Foi um incômodo rotineiro no trânsito de São Paulo que motivou o engenheiro Michel Friedhofer, 38, a criar a página Um Convite à Civilidade no Facebook. No dia 5 de novembro passado, quando voltava do trabalho, em Guarulhos, para casa, no bairro de Santa Cecília, centro paulistano, ele viu um motorista cometer uma infração média (4 pontos na carteira), porém comum: fechar o cruzamento entre as Ruas Mário de Andrade e Amaral Gurgel. Segundo Friedhofer, era evidente que o carro não caberia naquele espaço e, quando o sinal verde apareceu para os outros veículos, uma confusão se armou. “Esse é um comportamento de descaso, uma falta de noção do outro.”
Foi a gota d’água. Naquele dia mesmo, já em casa, Friedhofer criou um grupo no Facebook para questionar sobre situações desse tipo, que interferem na vida cotidiana. A experiência deu tão certo que, em fevereiro, ele criou uma página na mesma rede social, em que aponta os hábitos incorretos que estão incorporados ao dia a dia, como se fossem inofensivos, e propõe soluções. São pequenas mudanças que, segundo ele, podem gerar uma convivência mais harmoniosa em grupo. “Acredito que pequenas corrupções são um elemento vital para que a corrupção em grande escala prospere. Mas não fazemos isso com dolo”, afirma.
Brasileiros – Como surgiu a ideia de convidar as pessoas à civilidade?
Michel Friedhofer: No ano passado, percebi que as pessoas queriam falar sobre eleições, Copa do Mundo, assuntos como o conflito na Faixa de Gaza, mas os debates descambavam para algo triste: “O problema do Brasil é o brasileiro”. É uma conclusão que nos confronta com uma realidade dura, a de que somos os nossos próprios problemas. Pensei no que eu poderia fazer. Quando a gente confronta uma pessoa com um comportamento ruim, constrange essa pessoa, a reação é negativa. Por isso pensei no convite, que é mais inclusivo e gentil. Minha ideia é sugerir que as pessoas só se comportem de forma mais civilizada. Se toparem, ótimo.
O convite está restrito à internet?
Por enquanto, o principal canal de comunicação é o Facebook, mas outras formas de manifestação já estão aparecendo. Mandei imprimir cartões com o endereço da página e uma frase atribuída a Norman Schwarzkopf (general do Exército norte-americano, morto em 2012) que diz: “A verdade, no fundo, é que você sempre sabe a coisa certa a fazer. A parte difícil é fazê-la”. Distribuo esses cartões na medida em que me dirijo às pessoas. Quero criar um site para Convite à Civilidade porque tem muita gente sem acesso ao Facebook.
Você aborda pessoas na rua. É isso?
Sim, com frequência, mas não sempre. Em alguns casos, considero que seria uma invasão. Por exemplo: um fumante joga a bituca no chão, enquanto fala no celular. Não vou interromper a conversa para falar sobre civilidade. Não dá para ganhar todos os jogos. Esse é um dos pilares desse meu trabalho: não abraçar o mundo. Alguma coisa que faça a diferença é importante, mas não necessariamente fazer tudo, porque essa é a receita para desistir. Quando você pensa no trabalho que tem pela frente, com o tanto de gente que você tem de falar, convencer, explicar, o desânimo é inevitável.
Como reagem à sua abordagem?
Com relação ao lixo na rua, consigo fazer a pessoa voltar e pegar o lixo jogado em, no máximo, 30 segundos de conversa. Ela ainda volta e me agradece. Essa receita é focada em três princípios. Primeiro chegar pela frente, sem as mãos no bolso, exibir uma primeira mensagem visual de que não ofereço ameaça. O segundo é ser educado e o terceiro, que considero o “pulo do gato”, é confessar à pessoa sua hesitação em invadir o espaço dela. Isso desarma.
Como funciona?
Chego e falo: “Oi, tudo bem, prazer. Meu nome é Michel. Estava ali sentado e vi que você fumava um cigarro. Não queria constranger, nem tinha certeza se podia falar contigo ou não, mas tem uma lata de lixo logo ali. Posso pegar a bituca que você jogou no chão e colocar lá na lixeira?”. Pronto. O passo seguinte é quase sempre a pessoa falar: “Deixa que eu pego, você está certo. Obrigado”. Perceba que aí também está a ideia do convite, não de imposição. As pessoas não fazem essas coisas com intenção de lesar, de dolo. É um descuido, um descaso. Elas jogam a bituca no chão e nem percebem o que estão fazendo.
Esse tipo de comportamento é genuinamente brasileiro?
Não. Mas, nós, brasileiros, estamos insatisfeitos com o problema. Esse trabalho não é por causa de uma crítica que vem de fora, mas de dentro. Queremos melhorar alguns dos nossos comportamentos. Defendo a tese de que a maneira como nos comportamos nas pequenas coisas, como atravessar a rua, se relaciona com a percepção de corrupção. Isso se explica ao considerar que uma regra simples pode ser flexibilizada. Por isso acredito que existe um poder enorme na consequência de corrigir essas pequenas falhas.
As pessoas são, de certa forma, responsáveis por parte da corrupção?
Pequenas corrupções do cotidiano são elemento vital para que a corrupção em grande escala prospere. Mas não acho que fazemos isso com dolo. A maioria de nós não sabe que existe essa relação causal entre o nosso comportamento e a autorização implícita que isso dá a desvios de maior monta.
Você tem posição política?
Tenho, mas não a discuto para não macular o convite à civilidade. O conceito de civilidade é suprapartidário. Você pode ser de esquerda ou direita e se comportar bem ou mal.
Você sente algo especial em praticar essa “conscientização”?
Sinto alegria e satisfação pessoal quando percebo que estou tendo um impacto positivo na vida de alguém. Conversando com uma amiga sobre isso, ela me disse que existe uma explicação neuroquímica: ao praticar o altruísmo, a pessoa ativa alguns centros poderosos de prazer no cérebro. Não sei se isso é verdade, mas convido todas as pessoas a experimentarem essa sensação. É algo incrível e o mais importante: é simples e não custa nada.
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