“Era meu desejo dirigir um filme no Chile”, revela Jorge Durán

Foi na manhã do dia 5 de dezembro de 1973, já da janela do avião da extinta Varig, que o diretor de cinema Jorge Durán, 73, viu o Chile pela última vez como sua casa antes de sair para sempre do país que lhe serviu de pano de fundo para a infância, a adolescência e boa parte da mocidade. A repressão militar abrupta implantada pelo general Augusto Pinochet havia tomado o poder cerca de três meses antes ao bombardear o Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, motivando o suicídio do então presidente, o socialista Salvador Allende, de modo que a sua a fuga foi rápida: um primo, policial civil, conseguiu-lhe uma autorização imediata para a saída pelo principal aeroporto do país, em Santiago. Ele só voltaria para a terra natal seis anos depois, em 1979, contra a vontade da família.

Após 41 anos em que essa história aconteceu, Jorge Durán cumpriu nos últimos dois anos o que pode ser considerado o seu segundo retorno ao Chile: voltar a dirigir uma obra cinematográfica em seu país de origem, trabalho que se cumpre com Romance Policial, com estreia marcada para os primeiros dias de junho no Brasil.

Nele, o ator brasileiro Daniel de Oliveira (Antônio) contracena com a chilena Daniela Ramírez (Florência) em San Pedro de Atacama, cidade turística localizada no deserto do Atacama, no Chile, próxima ao limite fronteiriço com a Bolívia. É um thriller em que Antônio – um desiludido escritor carioca – viaja pelo deserto em busca de inspiração para escrever um livro. Durante a estadia na cidade chilena, presencia um crime em um território isolado, que acaba por lhe tornar um dos suspeitos pela polícia local. No entanto, ao invés de tentar provar sua inocência, Antônio inicia uma investigação por contra própria enquanto tenta escapar das investidas do delegado Martínez (Álvaro Rudolphy), que tem ligações estranhas com Florência. 

“Sempre ia ao Chile e ficava com vontade de montar um projeto lá, principalmente nos anos em que, durante o governo Collor, me convidaram para escrever uns roteiros para a televisão chilena. Foram uns três anos em que eu fiquei na ponte-aérea entre Santiago e Rio de Janeiro e viajava pensando nisso”, revela Durán nessa entrevista exclusiva à Brasileiros (a resenha de Romance Policial está na edição de maio de Brasileiros):

Brasileiros – A imprensa repercutiu que, em Romance Policial, o senhor voltou a dirigir no Chile após quase 40 anos. Nos quatro filmes que o senhor esteve na direção, no entanto, não há uma imagem sequer feita em território chileno. Qual foi, de fato, o último trabalho em seu país?
Jorge Durán: Fiz muitos trabalhos no Chile, seja no teatro ou no cinema, antes de viajar para o Brasil em definitivo. Eu já havia escrito alguns longas-metragens, filmes para a televisão, curtas-metragens e seriados educativos, além de participar de oficinas. Quando eu cheguei aqui, me concentrei em ganhar a vida de alguma forma, procurando dinheiro para sobreviver. Só melhorou quando o Jece Valadão me convidou para dirigir um piloto de 50 minutos de um seriado de televisão chamado Escolhido de Iemanjá, que foi um bom contrato. Em seguida, fiz A Cor do seu Destino, que ainda carregava uma grande referência ao Chile. O protagonista é fruto dos dois países e, portanto, de dois sentimentos. Tanto que esse filme é falado 50% em português e 50% em espanhol. Para mim, Romance Policial não é um retorno ao meu país, porque eu apenas fui rodar um filme lá. Do meu ponto de vista, é um filme brasileiro rodado no Chile, principalmente porque o protagonista – o ator Daniel Oliveira – é brasileiro. Na verdade, voltei a rodar um filme lá por um motivo bem específico: eu conheço bem aquela região do deserto do Atacama. Vou lá há 25 anos, minha casa chilena é lá, minha filha mora lá, trabalha lá, minha família e meus amigos são de lá e, então, a ligação é muito forte. Fora que eu tenho bons contatos lá em termos de produção. Com um orçamento de médio para pequeno que eu tinha para dirigir Romance Policial, não teria conseguido rodá-lo nem no Rio de Janeiro ou algum outro lugar distante, como o Nordeste brasileiro. Em San Pedro do Atacama, no Chile, ainda que exista um mercado de turismo caro, eu tenho bons amigos que me ajudaram neste momento de gravar. O elenco e os técnicos que eu precisava me saíram muito mais em conta no Chile do que seria aqui. Assim, consegui rodar um longa e ao mesmo tempo não gastar muito. Foi uma aventura, em meu ponto de vista, muito bem pensada.

A casa do senhor no Chile fica em San Pedro do Atacama?
Sim. Vou sempre que eu posso para lá. Gosto muito do lugar. Aliás, há também uma questão logística em rodar o filme em San Pedro: lá não chove, não passa avião, não tem antena de rádio ou qualquer outro empecilho que existem em outros locais de locação. Lá você sai para filmar e filma, sem medo de chover ou do céu ficar encoberto. Não precisa ficar esperando o avião passar, a nuvem mudar de direção, o vizinho parar de martelar a parede, essas coisas. O máximo que pode acontecer é uma tempestade de areia, mas nada violento. É só se abrigar em algum lugar por um tempinho. Então, conhecendo a região e alguns lugares que seriam interessantes de filmar, acabei definindo há algum tempo que queria um filme lá. Eu diria que a história nasceu lá.

Quais foram seus últimos trabalhos, de fato, no Chile?
O penúltimo foi um filme do [Konstantinos] Costa-Gavras chamado Estado de Sítio, que fala sobre os sequestros de um agente norte-americano e de um cônsul brasileiro no Uruguai, na década de 70, pelo movimento guerrilheiro Tupamaros. Ele foi rodado no Chile e eu fui assistente de direção. O último eu era sócio da produtora, chamava-se Queridos Companheiros e falava de um dirigente da esquerda radical chilena. Quando começamos a montar o set veio o golpe, e aí você pode imaginar como ficou difícil rodar um filme deste tema. Logo em seguida, nossa produtora foi invadida, a coisa ficou cabeluda e eu precisei sair do país depois de chegar a ser preso. Resolvi vir para o Brasil porque eu era casado com uma brasileira, a Fernanda, e tinha um filho com ela, o Pedro.

Era um desejo antigo filmar no Chile ou foi apenas uma consequência do roteiro?
Era um desejo. Passei seis anos trabalhando intensamente no Brasil e sem poder voltar ao Chile. Era realmente uma vida de imigrante, como dizem: trabalho, trabalho e trabalho. Naquele ano de 1974 havia muito cinema no Brasil e, como eu tinha a experiência do teatro, inclusive formação universitária, e também no cinema, agarrei com os dentes todas as oportunidades que tive. Quando saí do Chile, todo mundo estava muito preocupado, porque eu já tinha feito esse filme com o Costa-Gravas, tinha feito outros que só falavam de política do governo e, além disso, eu era um militante socialista. Depois que fui preso, não imaginava que ia viajar, mas também não tinha noção do que ia fazer lá, porque cinema ninguém estava fazendo. Foi quando me pressionaram para cair fora. Peguei um avião para cá de um dia para o outro. Mas eu sempre ia ao Chile e ficava com vontade de montar um projeto lá, principalmente nos anos em que, durante o governo Collor, me convidaram para escrever uns roteiros para a televisão chilena. Foram uns três anos em que eu fiquei na ponte-aérea entre Santiago e Rio de Janeiro e viajava pensando nisso.

Durán orientando Daniel de Oliveira e Daniela Ramírez durante cena de Romance Policial - Foto: Elizabeth Escobar
Durán orientando Daniel de Oliveira e Daniela Ramírez durante cena de Romance Policial – Foto: Elizabeth Escobar

Há alguma ligação entre o personagem Paulo, de A Cor do Seu Destino, e Antônio, de Romance Policial? Os dois, em seus tempos e espaços, estão buscando respostas para algo e, nessa busca, há o espectro do Chile.
Sempre digo que, na verdade, se há uma única coisa sobre mim em A Cor do Seu Destino é que é um filme que não fala tanto sobre política, mas mais sobre a adolescência, sobre um artista jovem e não um jovem artista, ou seja, não é aquele cara que pinta bem, que faz boas esculturas, mas que depois se torna engenheiro ou qualquer outra profissão. Poderia ter algo nesse sentido de ligação comigo, que comecei a fazer teatro com sete anos. O resto foi coletado de experiências de pessoas que conheci, histórias que ouvi e que poderiam ser refletidas em um filme. Aquela coisa de ter saudade de um lugar e não poder ir até ele, por algum tipo de impedimento. Naquele ano de 1986, o Chile estava muito perto do fim da ditadura, então tem muito a ver com histórias que eu conheço e não com histórias que eu vivi. 

O senhor foi repudiado por aquela cena de A Cor do Seu Destino em que o protagonista, Paulo, joga uma lata de tinta em um quadro de Augusto Pinochet? Ele estava no poder ainda.
Vou te dizer que não tive nenhuma consequência com essa cena. Aliás, ganhei um monte de prêmios com esse filme no próprio Chile e, aqui no Brasil, a crítica foi muito positiva a respeito da fita.

Mas o senhor considerou a possibilidade de reação do governo chileno?
Não. Não pensei nessa possibilidade, mas eu tomei certo cuidado ao não convidar uma atriz chilena para um dos papéis, como eu queria inicialmente. Eu sabia que uma atriz do Chile ficaria exposta lá se o filme fosse mal visto pelo governo e tratei de evitar. Assim, chamei a Julia Lemmertz, por quem sempre me interessei. Passamos alguns textos, ela aprendeu a falar espanhol durante quatro meses com amigos meus chilenos e, aí, fez o papel que eu daria a uma atriz chilena. Fora isso, não tive esse sentimento.

Mas o senhor não pode negar que, na cena em que o protagonista joga a lata de tinta no rosto do Pinochet, um pouco do senhor estava ali.
Ah, era intransferível (risos). O engraçado é que esse plano não estava escrito para entrar no filme. O que estava planejado era a entrada do Paulo, protagonista do filme, no consulado chileno no Rio de Janeiro e, em seguida, ele jogar a lata de tinta vermelha no cônsul. Aí durante as filmagens eu vi o quadro do Pinochet na parede, me entuasiasmei e falei: “vamos jogar uma lata de tinta nesse marginal aí” (risos). Originalmente eu não tinha planejado. 

Há alguma ligação entre o personagem Paulo, de A Cor do Seu Destino, e Antônio, de Romance Policial? Os dois, em seus tempos e espaços, estão buscando respostas para algo e, nessa busca, há o espectro do Chile.
Sim, os dois têm um vínculo: a memória que coloca em movimento a vontade de expressar alguma coisa. No caso de Paulo, é a memória que o move permanentemente a desenhar nas paredes, a criar esculturas e de, finalmente, querer voltar ao lugar onde ele perdeu o irmão. O Antônio, por sua vez, é um homem que escreve, mas que ainda não arriscou com profundidade na vida. O encontro com deserto do Atacama o faz ir fundo. Tem uma cena característica em que ele, respondendo a uma indagação da sua companheira chilena em San Pedro do Atacama, diz: “agora é para valer. Nunca me interessei por nada no mundo, mas agora é diferente”. Essa cena diz muito. Ele encontra um homem morto e quer ficar ali até o final para ver o que vai acontecer com a história. A paisagem que ele vê, os campos petróglifos, a vegetação, põe em movimento a memória dele. Paulo e Antônio, então, têm um vínculo forte.  

O senhor, em particular, teve algum tipo de experiência parecida ao bloqueio criativo de Antônio, em Romance Policial?
Acho que é comum haver um bloqueio criativo depois de elaborar um roteiro, claro, dependendo da pessoa. Sou muito monotemático. Quando estou concentrado em uma coisa, não consigo fazer outra, ainda que essa outra esteja rodando por aí. Não consigo me concentrar em mais do que um assunto. Assim, em geral, ainda que eu tenha algumas coisinhas na cabeça, algo anotado em um bloquinho qualquer, quando termino um trabalho me sinto vazio, confuso e se torna tudo muito vago. Às vezes sou convidado a escrever um roteiro justamente nestes períodos e fico pensando que não vou conseguir. Então, a outra parte de mim responde: “ué, mas você nunca deixou um trabalho sem terminar”. A saída para isso é uma viagem, ainda que no Estado do Rio de Janeiro mesmo, sem período de regresso enquanto não colocar essas ideias em ordem. O trabalho de escrever é difícil, que demora quatro, cinco meses, então é necessário um momento como esse. Depois volto, sento, começo a escrever e não paro mais.

O senhor disse, em 2012, que a trama original de Romance Policial era pra ser literatura, mas acabou ocasionalmente virando roteiro de cinema. Ainda tem o desejo de escrever um livro?
Tenho vários romances inacabados. Tenho muito desejo de escrever um livro, mas já compreendi que não tenho essa vocação. Agora mesmo eu estou desenvolvendo um texto que deve estar com umas 35 páginas e que está tomando um rumo que eu nem saberia explicar.

Mas o senhor tem alguma inspiração literária em especial?
Sou de uma geração leitora. Minha mãe comprava muitos livros, como O Vermelho e o Preto, de Stendhal, ou A Montanha Mágica, de Thomas Mann, que eu li com sete anos. A minha maior inspiração, no entanto, sempre foi o Shakespeare. Leio e releio suas obras sempre, principalmente Hamlet, obviamente por minha paixão por teatro. Gosto muito de escritores brasileiros também, como Graciliano Ramos, que é meu preferido, e Daniel Galera e Sérgio Sant’Anna entre os atuais, além de alguns argentinos.

O cinema brasileiro em geral se tornou mais popular nos últimos anos, enquanto o chileno, me parece, permaneceu naquele espectro de discussão, como é o argentino. Um filme exemplar desse período é Machuca. O Brasil está em outro polo cinematográfico que os vizinhos?
Noto que o cinema chileno é muito variado, mas que lá eles gostam muito de filmes de terror, de vampiro, algo que não daria certo por aqui. Essas produções são realizadas por jovens cineastas que, é importante salientar, não encontram o problema dos custos de importação de equipamentos como nós encontramos no Brasil. Então, eles têm material para rodar esse tipo de filme. Vi alguns filmes chilenos que jamais passarão no Brasil, mas tem outros que chegaram aqui, como No, como Gael García Bernal, e Tony Manero. Os filmes brasileiros também são variados, mas têm uma ligação forte em retratar a vida da classe média, como Casa Grande, que é um filmaço e que fala justamente sobre as pessoas nessa classe social. Acho bom que existam essas comédias populares também, porque é saudável mostrar outras realidades brasileiras, que são muitas pelo problema da desigualdade. Não precisa ficar falando de política o tempo inteiro. As pessoas querem ir ao cinema para se divertir, assim como eu queria quando ia ver filmes nos meus 12 anos.


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