“O governo deve comunicar não o que deseja, mas sim o que o cidadão tem direito de saber”

O jornalista Eugênio Bucci - Foto: Luiza Sigulem
O jornalista Eugênio Bucci – Foto: Luiza Sigulem

Eugênio Bucci é jornalista experiente, já esteve nos dois lados do balcão. Editou revistas de empresas privadas e ocupou cargos em empresas públicas, como Radiobrás – foi presidente da casa por mais de quatro anos – e Fundação Padre Anchieta – integrante do Conselho Curador. Nascido em Orlândia, no interior de São Paulo, hoje, aos 56 anos, ele é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP.

Foi na mesma universidade que apresentou sua tese de livre-docência, em que investiga os poderes da máquina da comunicação oficial. O resultado da pesquisa gerou o livro O Estado de Narciso – A comunicação pública a serviço da verdade particular (Companhia das Letras), em que foca especialmente o período de redemocratização do País. Para o jornalista, a propaganda produzida em todas as esferas de governo não chega a ser enganosa, mas há um “esforço para engabelar o eleitor”. Ele é categórico ao afirmar que a comunicação é usada para fins partidários ou pessoais, e os brasileiros são os maiores anunciantes do mercado publicitário nacional por um único motivo: as verbas para esse fim saem dos cofres públicos.

Brasileiros – Em O Estado de Narciso, o senhor aponta que o principal objetivo de parte das campanhas de todos os governos não é o de alertar a sociedade…
Eugênio Bucci: O principal objetivo de comunicação das campanhas públicas, vacinação, prevenção de doenças, água, não é o de alertar a sociedade, mas convencê-la de que aquele governo está preocupado com os cidadãos. Trata-se de promoção de uma imagem, a partir da noção de que as pessoas se sentirão cuidadas, seguras e amparadas. Não estou falando do governo Lula, Dilma, Alckmin ou Haddad, mas de traços dominantes que atravessam todos os níveis das unidades da Federação e percorre todos os partidos.

Estamos sendo enganados?
Não iria tão longe. Diria que há um esforço instalado no Estado para engambelar o eleitor. Se é bem-sucedido é outra conversa. Não existe uma publicidade do governo que diga: “Erramos aqui, precisamos da sua ajuda”. A publicidade governamental é de enaltecimento e é óbvio que se trata de uma versão parcial.

Nessa estratégia de autopromoção, como diz, tem muito mais marketing do que comunicação direta?
Totalmente. Estudiosos de vários países apontam expansão dos custos e dos espaços ocupados pela comunicação eleitoral, pela forma moldada pelo marketing que o poder se comunica com a sociedade. Ou seja, não é um fenômeno nacional, mas das democracias contemporâneas. No Brasil, a questão se deu assim: de um lado, os recursos públicos investidos em publicidade oficial são cada vez maiores. De outro, no campo do mercado, se desenvolve uma indústria dedicada a isso. Tem tudo a ver com a era da imagem, do espetáculo.

O senhor afirma que houve, com o crescimento da publicidade, um deslocamento na boa imagem do governante. Pode explicar?
Durante o regime militar, o grande governante era aquele que transformava a cidade em canteiro de obras. Hoje, é aquele que tem facilidade de se comunicar com o público. Lula é expressão forte desse fenômeno. Governar deixou de ser sinônimo de “fazer” e passou a ser de “dar a percepção de quem faz”. Por isso, a comunicação ganhou preponderância na política.

O governo Dilma tem essa qualidade?
A escolha de Renato Janine Ribeiro para o Ministério da Educação foi um tremendo acerto e em todos os campos foi festejada, inclusive pela oposição. Mas tirando esse fato, o que no governo Dilma fluiu com naturalidade, produzindo sentido imediato para a sociedade? Normalmente, as mensagens do governo chegam aos solavancos, agravado pelo fato de a presidente não falar com frequência e ter um estilo vocabular confuso, o que impõe certa dificuldade para quem está interessado em entendê-la. Lula, ao contrário, em momentos de apuro tinha uma saída instintiva, que era “vou falar mais”. Ele buscava interlocutores e tinha um estilo espontâneo, com absoluta clareza em relação ao cidadão médio. A capacidade de criar imagens, analogias e metáforas torna seu discurso compreensível e chega a ser literário. Impressionante.

É eficiente, neste momento, fazer cortes de verba para a comunicação do governo, como disse recentemente a presidenta Dilma?
Acredito que, em momento de crise, diminuir esforços na comunicação não seria bom para nenhum governo. Mas eu levantaria a seguinte questão: será que a comunicação de governo tem seu melhor momento na publicidade paga? Será que comprar espaços publicitários em veículos comerciais é a melhor maneira de se comunicar com a sociedade? Acho que não, e a democracia demonstra que a comunicação comercial não é a melhor forma para se comunicar e jamais deveria ser a única. Dilma pode falar que vai diminuir o volume de dinheiro e pode até conseguir fazer isso. Mas temos um desvio anterior, que é o Estado do Brasil e, principalmente, o poder Executivo que acha que se comunica quando faz publicidade, e publicidade comercial. Isso quer dizer que o Estado, particularmente o governo, compra espaços publicitários com dinheiro público e em volume cada vez maior. Não existe nenhuma sustentação de ordem democrática e jurídica em uma legislação de Estado de Direito que autorize uma parte da sociedade a usar recursos de todos para promover a ideia de uns poucos. E, se compararmos o que era investido em publicidade há 20 anos com o que é investido hoje, vemos uma evolução gigantesca. Esses dados são pouco transparentes, mas o pouco que conseguimos ver nos autoriza a dizer, com absoluta segurança, que essa é uma rubrica que só cresce na administração pública. Edinho Silva (ministro da Secretaria de Comunicação Social, a Secom) vai dizer que ele cuida só dos gastos do governo federal e da Presidência da República, que não são tão volumosos. Mas o volume de recursos chama a atenção quando consideramos o governo federal como um todo, agregando os ministérios, além da própria Presidência da República e mais Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Correios e outras estatais.

O senhor está considerando o gasto da máquina pública, certo?
É isso. E esse volume vai nos levar à conclusão de que os cofres públicos são hoje, no Brasil, os maiores anunciantes do mercado publicitário. Temos aí um problema, que não é devidamente escrutinado e causa uma distorção do jogo democrático. O poder se reproduz a partir das eleições. Ora, os cidadãos votam de acordo com sua consciência. Para a formação dessa consciência, precisam de informação, e a informação sobre o que acontece e o que deixa de acontecer no governo viria da imprensa, do debate público. Mas como o volume de anúncio é muito grande, vem muitas vezes do próprio governo. E esse discurso só é interrompido, em termos, poucos meses antes da eleição, quando os partidos estão no horário eleitoral. Mas quem está no governo já sai em vantagem em relação aos outros porque faz da propaganda eleitoral a sua continuação, o prolongamento daquele filme, que é publicidade do governo. Como não há limite para o uso de verba pública no mercado publicitário privado, quem está no poder leva a vantagem, o que tende a inibir a alternância de poder. Essa questão é válida para os poderes Executivos dos Estados, dos municípios e da União, além do Legislativo. Se olharmos o Congresso, o índice de renovação dos parlamentares é pequeno.

É um sistema viciado?
O conceito de democracia requer alternância. Mesmo em um país hipotético, com eleições em prazos regulares e campanhas eleitorais que aparentemente deem voz às diferentes correntes, é difícil caracterizar democracia se não há alternância. Diria e digo que é uma democracia com problemas no mecanismo de renovação de poder. E a comunicação pública contribui para isso. Os parlamentares têm a máquina de comunicação ao seu dispor, a começar pela A Voz do Brasil, que tem baixíssima audiência, mas existe. Ou seja, eles têm esse meio que avança, inclusive no período eleitoral. A própria comunicação pública, do jeito que está configurada, conspira contra a renovação do Parlamento. É uma questão gravíssima, incrível, e olhamos para isso como algo natural, admitimos que a destinação de verba publicitária seja usada com critérios partidários. Todos os partidos adotam essa prática quando estão no poder.

O que está dizendo é que há afinidade entre propaganda eleitoral e comunicação pública?
Recentemente, a presidente Dilma sancionou o orçamento que triplica o que o fundo partidário repassa aos partidos. Em grande medida, a propaganda eleitoral no Brasil já é feita com financiamento público. Não é toda, nem a maior parte, mas tem parte de financiamento público. Então, pode ser chamada de comunicação pública. Tem também um vaso comunicante com a propaganda oficial porque geralmente é feita por uma mesma equipe, pelas mesmas empresas, usando a mesma linguagem. Em uma propaganda da Petrobras e em parte de uma propaganda do PT, encontram-se semelhanças estéticas que não são casuais, mas algo pensado como prolongamento da outra e vice-versa.

Qual conselho o senhor daria?
Não sou especialista nisso, mas o que posso falar com propriedade é que o que deve nortear a comunicação de um governo ou de qualquer República não é o que seus gestores e administradores desejariam dizer, mas sim o que o cidadão tem direito de saber e perguntar. A comunicação do governo não está, e não deveria estar nunca, a serviço da imagem de quem governa. Um governo financia serviços públicos porque isso está consagrado como um direito dos cidadãos. Saber o que acontece nas estâncias da administração pública também é um direito, e a comunicação de governo deveria ser orientada por isso. Há uma inversão que achamos normal. Mas é uma violência. Com que legitimidade um governo pode usar recursos que são de todos para promover a ideia de uns poucos?

As redes sociais são um instrumento poderoso e os governos começam a usá-las…
Está em discussão um caso interessante, o de um blogueiro que receberia R$ 70 mil mensais de um governo estadual para falar bem das ações desse governo. Esse princípio, assim como contratar alguém para falar mal de adversários políticos, é uma afronta à cidadania. Também é intolerável que um veículo receba mais ou menos verba governamental como publicidade de acordo com a incidência de opinião favorável ou contrária. Do mesmo jeito que é errado distribuir recurso público de acordo com quem me é favorável. Se eu não posso partidarizar a distribuição de recursos públicos para prestigiar quem gosta de mim, também não posso usar para prejudicar quem não gosta. As duas vertentes são distorções, mais uma forma de mostrar que o princípio de distribuição de verba publicitária pelo governo deveria ser abolido. O governo não deveria se comunicar dessa maneira. Se isso é válido, ele está dizendo: ao falar bem de mim, você recebe propaganda, verba. A partir do momento que o poder diz isso, está atentando contra a liberdade de imprensa.  

Mas as empresas privadas de comunicação limitam as verbas públicas para evitar justamente isso.
Elas procuram não permitir que um anunciante, qualquer um, responda por uma margem muito grande na receita geral. Esse cuidado é tomado para que nenhum anunciante fique com poder de veto ou de pressão. Mas hoje qual é a realidade do mercado anunciante no Brasil? A verba pública ocupou uma fatia enorme. Qual é o veículo de pequeno/médio porte no Brasil que não tem verba pública? Praticamente nenhum. Isso significa que, em maior ou menor grau, uma imensa quantidade de veículos de informação no Brasil está mais ou menos vulnerável a pressões do poder.

O senhor é a favor da regulamentação da mídia?
As principais democracias do mundo têm regulação. O Brasil precisa enfrentar a questão, enfrentar, por exemplo, a promiscuidade entre o Congresso e os meios de radiodifusão, muitas vezes representantes diretos dessas empresas dentro de um poder que é encarregado de avaliar concessões; acabar com o que vem acontecendo entre igrejas, associações religiosas, emissoras ou redes de radiodifusão e partidos políticos. Essas esferas precisam funcionar separadamente para a democracia ser saudável. É preciso regulamentar porque só uma legislação ordinária pode definir os critérios legais do que é oligopólio e monopólio. A Constituição fala que a comunicação social não pode ser objeto de oligopólio, nem de monopólio, mas a lei não especifica o que é oligopólio e monopólio. Isso é dado por um corte numérico. Ainda precisamos da independência das emissoras públicas, que não são canais de governo e não deveria ser comandada por governo. E essa regulamentação deveria impedir governos de serem anunciantes sem limite de gastos. Hoje, um governo pode gastar quanto quiser do orçamento para fazer propaganda de si mesmo, o que distorce o princípio da alternância no poder e tende a intimidar, cooptar ou assediar veículos independentes que, sem alternativa, ficam mais abertos a anúncios que vêm do poder e se sentem mais vulneráveis a pressões que podem vir desse mesmo poder.


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