Estávamos nós dois no estúdio quando ela chegou. Já de robe e sandálias. Cumprimentou efusivamente o professor Nicola, que me apresentou como o assistente requisitado. Assistente? Não entendi aquilo, mas não disse nada. Ela logo foi para o sofá junto à janela. Com embaraço, despiu-se. Tinha formas artísticas. Sob orientação do professor Nicola, assumiu uma pose que poderia ser chamada frontal contemporânea. Con le gambe aperte, conforme disse o mestre. Estranhei aquilo, mas mantive a serenidade. Ele era um profissional.

Com segurança, posicionou nossos cavaletes muito próximos dela. Uns três passos. Pediu um momento de concentração e a lembrou da importância da imobilidade.

Começamos a sessão. Podia-se ouvir o carvão correndo no papel. A luz vinha da direita, o que tornava tudo muito mais fácil para mim, um canhoto.

Eu estava distraído, completamente imerso no desenho quando, para minha surpresa, o professor Nicola suspira cavalla tutta nuda. Aquilo só pode ter escapado da alma. Fiquei tenso, mas ele não demonstrou qualquer constrangimento. Ela sentiu o impacto. Vi em seus olhos, tão próximos.

Prosseguimos. Em meio à sessão, outra vez de forma inesperada, o professor rosnou gos-to-sa por entre os dentes. O efeito foi imediato. Como uma brisa que sopra um lago, o arrepio subiu pela canela dela, passou pelo ventre e subiu lá pra cima. Percebi leve orvalho em seu corpo. Corou, o rosto da mulher. Uma coisa impressionante. Ela se mexeu e disse: Estou nua, não estou pelada.

Immobile! Immobile!Ele disse com serenidade. Seguimos assim por mais uma hora. Então, fizemos um intervalo. Ela foi descansar na sala dele. Nós dois fomos tomar um café no bar do Hugo. Só aí as coisas ficaram claras.

Ela tinha dinheiro, era viúva e queria um registro artístico daquele corpo, que lhe propiciara tudo na vida.

Havia procurado o professor Nicola, figura maior do nu artístico nacional. Autor do clássico Anatomia per uso dei pittori e scultori. Era ele o afamado professor da Escuola di San Marco, que largara tudo por uma mulata.

Ele então me esclareceu a questão. O nu artístico é dissociado de intenções, de impulsos. A mulher pelada, por outro lado, pressupõe intenções, divagações. Há tensão na mulher pelada.

Naquele dia, ele enfrentava dificuldades. Ela pensa estar nua, mas na verdade está pelada. Só que uma pelada intimidada. Que assim oculta sua sensualidade e, portanto, parece nua, disse o mestre. Ele, profissional, precisava captar a sensualidade. Ela havia pedido isso na primeira entrevista. Por isso ele tinha dito aquelas palavras.

Ela havia também pedido a tranquilizadora presença de um assistente. Por isso eu estava ali. Ele ainda esclareceu que o efeito principal da palavra é na atmosfera e, portanto, no traço, que fica mais vigoroso. Quase raivoso. Gostei das explicações do mestre.

Voltamos para a segunda parte da sessão. Ela voltou orgulhosa, até imodesta, e assumiu a mesma pose. Nós fomos para outros ângulos e outras sombras. Passado um tempo de silêncio, o professor Nicola me solta um longo suspiro de-lí-cia. Ela arrepiou toda de novo. Do mesmo jeito. Realmente impressionante. Distraí e divaguei. De repente, o professor Nicola se voltou para mim e disse: Muito obrigado por sua assistência, nos veremos quarta-feira.

Assim, sem mais, abruptamente, fui jogado ao mar. Por sobre a balaustrada, sem qualquer aviso. Lá ficaram os dois. Ele em seu jaleco branco imaculado e ela em pelo. Que é ainda um outro tipo de nudez, claro.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura


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