As águas nos levaram à Nautilus, na Ilha Grande (RJ), para uma visita técnica faz alguns meses. Um lugar paradisíaco para os sentidos. Longas trilhas fora e dentro do mar, ao som do jazz da mata e das águas. Grito internamente lá do fundo do mar: “Socorro”. Parecia que meu corpo todo estava dentro de uma camisinha, extremamente apertado da cabeça aos pés, a uns 8 m de profundidade. Que vida marinha! Eh! Converso telepaticamente. Cavalo marinho, polvo, tartaruga, peixes… Quero tirar a camisinha e ser um deles pelo menos por um instante! Continua me apertando! Olho para cima e imagino se o teto do nosso quarto fosse assim.

Vou em direção a ela, movimentando o corpo lentamente no vai e vem, vai e vem do pé de pato, respirando sem gastar muita energia, quero romper esse hímen. Quase chegando lá. Nossa! Não aguento mais… Jorrei todo oxigênio até a última gota de ar. Renovei-me com o ar de Deus. Voltei a ser! Respirar! Quero voltar novamente, já sinto saudade! Silêncio do jazz das profundezas! Quero essa comunicação.

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Deparei-me de repente com Tsuruko san. Saí do mar para entrar em outro filme: Era uma vez em Tóquio (Tokyo Monogatari ou Tokyo Story), do grande diretor Yasujiro Ozu, gravado em 1953 – recomendo, é uma obra prima! E essa senhora com seus quase 80 anos, que lembra a batian (vovó) sensível com muitas passagens memoráveis no DNA. Ela e a família cuidavam da produção de sardinhas secas (iwashibushi), que até hoje são encontradas na Liberdade – que, por sinal, dá um dashi (caldo base para os pratos japoneses) delicioso! A estrutura da época existe até hoje, abandonada de um período sem luz, de muito trabalho e luz humana.

Hoje, já em parceria com as filhas e Kazuo (genro), ela cuida de uma bela produção de vieiras, algas e do Projeto Bijupirá (peixe do presente e do futuro), entre outras coisas. Momento zen para um aprendiz de cozinheiro perante a experiência de Tsuruko san: ela simplesmente me convida para um tour pela sua cozinha.

Lágrimas! Bem na minha frente, na estante na altura dos meus olhos, estavam as caixinhas feitas de madeira para o preparo do tofu. É incrível! Muita dedicação. Quero dividir com você o que sai das mãos dessa senhora: tofu feito com água do mar. Ela prefere as sojas de tamanho médio que, dependendo da época, ficam 12 horas, em média, submersas na água no cantinho sagrado da cozinha, até que ela comece a se despir (a se soltar da casca). No dia seguinte, ela lava em água corrente para, aí sim, entrar no liquidificador para poder coar e colher o leite mais saudável que eu conheço e adoro. Ela, em tom firme, grita, como o nosso irashaimase aqui no restaurante Kinoshita: “Murakami kun (quando tem kun ou tyan no final do nome, quer dizer Murakamizinho), leve o leite ao fogo!”. Respondo: “Hai” (sim).

Invoquei o fogo, que logo começou a ferver subindo a espuma. Depois de alguns minutos, a vejo com a água do filtro tentando abaixar a espuma em câmera lenta superconectada. Percebi logo o amor!

Entra Kazuo (o genro) com a água do mar em uma jarra grande, estabanado e pingando pelos lados. Elemento-chave para a formação do tofu, que vai penetrando em doses homeopáticas – essa água que tem tantas memórias vai dando sentido e liga para Tsuruko san. Com as costas meio curvadas, continua acrescentando a água do mar. Fui presenteado com o yudofu (tofu quente), mas tenho de dizer que é dez vezes mais macio que qualquer yodofu experimentado até hoje na minha vida – isso sem shoyu (molho de soja) e sem shoga oroshi (gengibre ralado), só com a água do seu cozimento. Maravilhoso! Deixarei você, caro leitor, com mais água na boca. Na verdade, era uma textura de tofu quase se formando. Imagine você comendo com uma colher japonesa (a madeira toca diferente na língua) e tomando o caldo junto em um dia de solidão, como na profundeza do nosso próprio mar.

Escuto agora o grito do tofu: “Brasileiros! Eu existo”.

P.S.: Venha conferir o novo cardápio do Kinoshita! Com uma grande homenagem a Tsuruko san!

Yoroshiku!


*Kappo Cuisine é o conceito que Tsuyoshi Murakami trouxe ao Brasil e tem como base a transparência, o cozinhar em frente ao cliente e o uso de alimentos sazonais. Murakami é sócio e chef do restaurante Kinoshita, em São Paulo. murakami@restaurantekinoshita.com.br


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