No fio da navalha

Se você estiver em Bristol, cidade a 90 km de Londres, e for convidado a conhecer um bairro chamado Stokes Croft, vai ter a sensação de que está caminhando pelas ruas da nossa badalada Vila Madalena. A analogia vale também para o cidadão de Bristol que estiver em São Paulo. A comparação será inevitável para ambos: lá, os grafiteiros são os reis da rua e, como aqui, estão nas paredes, muros, prédios, viadutos, calçadas, enfim, onde houver espaço pedindo para ser ocupado por esse tipo de manifestação artística, que surgiu no Império Romano e só recentemente, nos anos 1970, começou a ganhar identidade e reconhecimento público.

A globalização talvez explique as semelhanças de comportamento desses guetos que proliferam com incrível velocidade por todos os continentes. Reparem nessas imagens e tirem suas conclusões. O grafite da página 51 domina a paisagem em um muro da Vila Madalena, em São Paulo. É homenagem do coletivo Armamento Visual e do artista Mundano à brasileira militante política Espertirina Martins. Nascida em família anarquista de Lajeado, sul do Brasil, aos 15 anos ela foi heroína de uma manifestação de operários que protestavam por melhores salários. Armada com um buquê de flores camuflado de dinamites, Espertirina lançou o artefato contra a tropa de policiais. Na explosão, dois soldados morreram, a tropa debandou e a Greve dos Braços Cruzados saiu vitoriosa. O inglês Banksy ainda não havia nascido quando a gauchinha morreu, aos 40 anos, em 1942. O grafite na página 50 é dele, artista tão enigmático no seu anonimato quanto o desejo de seus milhares de fãs em conhecê-lo, e especialmente da polícia inglesa em capturá-lo.

No Brasil, até recentemente o grafite também era visto como arte marginal e artistas como Alex Vallauri, um de seus precursores por aqui e respeitado internacionalmente, precisavam ser malabaristas para driblar a polícia. Assim como em outros países, o grafite chegou ao Brasil nos anos 1970/1980, vindo dos Estados Unidos, onde as gangues de garotos marcavam território escrevendo seus nomes e números de suas ruas. O expoente desse cenário foi um garoto de Manhattan, um office-boy de 17 anos que morava na 183rd Street e circulava de metrô pela cidade. Seu nome é Demetrius, mas ele passou a assinar suas obras como Taki 183 e essa visibilidade chamou a atenção do jornal New York Times, que o entrevistou. Tornou-se ídolo de seus pares e conquistou centenas de seguidores, que igualmente queriam sair do anonimato e Taki 183 foi elevado à condição de “pai” do grafite nos Estados Unidos.

Mesmo com o status obtido por Takis 183, tudo continuava sendo feito com rapidez, ousadia e precisão, como provam os melhores grafites da história, a maioria produzida na ilegalidade. O senso de perigo turbinava os artistas que corriam de um vagão de metrô para o outro e transferiam essa emoção para o observador. Como em um thriller, a sensação de vertigem subia a temperatura, hoje quase zerada em obras chanceladas pelas instituições ou órgãos públicos.

 

No caldeirão dessa arte que incomoda, excita e faz pensar, em 1977 nomes como a americana Jenny Holzer, hoje uma das estrelas do mercado internacional, começou a criar frases curtas e irônicas que não eram poesia nem cabiam em livros. Por exemplo: “A propriedade privada criou o crime”; “Quem pensa que é importante é louco”; “Divirta-se, já que você não consegue mudar nada”. Sem saber bem o que fazer com aquilo, começou a pregá-las nos muros. Mais tarde, chegou a fazer parceria com a legendária Lady Pink, uma das raras mulheres a ascender no mundo do grafite. O resto da história o mercado da arte conhece. Holzer tornou-se uma das queridinhas da América, ganhou o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, em 1991, e sua participação provocou frisson e longas filas diante do pavilhão. Seus preços subiram astronomicamente. A artista esteve no Brasil em 1999 e expôs suas instalações no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Outros eleitos chegaram ao topo, mas precisaram correr muito da polícia, dormir sobre os trabalhos antes de serem descobertos por alguma celebridade como Keith Haring, Jean-Michel Basquiat e Kenny Scharf. Cada um com seus questionamentos chegou ao topo, frequentou o jet set, expôs em galerias badaladas e dividiu opiniões sobre a eficácia de sua street art entre quatro paredes. Havia críticos decepcionados, parte deles estava totalmente domesticada. Muitos artistas acostumados com a liberdade da rua não suportaram a pressão do mercado, como Basquiat.

De qualquer forma, eles abriram o caminho do grafite, especialmente em direção à Europa. Em Berlim, os 165 km do antigo muro que dividia a cidade transformou-se em uma grande tela. De lado a lado, todos lucraram com essa arte selvagem que se espalhava pelos bairros de Kreuzberg (lado Ocidental) e Mitte (lado Oriental). Até o reacionário Museu Checkpoint Charlie, antiga passagem pela polícia federal ocidental, não ficou fora do modismo e criou o concurso Liberdade e Paz. Convidou artistas renomados e, para surpresa, muitos aceitaram como Wolf Vostell, figura-chave do politizado Grupo Fluxus, que esteve na Bienal de São Paulo em 1985. Ali, a arte de rua cedeu a tudo: coleira e adestramento. E hoje, o grafite é visto como uma manifestação artística tão popular que até mesmo aqueles que criticavam os grafiteiros  agora correm atrás deles para oferecer espaço público, tinta e oficialidade.

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