A Cracolândia depois da ocupação policial

No dia 24 de janeiro, véspera do aniversário da cidade, me aproximei de Carmem, uma mulher de 40 anos, na Rua Dino Bueno, em plena Cracolândia tomada por viaturas policiais da Guarda Municipal e policiais à paisana.

Próximo de alguns agentes de saúde que ainda oferecem confiança a Carmem, perguntei o que era aquele hematoma em seu calcanhar. Ela disse que talvez tivesse caído ou dobrado a perna. E todas essas marcas no corpo? Indaguei. “É que a polícia manda deitar a gente de bruços e dão paulada na gente, eles jogaram bombas na gente, morreu dois bebês… Eu passei dos 18 aos 30 na cadeia, estou há 10 anos na rua, estou acostumada…” Enquanto isso, preparava o cachimbo para uma próxima pedra.

Depois chegou Jéferson, um conhecido percussionista da Vai-Vai, e disse: “Nos tocam daqui pra lá, daqui pra lá…”, fazendo gestos com as mãos. Um agente de saúde que o conhecia conversava com ele e teve de ouvir: “Vocês estão perdendo o respeito da população”. Uma moça com a boca deformada pela violência policial se aproxima de nós, tento contato, mas ela foge atabalhoada… Como todos os violentados, não falam sobre a violência e a Defensoria Pública instalada no local tem muitas dificuldades de colher denúncias, pois as pessoas são “tocadas” de um lado para outro, é muito difícil continuar os processos judiciais.

Mesmo com uma operação de guerra como essa, algumas pessoas, como Carmem e Jéferson, ainda retornam à Cracolândia. Que vidas as tornaram carne de agressão e crueldade? Como aguentam ou não migraram como os outros para a antiga Cracolândia, para outros bairros ou para outras cidades?

Domingo, 29 de janeiro. Ao ler a pesquisa do DataFolha, que verificou que cerca de 90% da nossa sociedade aprova a ação da polícia, me pergunto consternado como podem ser cúmplices disso. Sem dúvida, essa mesma sociedade não deve estar de acordo com os maus tratos praticados a animais domésticos.

A ação intensificada, desde o dia 3 de janeiro, expressa quão doente está nossa sociedade, quanta desinformação recebeu e, mais que um risco para democracia, expressa uma nítida fascistização da vida. Assim como os alemães desejaram o nazismo e tantos povos aprovaram golpes de Estado e governos que praticaram torturas, nossa sociedade, influenciada por uma nefasta campanha da mídia, apoia as barbaridades ocorridas no centro de São Paulo.

Giorgio Agamben, filósofo e jurista italiano, forjou o conceito de sociedade de exceção inspirado naqueles homens e mulheres que já não tinham palavra, nem ética nem dignidade alguma e, com os últimos fios de vida, aguardavam a hora de ir para os crematórios dos campos de concentração. De forma similar, a opinião pública enxerga os “noias” da cidade: como sujeitos sem direitos e como sua própria excrescência.

O centro de São Paulo se converteu em um território esquizofrenizante, pois o poder público transmite permanentemente duplas mensagens: enquanto a Secretaria de Justiça do Estado realiza uma ação de cidadania para tirar documentos, a polícia toma os RGs e os medicamentos nos famosos “rapas”, deixando além dos pacientes, os médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde angustiados. Quanto trabalho custa a adesão ao tratamento da sífilis ou do HIV! De um lado, desenvolve-se um trabalho de saúde fundamentado em vínculos conquistados a duras penas com uma população de difícil acesso e, de outro, a Guarda Municipal joga gás de pimenta em seus olhos.

A ação do centro de São Paulo está fundada em um princípio equivocado e prejudicial, que consiste em acreditar que com “dor e sofrimento” de um lado e cuidado de outro as pessoas vão querer se tratar. Ao contrário, em Fortaleza, onde a Guarda Municipal é desarmada e não há violência policial, os usuários não acendem o cachimbo na cara dos redutores de danos e são de muito mais fácil acesso que em territórios violentos como o de São Paulo. Em São Bernardo do Campo, onde há um programa de saúde mental sério, os usuários procuram o consultório de rua. Quanto maior a violência, maior a dificuldade de tratamento.

Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, prenderam 189 pessoas. Que irá acontecer com elas? Algumas por portarem um pouco mais que dez pedras de crack. Não se percebe que na cadeia passarão pela pedagogia do crime organizado e daqui a uns anos estarão fortalecidos para invadir a tranquilidade dos entrevistados?

As pessoas também não sabem que a absoluta maioria dos que estão sendo internados nas denominadas comunidades terapêuticas que aplicam o método do exorcismo dos demônios iniciado na Idade Média e desenvolvido pelos fanáticos religiosos desde que existe o proibicionismo das drogas, voltam quase que em sua totalidade às zonas de uso logo após as altas ou não completam os tratamentos, cansados de rezar orações que não lhes dizem respeito.

Além do mais, essa ação significou uma verdadeira violentação dos trabalhadores de saúde que vêm realizando um trabalho sério na área central de São Paulo. Eles foram obrigados a desfilar para marcar presença perante a mídia, e a visita do governador que compareceu para inaugurar um Centro de Apoio ao Trabalhador, descaracterizando, assim, o trabalho de Saúde da Família e de Saúde Mental que consiste em romper o cerco que separa essas pessoas da sociedade e na conquista de um vínculo de confiança perante a oferta de cuidados de saúde e conhecimento de suas biografias.

A ação policial foi um erro por que, apesar de contar com ações promissoras desenvolvidas no único Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) do Centro, no único CAPS infanto-juvenil que funciona de segunda a sexta-feira durante o dia, pelas equipes do Programa Saúde da Família (PSF) do centro da cidade, pelas ONGs – como É de Lei ou o Projeto Quixote da UNIFESP –, é basicamente um programa desintegrado, sem continuidade, sem comunicação com a assistência social nem com a cultura nem o esporte.

Enquanto isso, em São Bernardo do Campo estava sendo inaugurada a primeira Casa de Apoio Transitório (CAT) para adultos (lá já existe uma para adolescentes), onde poderão morar até por seis meses pessoas que estão em processo de reabilitação. Dois dias depois, foi inaugurado mais um Serviço Residencial Terapêutico para resgatar mais oito pacientes cronificados no Hospital Psiquiátrico Jacques Lacan. Nessa cidade, perfila-se um atendimento modelar com serviços 24 horas, inclusive para adolescentes. Lá funciona o primeiro CAPS ADI (destinado a adolescentes usuários de drogas pesadas) e está sendo gestada uma ação integrada em rede.

No dia 27 de janeiro, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma entrevista com a representante da ONU, Raquel Rolnik, que mostrou a gravidade do caso relacionando-o com o incêndio da Favela do Moinho, a repressão dos moradores do Pinheirinho e os interesses imobiliários.

No domingo, 29 de janeiro, o caderno Metrópole de O Estado de S. Paulo informou a respeito das salas de relaxamento ou narcossalas europeias, onde se oferecem drogas, buscando substituir as drogas mais deletérias por outras menos letais. Em Londres, por exemplo, o informe de 12 centros de redução de danos apontou uma eficácia de 60%, algo inédito para a realidade paulistana, mas não desconhecido no meio clínico, pois na própria UNIFESP foi realizada uma pesquisa de substituição de crack por maconha, com 68% de eficácia e mudança de vida dos pesquisados.

Todas as tentativas de guerra às drogas aumentaram o consumo, com o ópio na China (onde havia pena de estrangulamento) ou com a lei seca nos EUA.

Se Hitler, com sua solução final, não conseguiu eliminar os judeus, nem os ciganos e nem os homossexuais, a administração Alckmin e as comunidades terapêuticas não conseguirão eliminar os craqueiros nem a população de rua.

É preciso pensar essa questão com menos medo e menos superstição. O mundo sem drogas é uma utopia perigosa de uma sociedade sem prazer, sem desejo e sem cidadania. Mas é possível propor ações que visem a redução de danos e a transmutação da vida com projetos integrados e continuados que busquem, mesmo quando se interna compulsoriamente para salvar a vida de alguém, promover o desejo de vida, trabalho, estudo, moradia, enfim cidadania.

*Psicanalista, autor de Clínica Peripatética (Editora Hucitec).


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