Sem lacunas

Jorge Mautner e Nelson Jacobina no Teatro Oficina, em agosto de 2011, no último show da dupla na capital paulista - Foto: Camila Picolo
Jorge Mautner e Nelson Jacobina no Teatro Oficina, em agosto de 2011, no último show da dupla na capital paulista – Foto: Camila Picolo

Vale a lembrança e explico o motivo. Em agosto de 2011, a Brasileiros produziu um Especial Homem. A ideia inicial era dedicar a Jorge Mautner uma entrevista de fôlego – na nossa cabeça, ele personifica um homem sensível, de comportamento livre. Mas um imprevisto deu fim ao plano. Ele e Nelson Jacobina, seu parceiro de décadas, estavam em São Paulo para apresentações no Teatro Oficina, e combinamos um encontro com a dupla, uma hora antes da segunda noite de shows no reduto antropofágico de Zé Celso. Quando os dois surgiram, esbaforidos, 15 ou 20 minutos antes do show, houve tempo apenas para a fotógrafa Camila Picolo fazer alguns retratos – um deles é o que abre este texto. Às vésperas do fechamento da revista e sem chance de remarcar o bate-papo, Mautner, gentilmente, se dispôs a escrever um artigo autobiográfico.

O episódio é relembrado aqui porque marcou a última apresentação em terras paulistanas do compositor na companhia de Jacobina. Violonista, guitarrista e coautor de clássicos como Maracatu Atômico, Lágrimas Negras e Cinco Bombas Atômicas, ele morreu em maio de 2012, aos 58 anos, em decorrência de um câncer. Foi figura indissociável para consolidar a produção musical do amigo Mautner, que surgiu na cena cultural brasileira como escritor, aos 15 anos, com Deus da Chuva e da Morte (lançado em 1962, é o primeiro de três livros que compõem a Trilogia do Kaos, intermediada por Kaos, 1962, e concluída com Narciso em Tarde Cinza, 1966).

Com a chegada da caixa Jorge Mautner Anos 80 – Zona Fantasma, as duas décadas mais expressivas da dobradinha Mautner/Jacobina, os anos 1970 e os 80, estão agora disponíveis em formato digital (em 2013, a Universal relançou na caixa Três Tons de Jorge Mautner a trinca setentista Para Iluminar a Cidade, de 1972, Jorge Mautner, 1974, e Mil e Uma Noites de Bagdá, 1976). Lançada pelo selo Discobertas, do pesquisador e produtor Marcelo Fróes, a caixa reúne quatro álbuns: Bomba de Estrelas (1981), Anti Mal Dito (1985), O Poeta e o Esfomeado (1987) e Árvore da Vida (1978).

Como a maioria dos títulos que compõem o catálogo da Discobertas, o novo recorte cronológico na discografia de Mautner cumpre o papel de possibilitar a reavaliação de trabalhos injustamente esquecidos. “Gosto de montar projetos que, como comprador, gostaria que alguém tivesse lançado. Procuro realizar o que ninguém fez e reeditar a discografia de Mautner dos anos 1980 parecia algo que ninguém pensaria, mas que na minha cabeça ficou mais que obrigatório depois que os títulos dos anos 70 ficaram bem resolvidos”, explica Fróes. A propósito do comentário, vale lembrar: em 2014, o produtor tirou do anonimato registros ao vivo do álbum Para Iluminar a Cidade. Realizados no Teatro Opinião entre os dias 27 e 30 de abril de 1972, no Rio de Janeiro, os shows resultaram no CD duplo Jorge Mautner ao Vivo – Para Detonar a Cidade.

Bomba de Estrelas (1981), primeiro título de Jorge Mautner Anos 80, foi marcado pela estratégia da gravadora WEA de reunir figuras ilustres na tentativa de descolar do compositor o rótulo de maldito e abrir novas perspectivas comerciais. Entre os convidados que também são parceiros de autoria estão Moraes Moreira (Namoro Astral e Tá na Cara), Robertinho do Recife (Encantador de Serpentes) e Zé Ramalho (Bomba de Estrelas, cantada por Amelinha). Outras duas composições de Mautner e Jacobina ganharam a voz inconfundível de Caetano Veloso (Cidadão-Cidadã e Vida Cotidiana).

Jorge Mautner Anos 80 - Foto: Divulgação
Jorge Mautner Anos 80 – Foto: Divulgação

A estratégia da WEA não atingiu a expectativa, e Mautner encarou um hiato de quatro anos até lançar seu novo título. Editado de forma independente pelo selo Nova República, Anti Mal Dito (1985) foi produzido por Caetano. Repleto de texturas eletrônicas – tão caras às produções do período – o álbum deixa insinuar que, mesmo longe das rédeas da grande indústria, Mautner pretendia falar para um público maior e sentia-se incomodado com o estigma que o perseguia, que reprova desde o título. Fato explicitado em depoimento feito à época do lançamento: “Os malditos, na verdade, são os benditos. São eles que promovem os avanços”. A declaração está incluída no texto de apresentação escrito pelo jornalista Renato Vieira, que também assina a abertura dos encartes dos outros três CD’s, todos com ficha técnica e projeto gráfico original.

Lançado em 1987, Jorge Mautner & Gilberto Gil, o poeta e o esfomeado flagra a dupla em momento utópico. Apresentado por eles em março daquele ano na capital paulista, o espetáculo esbanjou despojamento. Trazia apenas Gil, voz e violão, o percussionista Reppolho e Mautner, que fazia intervenções literárias e filosóficas. O mote principal para a reunião do trio era a criação do movimento Figa Brasil, que defendia a criação de clubes filosóficos ao redor do País. Cerca de quatro mil pessoas manifestaram apoio ao abaixo-assinado do movimento, mas também foram muitos os que não entenderam o propósito e saíram do espetáculo decepcionados com a escassez musical.          

Último álbum reunido na caixa, Jorge Mautner & Nelson Jacobina – Árvore da Vida (1988) promoveu o retorno à WEA, por meio da subsidiária Geleia Geral, selo coordenado por Gil. Gravado ao vivo em estúdio, o disco é composto de 12 canções, seis das quais inéditas. Como os outros títulos, merece sua atenção.


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