O avalista da utopia

Juscelino Kubitschek de Oliveira, o criador de Brasília, foi, na vida e na política, filho da dificuldade. No entanto, trafegou por ambas com aquele que avaliza a confiança e que precede a tolerância.

Nasceu pobre, em Diamantina, norte de Minas Gerais, dia 12 de dezembro de 1902. Sua mãe, Júlia, professora primária, ficou viúva do marido garimpeiro e boêmio quando Juscelino – o Nonô – não tinha senão três anos. Quando foi eleito presidente da República, em outubro de 1955, num pleito tão crispado que sua posse só se deu com aval militar, Juscelino ainda estava, portanto, a caminho de completar 53 anos. Sua idade ajuda a entender sua inesgotável energia.
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Percurso clássico de menino do interior: estuda com os padres lazaristas, tenta então um concurso público. Passa: vira telegrafista na capital, Belo Horizonte. Candidata-se à Faculdade de Medicina, em 1922. Termina o curso em 1927. Faz estágio em Paris, mas logo a Revolução Constitucionalista de 1932 irá encontrá-lo, na contramão dos revoltosos, como oficial-médico da Força Pública mineira, junto aos legalistas, na divisa com São Paulo. Abre consultório, a clientela engorda, mas a política começa a acionar seus cantos de sedução: o interventor Benedito Valadares o quer como secretário de Governo. Juscelino reluta, mas aceita. Já casado, promete a dona Sarah que ficará “uns dois ou três meses”. Elege-se deputado federal em 1934. Em 1937, o golpe de Getúlio cassa seu mandato.

De novo hesita, mas de novo cai sobre ele a persuasão de Valadares: agora ele o quer prefeito nomeado de Belo Horizonte. Juscelino e desafio passam a ser quase sinônimos. Em 1940, a capital de Minas tem 43 anos de idade e uma população que cresce exponencialmente: 211 mil habitantes. Belo Horizonte precisa achar as válvulas de escape de sua expansão. É com Juscelino: ele vislumbra o potencial de um bairro remoto e infectado, a Pampulha, e com a ajuda fortuita de um arquiteto carioca que lhe passou por perto cria um deslumbramento de formas e contornos ao longo de uma lagoa artificial. O arquiteto chama-se Oscar Niemeyer.

Constituinte em 1945, governador de Minas em 1950. O Nonô da dona Júlia, agora aninhado no PSD, o partido das raposas manhosas, tem na alma a comichão do poder e se aventura por um caminho que os adversários, desconfiados de sua amizade por Getúlio Vargas, querem lhe barrar. Insiste, disputa e vence a eleição presidencial de 3 de outubro de 1955. Eleição equilibrada, JK tem 36% dos votos. A oposição tenta impedir a posse, alegando que lhe faltou maioria absoluta. O golpe falha pela ação do general Henrique Lott. Juscelino assume e dá curso aquela ideia antiga que lhe caiu no colo, por acaso, durante a campanha: a nova Capital. “Uma conjuração de loucuras”, como definiu o amigo e também mineiro Otto Lara Resende.

O historiador Cláudio Bojunga (em JK, O Artista do Impossível, Editora Objetiva, Rio, 2001) narra esse diálogo entre uma carioca irritada e o presidente da República:

– Mas o senhor vai construir a capital num deserto… Isso é um absurdo.

– Não, minha filha. O absurdo é o deserto.

Cumpriu o que prometeu e, além de inaugurar Brasília, entregou a faixa presidencial ao sucessor legitimamente eleito, seu feroz adversário Jânio Quadros. A partir daí, até sua morte trágica, em agosto de 1976, num acidente de automóvel mal explicado, na Via Dutra, seu sorriso foi se desvanecendo, ao sabor das adversidades da política – o movimento fardado de 1964, o sonho frustrado de voltar em 1965, sua cassação, o exílio – mas o humor afiado, assim como a simpatia cativante, nunca o abandonaram.

Na presidência, enfrentou dois levantes militares e anistiou os rebelados. Político que acredita em tolerância e otimismo é ave rara no meio daquela fauna. Juscelino fez disso – e de Brasília – seu propósito e sua crença. Certa vez comentaram com Oscar Niemeyer, companheiro de estrada de JK em outras aventuras utópicas, o enigma daquela amistosa convergência entre o comunista e o liberal. “Nunca discutimos política”, afirmou o arquiteto. “Nem a minha, nem a dele”.

Este texto foi publicado no livro Palácio da Alvorada – Arquitetura e História (Editora Adroitt Bernard, 2009, patrocínio Camargo Corrêa)

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