Júlio Mesquita atravessou a porta do vasto salão, e todos os olhos se voltaram imediatamente em sua direção. Ele sabia muito bem como se portar nessas situações: calmo, como se nada estivesse acontecendo, quase distraído, dava seus passos. A aparência ajudava a atrair ainda mais atenção: alto, olhos claros, cabelos brancos e bigode cuidadosamente aparado, trajando um impecável summer branco e plastrom preso por um alfinete de pérola. Com todos os olhares nele, cruzou o salão em passo leve, cumprimentando com naturalidade os muitos conhecidos.
Para Júlio Mesquita, atravessar o salão do Automóvel Clube era quase tão natural como estar em casa com a família – que, aliás, o aguardava numa mesa. Muitas pessoas ali eram velhas conhecidas; afinal de contas, o próprio clube tinha nascido numa reunião na redação de O Estado de S. Paulo, incentivada e presidida por ele. Quando os sócios conseguiram a sede, ela foi por muitos anos uma espécie de extensão da redação, e Julio, uma das figuras obrigatórias no dia a dia do grêmio.
Mas havia um forte zum-zum-zum acompanhando seus passos, e isso, sim, era novidade. O clube estava acostumadíssimo a gente muito importante – até mesmo porque o presidente licenciado era ninguém menos que Washington Luís, ausente naquele ano de 1927 enquanto respondia por outra presidência, a da República. Governadores, ministros, banqueiros, magnatas das estradas de ferro e cafeicultores ricos completavam a seleta lista de sócios. Muitos queriam entrar naquele salão, mas poucos chegavam lá. Em ambiente tão selecionado, não era fácil alguém se destacar.
A figura familiar que se impunha no salão chamava, por dois motivos, a atenção dos ilustres reunidos naquela noite. Primeiro, o tempo – há anos não era visto por ali. Segundo, a ocasião – quase ninguém tinha visto Júlio Mesquita numa festa noturna do clube, menos ainda num baile de Carnaval. Ao acompanharem aquele senhor de 65 anos ao atravessar o salão e, afinal, sentar-se na mesa ao lado de filhos, noras, genros e amigos, todos matutaram sobre as razões daquela presença rara.
Júlio Mesquita passou boa parte do tempo em que desaparecera das vistas dos sócios do Automóvel Clube na prisão, sob vagas acusações de subversão. Pouco antes do encarceramento, tinha respondido a outro processo pela mesma acusação, devido à atuação durante a greve geral de 1917.
Mas o período de provação passara. Júlio Mesquita reagiu ao tranco em silêncio, até poder dar o troco. Ajudou a formar o Partido Democrático, que tinha acabado de obter ótimos resultados na eleição parlamentar. Também por isso a lenta passagem pelo salão funcionou como uma espécie de desfile triunfal. Voltava a seu espaço, senhor de suas ideias, mostrando a que vinha.
Então, começou o baile do Carnaval de 1927. A música da orquestra foi o sinal para outro movimento, no qual a presença daquele senhor ilustre se dissolvia rapidamente. Enquanto a banda tocava, os mais novos tiravam lenços de linho do bolso ou da bolsa, espargiam lança-perfume e saíam animados para a dança. O patriarca, por sua vez, manteve-se sentado e isolado, até ser abordado por uma observadora atenta.
Olívia Guedes Penteado, dez anos mais nova que Júlio Mesquita, era a grande dama da sociedade de São Paulo. Juíza maior do gosto social, afirmava seu critério onde estivesse – inclusive no Automóvel Clube. Quando julgava necessário sacudir a poeira, revirava as tradições zelosamente observadas na casa; sendo dona Olívia a dar a ideia, ninguém dizia um ai – nem mesmo num clube que só aceitava a presença de mulheres em raras ocasiões sociais.
Dois anos antes, ela mostrara, naquele mesmo Salão Amarelo, um modo novo de festejar em sociedade. Bastou recomendar um pintor russo que tinha acabado de chegar à cidade – e que ela contratara para pintar todo um salão no subsolo de sua mansão – como decorador e animador de um baile para todos os homens da diretoria se curvarem.
O pintor era Lasar Segall, e o Baile Futurista do Automóvel Clube marcou época. Mário de Andrade, um dos presentes, se esbaldou e escreveu no dia seguinte para Manuel Bandeira:
Em vez de voltar à uma hora, voltei às seis e meia, pleno dia. Esteve estupendo. Das mulheres fantasiadas: uma Caldeira cubista e uma Fifi Lebre de Pádua Salles sublime. A sala de Segall é uma maravilha. Em vez de flores, vegetais comestíveis. Não imaginas como é lindo um repolho bem colocado. Tinha um vaso finíssimo cheio de rabanetes e cenouras. O jazz estava engraçadíssimo. Alegria assim nunca se viu.1
E ainda sentiu falta de Tarsila do Amaral, para quem escreveu logo em seguida, no mesmo dia: “Que saudades tuas no Baile Futurista. Fizeste uma falta danada”.2
Vislumbrar ideias novas e pessoas interessantes era apenas parte dos atributos de dona Olívia. Ela se mostrava igualmente capaz de comandar eventos conservadores, como organizar uma caça a raposas em plenas ruas do centro de São Paulo, com dezenas de cavaleiros trajados a rigor, de casaca e cartola. Onde quer que fosse, no entanto, sabia distinguir quem importava numa reunião – sem ligar a mínima para convenções, já que ela mesma as criava.
Assim, fez uma festa de Carnaval a seu modo. Levantou-se, atravessou o salão, foi diretamente para a mesa do conviva que lhe parecia pouco à vontade, fez reverência e pediu ao cavalheiro para dançar. A resposta veio com espírito:
– Sendo você a convidar, aceitaria lisonjeado. O problema são essas danças modernas, não conheço nenhum passo. Só posso prometer olhar bem e ver se para o ano que vem estarei desenferrujado.
Dona Olívia riu e ofereceu-se de guia para o charmoso convidado fazer um passeio de observação dos passos dos bailarinos. Júlio Mesquita levantou-se e, sorrindo, aceitou o braço oferecido. E lá foram os dois ver mais de perto os movimentos da dança moderna, a tal que ficaria para o ano seguinte.
De novo, o salão inteiro tinha o que olhar: um dueto de andar elegante e prosa inteligente, digno de dois campineiros de estirpe. Enquanto todos observavam, o par saboreava tanto a conversa como a admiração. E se animou, passando das novidades da dança e do salão para as novidades do tempo e da cidade – saindo do burburinho do baile para a calma do terraço envidraçado. Esse grande terraço que circundava o prédio propiciava a vista mais desejada e elegante de São Paulo. A sede do Automóvel Clube ficava a cavaleiro do vale do Anhangabaú, exatamente na vertente oposta ao Theatro Municipal.
1 “Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, 24 nov. 1924”. In: Mário de Andrade. Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Simões, 1958. p. 63.
2 “Carta de Mário de Andrade a Tarsila do Amaral, São Paulo, 1o dez. 1924”. In: Aracy Amaral (Org.). Correspondência: Mario de Andrade & Tarsila do Amaral. São Paulo: Edusp; ieb-usp, 2001. pp. 86-90. (Coleção Correspondência de Mário de Andrade).
Ambos sabiam que nem sempre fora assim, de modo que a prosa engatou nas grandes mudanças que tinham visto acontecer. Quando foram para São Paulo, jovens, a cidade era quase um vilarejo com seus 31 mil habitantes. Aquele vale que agora olhavam era então a vista dos fundos da cidade, um lugar sem graça, espaço de pobres e marginais. A vertente da rua Líbero Badaró, onde agora ficava o clube, era ocupada por cortiços. Moças de família, como dona Olívia, nem mesmo passavam por ali, para não ver as imundícies nem os prostíbulos. Júlio Mesquita conheceu melhor o ambiente – estudante pobre, vivera um ano numa república montada num daqueles prédios.
Com a construção do viaduto do Chá, na virada da república, e a do Theatro Municipal, na primeira década do século XX, as coisas mudaram. O conde Prates era dono dos cortiços. Vendo as transformações, pensou que a paisagem renovada geraria rendas melhores e não teve dúvidas. Mandou expulsar os pobres, demoliu todos os cortiços e, sobre os escombros, foram construídas novidades para gente capaz de pagar caro por uma vista elegante. O prédio da sede do clube – e também da Hípica Paulista, além de alguns escritórios – foi um dos primeiros a ficar pronto. Desenhado como palacete luxuoso, ergueu-se com um gêmeo, metros abaixo, na mesma rua, este alugado como sede da prefeitura. E logo adiante, na ponta oposta do viaduto, surgiu outro prédio, que abrigava um hotel e aquele que era considerado o melhor restaurante da cidade, a Rotisserie Sportsman.
Uma obra puxou outra. A prefeitura não se engajou apenas pagando o aluguel caro da nova sede. Desapropriou o resto da área do fundo do vale para construir um parque, com desenho do arquiteto francês Joseph Antoine Bouvard.3 Enquanto Washington Luís era presidente só do Automóvel Clube – e prefeito da cidade –, foram plantados os jardins, finalizados em 1917 e decorados com estátuas nos anos seguintes.4 Estava formada a base da nova paisagem elegante de São Paulo.
Havia acréscimos ainda mais recentes, do início da década de 1920: o Hotel Esplanada, do outro lado do vale, vizinho ao teatro, e o edifício Sampaio Moreira, primeiro arranha-céu de São Paulo, logo atrás da sede do Automóvel Clube. Em 1927 essa era a nova forma de morar numa cidade com 700 mil habitantes.5
Tudo isso podia ser visto ao dar a volta no terraço com cobertura envidraçada. Dona Olívia e Júlio Mesquita conferiram também os melhoramentos feitos naquele último ano: a novíssima praça do Patriarca, na lateral do clube, e o recém-inaugurado posto telefônico, ao lado de um estacionamento para os automóveis dos sócios do clube em pleno parque – onde um atendente convocava os motoristas para buscar os patrões onde eles requisitassem.6
Assim completaram a prosa em torno das novidades da cidade, as quais eram também espelho de uma vida de realizações. Feito o balanço, estavam satisfeitos e prontos para entrar de novo no salão. Júlio Mesquita acompanhou a parceira até a mesa e atravessou de volta para a companhia de seus familiares.
3 Benedito Lima de Toledo. Anhangabahú. São Paulo: Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, 1989. pp. 63-75.
4 José Geraldo Simões Júnior. Anhangabaú: História e urbanismo. São Paulo: Senac/Imprensa Oficial, 2004. p. 144.
5 Cálculo a partir de: BRASIL. Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. “Sinopse preliminar do censo demográfico”. Rio de Janeiro, 2001. v. 7, p.49. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/sinopse_preliminar/Censo2000sinopse.pdf>. Acesso em: 17.03.2015.
6 Benedito Lima de Toledo, op. cit., p. 151.
Nessa altura, houve um intervalo no baile. Garçons de casaca e luvas brancas serviam a ceia. Entre os pratos, outra novidade introduzida pela amiga: sopa de tartaruga, receita que dona Olívia Guedes Penteado saboreou durante uma viagem pela Amazônia ao lado de Mário de Andrade e impôs como prato elegante ao bufê do clube.
Júlio Mesquita saboreou a iguaria já no início da madrugada. Satisfeito, antes da última entrada da orquestra pediu licença e saiu sozinho. O desfile na direção da porta completou sua jornada de triunfo. Era o bastante, pois o baile não lhe interessava a mínima. Tudo aquilo era apenas um leve aperitivo antes do trabalho – que ainda exigiria muito naquela noite. Pensando nisso, recusou o carro, preferiu ir andando sozinho. Varar madrugadas flanando fazia parte de sua vida, de modo que ninguém estranhou a decisão.
Saiu pela nova praça do Patriarca. Dali foi atraído por lembranças de antigas caminhadas, que lhe sugeriam um rumo. Lembrou-se dos outros tempos, da outra vertente da cidade, aquela que fora elegante em sua juventude. Era ali pertinho, de modo que valia a pena conferir. Atravessou a rua da Quitanda, passou pela Álvares Penteado, chegou ao largo do palácio – uma mistura de ecletismo do novo chafariz com a tricentenária torre, peça de quando o prédio era ainda a igreja dos jesuítas.
Parou ao lado do chafariz, na esquina da ladeira Porto Geral, entrada para a rua que naquele momento mal e mal fazia jus ao nome – Boa Vista. Da esquina se viam chaminés; prédios e luzes formavam uma paisagem industrial e fragmentada. Quando Júlio Mesquita era jovem, nada disso havia por ali, de modo que ele definiu de forma concisa, num texto de juventude, a paisagem que via dali: “Embaixo, a várzea do Carmo; ao longe, a linha azul da Cantareira”.7
O chafariz não era mais o limite que separava a obra urbana do homem daquela natureza de várzea e montanha. A mesma mão do homem que transformara um fundo de vale em centro moderno e conspícuo de São Paulo construíra os vastos arrabaldes de indústrias e operários que faziam desaparecer, entre prédios e fumaça, a boa vista secular.
Júlio Mesquita entrou pela rua Boa Vista, onde podia conferir sua participação em outra mudança. Alguns dos prédios que bloqueavam a velha paisagem eram da empresa, tinham sido construídos a seu mando. Passou por eles, mas nem ligou para o impedimento da vista de então – sua mente evocava a velha Cantareira num dia muito especial, o dia em que conhecera um político que viria a ser seu grande parceiro.
Foi uma madrugada inesquecível. Era fevereiro de 1890,8 alvorecer da república. Na noite anterior, na estação de trem de Taubaté, o jovem jornalista Júlio Mesquita tinha sido apresentado formalmente ao já veterano e eminente Rui Barbosa, ministro da Fazenda. Conversaram, e houve uma afinidade instantânea. Na noite seguinte, o imponente ministro convidou o recém-conhecido jornalista para partilhar um momento de grande intimidade.
Percorreram São Paulo a pé, na madrugada, a partir da Faculdade de Direito. Era um trajeto sentimental. Rui Barbosa revia os pontos da cidade que frequentara quando estudante. As lembranças o emocionaram assim que se abriu a visão da serra da Cantareira a partir da rua Boa Vista. Começou a chorar copiosamente, sem se importar por estar ao lado de um quase desconhecido.
7 Júlio Mesquita. “Ruy Barbosa: Reminiscências”. Revista do Brasil, São Paulo, pp. 199-205, 1923.
8 Rui Barbosa. Obras completas: Relatório do ministro da Fazenda. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, v. 18, t. 3, 1949. pp. 335-6; Júlio Mesquita, op. cit., pp. 199-205.
Dominando as lágrimas a pulso, confessou seus sentimentos ao acompanhante: “Quando era jovem, nos tempos da Academia, era nessa paisagem que eu descansava, nos fins de tarde, meus olhos cansados e doídos de leituras”. A confissão possibilitou uma proximidade imediata entre os dois, que apenas se reforçou com as constantes lutas políticas que travaram juntos ao longo das três décadas seguintes.
A vitória recente de Júlio Mesquita era mais um episódio dessas batalhas que tinham como foco a liberdade. E sua caminhada solitária foi se construindo em torno dessas evocações. Em 1927, a rua Boa Vista, por onde ele caminhava, desembocava num espaço vazio – ainda que tenha significado coisa bem diferente em sua vida.
Quando Júlio Mesquita era um adolescente recém-desembarcado em São Paulo, havia ali a igreja do Rosário, que dava nome para a praça e a rua ao redor,9 em que se concentravam os escravos – e também as incursões dos mais radicais lutadores pela Abolição. Chamavam-se a si mesmo de caifazes. Eram radicais, partidários da ação direta contra o cativeiro. Em vez de fazer discursos, promoviam fugas de escravos das fazendas, guiavam os libertados por caminhos secretos, protegiam o grupo durante pousos e organizavam quilombos. Uns poucos estudantes e algumas pessoas letradas faziam parte da rede. Eram encarregados de organizar a intendência, cobrir os pontos de fuga com sua respeitabilidade social, arranjar defesa legal quando tudo dava errado, arrecadar fundos e fazer contatos. Foi trabalhando nessa rede, na qual a liberdade era o valor central, que o adolescente Júlio Mesquita se definiu como o político que viria a ser – capaz de comemorar noite adentro outra vitória da liberdade.
Exatamente ao lado da igreja ficava a sede do jornal onde trabalhou por grande parte da vida adulta. Condenadas à demolição simultaneamente, tanto igreja quanto sede já não existiam mais como marcas físicas das batalhas que travara, mas Júlio Mesquita plantou a redação de seu jornal num dos prédios erguidos sobre os escombros da igreja. E, mesmo recente, esse edifício seria ultrapassado na paisagem urbana. Era impossível para quem entrava na praça Antônio Prado deixar de olhar para o perfil já gigantesco e maciço de uma construção que teria 27 andares, o edifício Martinelli,10 na face do largo que dava para a avenida São João. Perto dele, todos os outros prédios de São Paulo pareciam baixos e acanhados.
Posto como muralha imensa em rua estreita, fora desenhado segundo o molde dos arranha-céus dos Estados Unidos, não segundo os modelos europeus dos ricos paulistanos “tradicionais”; pensado não como atestado aristocrático, mas como monumento para celebrar a fortuna de seu dono capitalista, o conde Martinelli, que fora açougueiro antes de se tornar dono de frota de navios e ganhar dinheiro suficiente para erguer um edifício em homenagem ao próprio sucesso nos negócios.
Quando inaugurada, a construção levaria milhares de pessoas para o local. Mas, naquela madrugada de Carnaval, quase ninguém viu Júlio Mesquita cruzar o pórtico do palacete Martinico (nome que homenageava outro colega de militância republicana, Martinho Prado Júnior), onde um letreiro indicava: O Estado de S. Paulo.
O senhor de cabelos brancos e olhos azuis que entrava anônimo era ainda o indisputado rei daquela praça. Ela reunia as principais redações de jornal de São Paulo. Todos os concorrentes olhavam para Júlio Mesquita como se ele fosse o imperador do negócio jornalístico da cidade, o chefe que todos tentavam imitar, o concorrente a ser combatido, mas cuja liderança ninguém conseguia nem arranhar.
9 Atual rua João Brícola.
10 Maria Cecília Naclério Homem. O prédio Martinelli: A ascensão do imigrante e a verticalização de São Paulo. São Paulo: Projeto, 1984. pp. 52-89
O passeio e as lembranças o deixaram pronto para o trabalho – e a chegada tardia ajudava. As poucas pessoas que ainda estavam na redação naquele final de madrugada, e viram Júlio Mesquita entrando, olharam para ele com deslumbramento ainda maior que os sócios do Automóvel Clube – não apenas porque miravam o dono do jornal trajando seu summer de festa. Há muitos anos a presença de Julio Mesquita era rara na redação, e o proprietário se tornara quase uma lenda viva.
Continuava afável e discreto como sempre. Depois de cumprimentar a todos, em vez de incomodar redatores, aboletou-se num canto reservado: uma mesa no escritório de advogado de Plínio Barreto, convenientemente instalado ao lado da redação (onde este também trabalhava nos intervalos entre as consultas de seus clientes).
O isolamento tinha uma razão de ser. Festa, passeio e evocações eram apenas os preâmbulos necessários para organizar palavras. Quando havia gente ao redor, a concentração para escrever ficava atrapalhada. Era obrigado a fazer anotações, ensaiar frases. Nessa hora, as expressões não se encadeavam como ele queria. Então, riscava e logo jogava fora a lauda, pois detestava emendas e rabiscos.11 Sem ninguém por perto, na calma da madrugada, as coisas corriam bem melhor.
A noite triunfal e o passeio já tinham lhe deixado as ideias prontas. Sem perturbação de terceiros, as frases saíam concatenadas, eram colocadas no papel sem parada para correção, e o texto ganhava fluxo e ritmo. Lembra-nos que, em ano como este e dia como o de hoje – eleição e logo a seguir Carnaval –, num jornal desta cidade ou do Rio, a crônica dos acontecimentos da semana anterior começava assim: “Passaram sem incidentes dignos de nota os dois carnavais, o triste e o alegre”. A frase do cronista também passava sem oferecer o flanco a objeções. Na verdade, tudo fora, mais ou menos, carnaval.12
Mas o pleito de 24 de fevereiro de 1927, na visão de Júlio Mesquita, mudaria para sempre essa associação entre eleição e farra farsesca. A mudança estava fundada no modo como acontecera a primeira vitória eleitoral de candidatos do Partido Democrata. “Hoje, aquelas palavras de crudelíssima zombaria não teriam cabimento. Neste ano, em São Paulo, realizou-se afinal uma eleição, eleição de verdade, a valer, séria.”
11 Paulo Duarte. Júlio Mesquita. São Paulo: Hucitec; Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977. p. 272.
12 Notas e Informações. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 3 mar. 1927, p. 3.
Eleger três deputados e um senador seria algo banal, não fossem eles os primeiros, em muitos anos, que não pertenciam ao Partido Republicano Paulista, partido que, desde a proclamação da república, detivera o monopólio da vida política do estado. Desde 1889, quase ninguém vencia fora desse aprisco. A vitória de oposicionistas seria, portanto, um ponto de mudança fundamental, realçado no texto:
É certo que em nosso estado outras eleições houve já, também verdadeiras – algumas poucas, de longe em longe. Nenhuma, porém, como a de 24 de fevereiro. Veio e passou a folia carnavalesca. A recordação do último pleito ficou, viva e impressionante como estava, sem dar sinais de apagar tão cedo.
Essa recordação que não se apagaria, esse sinal de firmeza no tempo, aparecia para o escritor como uma marca indelével.
Ficará, ainda, uma demonstração. Tornou-se evidente que nem tudo se perdera e que nem é tão difícil como se supunha recuperar o que se perdeu e restaurar o estragado. É agora crença vulgarizada que chegaram os tempos, de há muito anunciados. Não vinham próximos, como se afigurava à justificada impaciência dos que os desejavam. Mas já se tinham posto a caminho, quando sua vinda era terminantemente contestada pelos que deles se arreceavam. Ei-los, aí estão.
O novo tempo seria o tempo da verdade eleitoral, do domínio soberano do eleitor sobre o eleito, da sociedade sobre seu governo.
Preparemo-nos para assistir ao que se tem de suceder. Não tarda e não deve tardar o sistema da fiscalização e da tomada de contas. Outra maneira não existe de se gerirem, como convém, os interesses de várias naturezas, materiais e morais, fundidos no patrimônio popular. Se nosso povo desistiu por longo tempo de sua autonomia e se esqueceu das prerrogativas de que o iam despojando, não o fez por sua própria deliberação. Foi coagido.
Libertar o patrimônio de toda a sociedade da coação e impor a vontade soberana do eleitor aos representantes eleitos significaria o fim de um grande pesadelo, expresso no sangue dos mortos pelo governo durante a eleição.
Resulta de tal [do Partido Democrático] decisão, que o Partido Republicano Paulista não compreendeu, o sangue de que vão manchados, para o Congresso Nacional, os diplomas de nossos deputados e de nosso novo senador. Desgraçada corrupção da faculdade de observar! Este triste engano de psicologia a todos deixou mal – ao partido, que nele caiu, ao governo, que deste partido é coluna de apoio e escudo. E por fim a nós, outros em geral.
Uma eleição em que a sociedade precisa disputar, à custa de vidas, votos contra um partido unido a um governo – e um governo se alia a um partido para espoliar a vontade do restante da sociedade – é sempre uma eleição viciada. O fim entrevisto desse vício era o grande motivo do empenho noturno de Júlio Mesquita, que se transmutava em conclusão de seu texto.
A política, infielmente praticada, tudo perverte. Ia-se criando entre nós, por incessante acumulação de privilégios odiosos, uma casta que para si mesma ideara e estabelecera uma justiça especial, a refletir-se, como se fora um astro de apocalipse, um sol de sombra, nos preceitos tortuosos de um código de escravização. Mas os paulistas não querem ser escravos. Basta!, disseram eles em tom solene. O sol é a luz que brilha para todos, igualmente. É o que significa a eleição de 24 de fevereiro.
Júlio Mesquita só acreditava no poder sem sombra, no poder derivado da vontade do eleitor como única verdadeira fonte de justiça de uma eleição – e por isso só podia condenar o uso do governo como instrumento para conspurcar essa vontade, enfim derrotado. Vencer eleições representando a sociedade, e enfrentando o sol negro do governo somado a um partido, não era nada fácil – mesmo em se tratando de apenas quatro parlamentares.
Por isso a eleição de 1927 só podia lhe aparecer, saído da prisão, como uma grande vitória das ideias democráticas, digna de ser comemorada ao longo de toda a noite de festa e de trabalho. Depois de colocar o ponto final no papel, Júlio Mesquita juntou as páginas e entregou-as na redação. Permitiu-se alguns bons cavacos de prosa com os últimos remanescentes do fechamento enquanto esperava o carro.
Como tantas vezes em sua vida, já era dia quando começou a jornada para casa, depois de mais uma noite de trabalho. E, enquanto atravessava a cidade silenciosa na manhã de Quarta-feira de Cinzas, as palavras por ele registradas também seguiam seu caminho.
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