Em um ensaio recente sobre a Bienal de 2008, Paulo Sérgio Duarte lembrou-se de uma ideia de Waltercio Caldas, segundo o qual o “curadorismo” era a última ideologia ainda viva do século XX. A definição é irônica e certeira. Mas é também historicamente discutível. Afinal, outras ideologias do século XX estão atuando fortemente, mesmo que sensivelmente modificadas (para o bem e para o mal). Duas delas vivem um peculiar confronto, no campo “autônomo” da arte: uma é justamente a “autonomia estética”, com exigências de “qualidade” e “independência” (às vezes resvalando ou se confundindo com o “formalismo”) constrangidas pelo mercado; e a outra, essa mais em moda e mais abraçada pelo curadorismo, a da “arte fundida com a vida” a partir da “liberdade” que o mercado (global) traria e da independência da criação perante a suposta ingerência da “autoridade” do crítico.
A grandeza da obra de Waltercio Caldas reside, sobretudo, em colocar todas essas questões e discussões em um trabalho incrivelmente rigoroso (ainda que frequentemente irregular, e isso não é um demérito). Um trabalho que evidencia o jogo entre a radical racionalidade construtiva e a desorientação que as obras provocam.
[nggallery id=15237]
O livro-catálogo lançado pela editora Cosac Naify demonstra tudo isso. Não apenas organizando as imagens dos trabalhos feitos em várias épocas e em diferentes lugares do mundo, mas também trazendo as fortíssimas reflexões críticas de três dos mais destacados pensadores da arte brasileira hoje: Paulo Venâncio, Paulo Sérgio Duarte e Sônia Salzstein (a relação sincera e produtiva do artista com outro crítico, Ronaldo Brito, aparece não em textos, mas nas obras, elas mesmas).
A sequência intrigante das imagens do livro traz nove ambientes, termo que o artista prefere ao conhecido instalações (e aqui lembrar a “arte ambiental” de Oiticica é cabível, mas desnecessário). Mas o que acompanhamos não é uma retrospectiva, porque o propósito é fazer o trabalho dialogar e aparecer, como nota Venâncio. O que vemos não é propriamente uma (auto)curadoria, muito menos curadorismo: trata-se do artista organizando sua obra e, assim, aparecendo no mundo.
A coerência translúcida (ainda que a opacidade seja tema de muitos dos mais destacados trabalhos) do pensamento plástico de Caldas aparece inteira. Destaco a constante dialética entre a caixa e o grande espaço, a sala e o abismo. A sala é o lugar por excelência da sociabilidade burguesa. O espaço abismal é, ao mesmo tempo, o lugar que o mundo burguês parece sempre pronto a enfrentar.
O jogo dos reflexos e reflexões que se abrem no caminho remete aos infinitos e aos meandros perturbadores das salas e dos espaços que Velázquez capturou em As Meninas e que Waltercio estudou tão profundamente. Desde o nascimento do moderno, da civilização burguesa, as salas e os abismos se organizam e nos olham. Da intimidade da sala do artista no palácio, chega-se à intimidade da sala burguesa, ou de sua cozinha, com as maçãs que Cézanne capturou e configurou como o signo dessa nova ordem íntima. Daí, chega-se a Waltercio e suas “verdadeiras maçãs falsas” – ou à aparência de móveis de lojas de decoração prêt-à-porter da classe média, que alguns de seus trabalhos apresentam.
As referências eruditas e reflexivas da história da arte, portanto, estão aqui. São, de fato, reflexivas porque não são meras citações. Destaco a instalação Ping Ping (que Duarte descreve com inteligência, e limitação, como ele mesmo reconhece, como uma obra in situ), com seu jogo sobre o olhar, a constituição da imagem, o papel do observador, as linhas, a história da construtividade entre nós (e de sua crise). Talvez a mais significativa instalação feita por um artista brasileiro desde os anos 1980.
Como nada é improviso, como nada é espontâneo, tudo é cortante e preciso como o aforismo, segundo Venâncio, ou então cada uma de suas peças é a demonstração de uma lei interna de organização, como diz Salzstein. Afinal, “Pede-se não soprar em frases simples”, como ele escreveu em um trabalho (não sem ambiguidade e ironia).
Para mim, o resultado disso tudo é uma arte que tira as maiores consequências do cubo branco, que descentra e provoca, por exemplo, tanto a apologia acrítica da arte contemporânea (o curadorismo) quanto o calculado conservadorismo blasé de um crítico como Ferreira Gullar. Ao mesmo tempo, o livro comprova a proximidade deste artista com Man Ray (mais do que com Duchamp, que é a praxe do discurso oficial da arte contemporânea brasileira).
Esse resultado é também uma discussão em aberto. Por exemplo, resta a questão do formalismo. O formalismo, seja lá o que isso signifique, presente na obra de Waltercio Caldas é uma crítica política do olhar (e uma crítica da história da arte e do sujeito a partir dela), uma aposta na racionalidade contra a espontaneidade ingênua dos comunicadores e passadores de mensagens, ou é uma acomodação erudita e autocircunscrita? A resposta, seja qual for, está entre o salão e o abismo nosso de cada dia.
Deixe um comentário