Cássia Azevedo: Meu primeiro emprego, minha vida, meu nome no crachá

Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal

“Não existe outra via para a solidariedade humana senão a procura e o respeito da dignidade individual.”-  Pierre Lecomte du Noüy (1883-1947)

A morena Cássia Azevedo chama a atenção dos homens por onde passa. É alta, magra, tem cabelos longos e traços delicados. De calça jeans, camiseta, sapatilha e unhas impecavelmente feitas, a jovem acaba de sair do trabalho, uma empresa de telemarketing que a contratou há oito meses. Ao nos encontrar, Cássia mostra orgulhosa seu nome no crachá e elogia a firma, que, segundo diz, tomou a iniciativa para que ela tivesse pela primeira vez a sensação de pertencimento. “O que eles fizeram foi maravilhoso, eu não pedi nada e eles colocaram no meu crachá o nome que uso.”

Mas e daí que colocaram o nome que ela usa no crachá, isso é meio óbvio, não?  Não.  Essa resportagem é o retrato do bem-sucedido caso de Cássio, que virou Cássia e hoje tem emprego, carteira assinada e é respeitada como ser humano e funcionária, indendentemente de qualquer fator. Aliás, como deve ser.

Ela explica o porquê de sua alegria: “Normalmente as trans enfrentam uma guerra com o RH para usar o nome social, eles acham que já estão fazendo um favor por te dar um emprego”.

A prática da empresa de Cássia ainda é pouco adotada no Brasil. Um levantamento feito em 2013 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) aponta que 90% das mulheres transgêneras recorrem à prostituição no Brasil devido à rejeição na hora de concorrer a uma vaga no mercado formal.

Cássia foi bem tratada desde o momento em que foi à agência de emprego. Quando recebeu a carta de encaminhamento para a entrevista, ficou emocionada. “Abri a cartinha e até chorei. Achei tão lindo o que a moça colocou: ‘funcionária prefere ser chamada de Cássia’. Uma agência de emprego fazer isso? Se fosse comum, teriam menos transexuais nas ruas se prostituindo”.

Mãe coruja

Quando criança, ela preferia brincar com as duas irmãs. O irmão mais novo nunca aceitou e, até hoje, não se dão muito bem, segundo dona Vera, sua mãe, acrescenteando  que, desde cedo, todos comentavam sobre o jeito da filha. Quando Cássia se tornou uma adolescente, a mãe não teve mais como ignorar. “No começo foi um impacto, mas hoje eu brigo por ela, não aceito nenhum preconceito. O pai sempre foi mais rústico, foi difícil, mas a gente vai falando, convencendo… Hoje ele chama a filha de Cássia.”

A transição 
Até conseguir ser tratada como Cássia, o caminho foi longo.Sempre foi clara sua diferença em relação aos colegas. Na escola não era aceita no banheiro feminino, nem no masculino.

Cássia nasceu Cássio, tem 24 anos e está em transição de mudança de sexo. Na adolescência começou a fazer cover do cantor de rock e transformista Marilyn Manson. Cantava numa banda com 8 integrantes, foi a diversos programas de TV e fez até um comercial como o ídolo.

Ao se vestir de Manson, via a oportunidade de se transformar, mudar o visual e começou a flertar com a androginia. Nessa época gostava de se pintar, usar maquiagem e já sentia atração por rapazes, mas diz que nunca “se sentiu gay”. “Desde muito cedo eu já me identificava como menina.”

Ela conta que foi uma fase meio complicada, porque achavam que ela se vestia de forma diferente por causa do Marilyn Manson. “As meninas davam muito em cima de mim e eu pensava; ‘não vê que gosto da mesma coisa que você?’”.O assédio dos homens também era constante, mas às escuras: “Os caras sempre davam em cima, mas queriam sair comigo apenas escondido”.

Cássia havia terminado um relacionamento poucos dias antes de nossa conversa e conta que, na cabeça dela, tinha uma relação heterossexual, porque tudo nela é feminino, diz, inclusive, que até sua alma é de mulher. Ela ainda não completou a transformação, usa cabelos longos, veste-se como mulher, colocou prótese de silicone para ter seios e toma hormônios há algum tempo, mas ainda não fez cirurgia. “O seu gênero não está na genitália, está na cabeça”, afirma.

Durante a nossa conversa Cássia afirmou com convicção que se prepara para fazer a mudança de sexo definitiva.

 

Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal
Reviravolta

Com o fim de outras atividades, Cássia ganha bem menos. Diz que o dinheiro é “suado” e que por isso dá valor a cada centavo: “Eu saio da minha casa, pego metrô lotado, mas é um dinheiro digno. Não estou falando que a prostituição não seja, mas eu chegava me sentindo mal”.

Mas a fase difícil serviu para ela juntar dinheiro para pôr silicone e ter o seios que tanto queria. Pagou R$ 5.600 reais à vista.

Cássia ainda mora com os pais e se considera uma mulher de sorte pela aceitação deles: “Quando cheguei em casa com os seios novos, minha mãe não acreditou. Apesar disso me deu banho e me tratou superbem. Meu pai achava que era só uma fase, então o susto foi maior, ele foi digerindo aos poucos”.

 Amor
Há dois anos Cássia conheceu seu primeiro namorado, de quem acaba de se separar. Ela diz que ele pagou R$ 200 só para conhecê-la e que mbos apenas conversaram, mais nada. “Isso mexeu comigo”, diz. Durante o relacionamento, Cássia morria de medo de ser vista com o namorado. Ela imaginava que o pai, nordestino e de sangue quente, poderia acabar com tudo. “Meu namorado ligava quando estava chegando para eu sair antes, mas uma noite o celular caiu na caixa postal e ele veio até aqui, meu pai atendeu e o recebeu muito bem. Imagina, meu pai? Nunca pensei!”.

Foi quando decidiu largar de vez a vida nas ruas e procurar um trabalho formal.

Trabalho
Ronaldo Oshikawa foi quem contratou Cássia. Ele diz que no começo os colegas tinham bastante curiosidade sobre ela, mas que depois se acostumaram com a “novidade”. A providência em fazer o crachá feminino foi para já evitar que ela viesse a ter problemas e conflitos com os outros funcionários.

Thiago Navas sentava-se ao seu lado quando entrou na Contact Center. “Ela é louquinha e inventa piada de tudo. Minha barriga doía de tanto rir quando estávamos no mesmo setor, todo mundo gosta dela”, conta.

Oshikawa, que é gestor de RH, diz que ela tem tudo para crescer profissionalmente. Cassia também pretende fazer faculdade de letras e justifica a esolha dizendo que “através das palavras, muitas portas foram abertas”.


Comentários

Uma resposta para “Cássia Azevedo: Meu primeiro emprego, minha vida, meu nome no crachá”

  1. Avatar de Valeria ketlin
    Valeria ketlin

    Cássia é um exemplo a ser seguido !

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