Brasília não é a única cidade artificial brasileira, construída a partir de um projeto. Foi assim com Belo Horizonte, São Luís, Belém, Teresina e até com o Rio de Janeiro. A diferença é que Brasília surgiu absolutamente do nada, oca, antecedendo os habitantes, nos confins do País. Ela despontou, como se sabe, dos desenhos do urbanista e arquiteto Lucio Costa e do também arquiteto Oscar Niemeyer. Papel, lápis, caneta e liberdade. Eis tudo. O primeiro esboço do Plano Piloto foi riscado em um papel comum, que a filha de Lucio, Helena, foi comprar em uma papelaria simplória. Então, Lucio traçou duas retas: “Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.
Seis desenhos originais de Niemeyer, outros seis de Lucio Costa e, ainda, oito de Athos Bulcão, especialmente criados para a Capital Federal, foram transformados em serigrafias e estarão expostos no SESC Pinheiros, de São Paulo, até 30 de maio.
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Batizada Brasília Cinquenta Anos, a mostra seguirá depois para outras cidades, ainda não agendadas. Paulo Sabino, o organizador da exposição, preferiu não interceder com textos explicativos. “A intenção foi enaltecer o valor artístico e não o contexto histórico”, diz.
De fato, o que se vê são mais que projetos. São arte.
Poesia concretizada
Injustamente esquecido na comemoração dos 50 anos de Brasília, Joaquim Cardozo, o engenheiro-civil responsável pelos cálculos estruturais do Congresso e dos palácios da Alvorada e do Planalto, entre outros projetos da capital, escreveu: “Não visualizo qualquer incompatibilidade entre arquitetura e poesia. As estruturas planejadas pelos arquitetos modernos são poemas. Trabalhar para que se realizem esses projetos é concretizar poesia”. A propósito, Joaquim, que morreu em 1978, aos 81 anos, foi
poeta. E dos bons. Foi homenageado por João Cabral de Melo Neto com o nome de um poema.
O mais fácil nos cálculos? As paredes. Bastou erguê-las em fina espessura, como gosta Niemeyer, e deixá-las livres para os mosaicos geométricos do artista plástico Athos Bulcão.
Athos tinha nome de mosqueteiro e alma de desbravador. Em 1958, pisou o barro vermelho do cerrado, olhou para o alto e descobriu: aquele lindo céu tinha a cor de um azulejo improvável. Para realçar ainda mais a luminosidade do Planalto, seu apartamento, na superquadra 315 sul, era todo branco – até mesmo o piso. Athos morreu aos 90 anos, em 1998. Debaixo do céu de Brasília.
Em busca da utopia
Se Athos morou em Brasília, Lucio Costa voltou à Capital Federal raríssimas vezes. “Como um escritor que publica um livro, já não é dono de seu destino”, escreveu Fernando Sabino a respeito. Depois de inaugurada a cidade, Lucio ia Brasília a contragosto, cofiando os longos bigodes.
Ele desiludiu-se. Imaginava outro futuro para a cidade. “Queríamos evitar a odiosa separação entre bairros ricos e bairros pobres”, disse a Sabino, no apartamento no Leblon, onde viveu por décadas. E acrescentou: “Os privilegiados ocuparam todas as áreas, os pobres que se arranjem, continuarão sendo subpessoas”.
Lucio morreu em 1998, aos 96 anos, no Rio. Foi um sujeito tão íntegro que armou um escarcéu em 1939, quando ganhou o concurso para o pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York. O motivo da revolta: considerava o projeto de Niemeyer melhor que o dele. Jamais o governo havia passado pela situação de alguém empenhado em alterar o resultado de um concurso que havia vencido. Por fim, uma solução conciliatória. O projeto acabou assinado em conjunto, por Lucio, Niemeyer e pelo alemão Paul Lester Wiener.
Mas Lucio insistia: a obra era de Niemeyer.
Uma autocrítica
Ainda quintanista de Arquitetura, Niemeyer começou a trabalhar no escritório de Lucio Costa. Hoje, tem 102 anos e uma franqueza também longeva. Assim como o velho mestre, vê tortuosa distância entre o projeto inicial de Brasília e o que dele se fez no decorrer dos anos. “Quando a cidade foi aberta para os negócios, os barões do dinheiro chegaram por cima, como sempre acontece”, disse Niemeyer ao crítico alemão Hanno Rauterberg
Perante o comentário, o entrevistador quis saber do arquiteto se ele gosta de Brasília. A resposta: “Eu gosto do Rio. Em Brasília, você sai do hotel para a rua, e volta correndo para o hotel. Se eu pudesse planejar a cidade de novo, construiria o Congresso Nacional e a Praça dos Três Poderes exatamente como são. Apenas haveria mais prédios de apartamentos, escolas e lojas. E não faria aquelas ruas largas com todos aqueles carros. As pessoas poderiam ir a pé para todos os lugares”.
Se o próprio Niemeyer faz uma autocrítica – essa palavra tão cara aos comunistas da sua geração -, outros arquitetos também têm lá suas restrições à Brasília. Mas só os chatos não aplaudem a beleza. E a ousadia.
Redenção espiritual
Uma das críticas ao projeto de Brasília parte do britânico Kenneth Frampton. No livro História Crítica da Arquitetura Moderna (Editora Martins Fontes, 1980), ele afirma que as paredes ficaram desprotegidas contra o sol, embora revestidas de vidro absorvente de calor. Pecou-se, enfim, pela indiferença com relação ao clima.
Das dezenas de livros sobre sua obra, Niemeyer afirma não ter lido nenhum. Um deles o surpreenderia mais que os outros: Oscar Niemeyer e o Modernismo de Formas Livres no Brasil (Cosac Naify, 2002). Foi escrito por David Underwood, professor da Southern Florida University e aproxima Brasília à busca do divino: “Os palácios de Niemeyer evocam a possibilidade de redenção espiritual do homem, por meio de imagens oníricas, etéreas e fluidas”. Mais adiante: “A procura de Niemeyer por uma proximidade com o divino tem sua expressão mais poderosa na catedral, sua obra-prima de Brasília”. Materialista, Niemeyer desdenha a ideia da eternidade. Para ele, “a vida é um sopro, um minuto e pronto, acabou”. Queira ou não, Brasília continuará uma eterna lição de arrojo, modernidade e aposta no futuro.
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