processo de produção. Aqui e aqui, links sobre o filme lançado com grande sucesso no final de 2012, versando sobre a ditadura e a influência dos Estados Unidos na conspiração para a mesma, com apresentação de Flávio Tavares


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