Quase centenária, a Vila Itororó é um ícone paulistano do começo do século 20. Construído em 1922, pelo imigrante português Francisco de Castro, o espaço situado no bairro do Bixiga, no número 238 da Rua Pedroso, às margens da Avenida 23 de Maio, que liga as regiões Sul e Norte da cidade, foi o primeiro conjunto residencial urbano com fins de locação da capital paulista e chegou a reunir quase 40 moradias. O condomínio abrigou também a primeira piscina privada da cidade, abastecida com água de uma das fontes do Rio Itororó, que minava dentro do terreno. Informações que parecem irrelevantes àqueles que, pela primeira vez, avistam a anárquica junção de elementos arquitetônicos reunidos por Francisco, tratada por muitos como surrealista.
A sensação de delírio é mesmo o que salta aos olhos diante do pequeno palacete construído para uso do proprietário da Vila Itororó. Uma casa de quatro pavimentos, erigida com um mosaico de elementos estruturais retirados de diversas demolições da época. O imóvel sustentado por 18 colunas reúne, por exemplo, uma série de detalhes do Teatro São José, extinto vizinho do Teatro Municipal, que foi demolido em 1921 e ficava no mesmo terreno onde hoje está situado o prédio do Shopping Light, no Vale do Anhangabaú. Do São José, Francisco utilizou elementos imponentes, como leões, carrancas e cariátides (corpos femininos e masculinos fundidos a algumas das colunas).
Com a morte de seu proprietário, nos anos 1960, a vila foi doada à Santa Casa de Indaiatuba, mas, abandonada e submetida a um processo contínuo de sublocação, tornou-se um grande cortiço. Na década de 1970, a responsabilidade sobre o futuro do espaço foi transferida da esfera estadual para a Prefeitura do Município de São Paulo. Em 1976, foi elaborado o primeiro projeto de reutilização das construções, logo engavetado. Tombada como patrimônio histórico pelo Condephaat e o Conpresp em 2005, a Vila Itororó foi alvo de reincidentes tentativas de remoção dos moradores para, enfim, ser objeto de debates públicos, que visaram definir sua restauração e novos fins de utilização. Em 2006, um novo projeto, de autoria dos arquitetos Décio Tozzi e Benedito Lima de Toledo, começou a ser definido.
Por causa da dificuldade de solucionar a questão do uso habitacional – à época o local ainda reunia mais de 200 moradores –, não houve avanços na condução desse novo projeto até que, no início de 2013, a Vila Itororó foi completamente desocupada, com grande parte de seus antigos moradores transferidos para conjuntos habitacionais populares.
Com base no projeto de Tozzi e Toledo, a Prefeitura de São Paulo recentemente articulou as primeiras ações para, enfim, restaurar a Vila Itororó. Até o final de 2018, quando está previsto o encerramento das obras, a histórica vila habitacional será transformada em um novo complexo cultural na capital paulista. Um espaço multidisciplinar que, além de acolher outras manifestações artísticas, também envolverá diversas ações no âmbito das artes visuais, como exposições, oficinas e núcleos educativos.
Conduzida pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, atualmente sob o comando do urbanista Nabil Bonduki, com apoio do Ministério da Cultura e da iniciativa privada, via Lei Rouanet, a obra será realizada em quatro fases, duas delas destinadas à entrega parcial das edificações restauradas, entre 2016 e 2017 e, por fim, a ativação total do novo espaço cultural em 2018. A primeira etapa, já em andamento, pretende estimular o envolvimento e o diálogo da população no processo de restauro, com a abertura de um centro cultural temporário, instalado em um galpão em meio ao canteiro de obras. O espaço tem curadoria do francês Benjamin Seroussi, e execução a cargo de duas organizações colaborativas, envolvidas em ações urbanísticas e artísticas em patrimônios históricos da cidade, o Instituto Pedra e o coletivo Constructlab.
Residente em São Paulo desde 2006, Seroussi tem se envolvido em projetos semelhantes, como a curadoria da Casa do Povo. Criado pela comunidade judaica em 1953, com o nome de Instituto Cultural Israelita Brasileira, trata-se de outro espaço histórico da cidade que também estava abandonado havia décadas. Em 2014, o francês foi também um dos curadores associados da 31ª Bienal de São Paulo.
Leia a seguir depoimentos de Seroussi e do Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, Nabil Bonduki (consulte a agenda de visitação e a programação do Centro Cultural Temporário em vilaitororo.org.br).
“Conheço a Vila Itororó desde 1972, quando eu ainda frequentava o cursinho. Depois, passei a visitar a vila, como professor de História da Arquitetura. Sempre procurei levar meus alunos até lá, porque a vila simboliza um período da cidade em que havia muitos espaços como esse, que ocupavam o interior dos quarteirões para fins de habitações de aluguel. A Vila Itororó se distingue por ter características específicas, como a casa principal, que foi construída com a utilização de materiais de demolição e tem um charme especial por preservar elementos de um dos mais importantes teatros da cidade, o extinto Teatro São José. É um documento vivo da maneira de se produzir habitação no começo do século XX. O tombamento da vila evitou que tudo fosse demolido e o espaço se tornasse um condomínio vertical. Com esse novo projeto de restauro, e a ideia de instalarmos uma área aberta para uso provisório antes mesmo das obras ficarem prontas, cria-se aos poucos o ambiente de centro cultural que a vila terá. Esse projeto é muito importante para a cidade de São Paulo, porque estamos associando à recuperação do patrimônio e da memória da cidade, um espaço cultural de uso da população.”
Nabil Bonduki, secretário Municipal de Cultura de São Paulo
“As pessoas vêm aqui e perguntam: ‘Legal, mas quando ficará pronto?’. Nossa ideia é justamente quebrar esse conceito de um futuro por vir e trazê-lo para o presente. A participação das pessoas faz com que o espaço seja renovado no sentido literal da palavra. Propusemos abrir um centro cultural temporário e nossa ideia é mantê-lo ‘com as tripas para fora’ em meio ao canteiro de obras. Um conceito aberto que nos permite pensar em diversas instâncias a convivência no espaço. A Vila Itororó tinha questões muito específicas e uma delas era ‘porque fazer um centro cultural em um lugar de moradia?’. O que nos levou a concluir que é preciso pensar em práticas artísticas conectadas a outras ideias e suscitar questões como, por exemplo, será que existe uma única maneira de habitar? Em vez de ter um restaurante, porque não uma cozinha? Em vez de ter um jardim, porque não uma horta? Em vez de um espelho d’água, por que não uma piscina? Se a cidade tem de ser um lugar de uso misto, de alteridade, que permite encontros inesperados, a vila tem que ter tudo isso e não ser mais um lugar de gente segregada. Se não pensarmos dessa forma, vamos repetir expedientes de uma cidade doentia.”
Benjamin Seroussi, curador do Centro Cultural Temporário da Vila Itororó
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