Criada em 2010, em São Paulo, a festa Calefação Tropicaos celebra neste sábado (13) – com uma edição especial que incluirá apresentação do Mundo Livre S/A – o primeiro quinquênio de existência e, por que não dizer, de resistência, uma vez que a festa idealizada pelos produtores Pita Uchoa e Carol Malinovski também promove ações regulares de ocupação de espaços públicos da cidade. Com o lema “Dos Prédios para as Praças” – frase extraída da canção Colégio de Aplicação d’Os Novos Baianos – a festa ajuda a minar a carência de opções culturais e entretenimento em locais como o centro velho de São Paulo e praças como a Waldir de Azevedo, um mirante na divisa entre o Alto de Lapa e o Alto de Pinheiros, bairros da zona Oeste.
Intitulada Calefação Tropicaos apresenta: Arraial Tropicaos Com Mundo Livre (confira a programação completa), a festa terá início às 22h, na Lega Itálica, tradicional reduto da comunidade italiana, sediado no coração da Liberdade, bairro da região central de São Paulo que agrega o maior número de imigrantes japoneses e seus descendentes na capital paulista. Além do show dos ícones do movimento manguebit, como o título do evento sugere a festa também celebra o início das festividades juninas e adota o caráter de quermesse.
A apresentação do Mundo Livre e a ambientação de arraial têm tudo a ver com as origens do produtor cultural e DJ Pita Uchoa. Recifense, radicado em São Paulo desde 2006, como bom nordestino, ele cresceu cultuando as festas juninas – “é o período do ano que mais sinto saudades de Recife”, diz – e testemunhou a revolução que o manguebit impôs à sua cidade. Formado em Relações Públicas, por questões ideológicas ele assessorou o movimento social Terra, Trabalho e Liberdade, mas teve de encarar, em 2005, um emprego formal na Livraria Cultura de Recife, como responsável pela sessão de DVD’s. Apaixonado por cinema ele logo fez por onde criar um cineclube no auditório da loja, iniciativa que motivou os empregadores a convida-lo para integrar uma nova equipe que estava sendo formada em São Paulo. Em 2006 ele desembarca na cidade para trabalhar na enorme loja da rede instalada no Conjunto Nacional, tradicional espaço comercial da Avenida Paulista. Pouco depois, percebendo que o trabalho na livraria ficaria restrito às vendas, ele passou a atuar em uma agência de propaganda, como assessor virtual de contas de clientes como os canais de TV Nickleodeon e VH1.
Com a chegada a pauliceia, Pita passou a residir em um apartamento no bairro da Pompeia, bairro da zona Oeste. O espaço era dividido com a produtora francesa e DJ Laurence Trille, cujo namorado à época, o alemão Thomas Haferlach, começava a consolidar a Voodoohop. Ao frequentar a festa dos novos amigos e constatar que a proposta de itinerância em locais decadentes do centro de São Paulo, idealizada por Thomas, ganhava um número cada vez maior de simpatizantes, Pita passou a colaborar com a produção do evento. Em junho de 2010, durante uma viagem do DJ alemão à Europa, como haveria uma lacuna de mais de um mês sem a realização de uma próxima Voodohop, Thomas sugeriu ao amigo que fizesse uma festa na Trackers, sediada em um edifício na Rua Dom José de Barros, que se tornou o principal reduto da Voodoohop. Naquele junho de 2010, a despeito do outono vigente, o frio era tão intenso quanto no mais rigoroso inverno. Fato que motivou Thomas a também sugerir o nome “calefação” para a festa. Nasce daí o embrião da Calefação Tropicaos, que ganhou traços definitivos com o início do relacionamento entre Pita e Carol, em 2011.
Nascida em Curitiba, Carol tem graduação em Desenho Industrial e Programação Visual, pela PUC do Paraná. Recém-formada, começou a trabalhar como web designer, ofício que no inicio dos anos 2000 viveu um auge de demanda. Fator que motivou Carol a migrar para São Paulo e procurar oportunidades em um mercado de trabalho maior e mais diverso. Logo ela foi contratada, em 2002, para atuar como web designer na TV Cultura. Além do trabalho formal, Carol também procurava, nas horas vagas, fazer ações culturais como o projeto Grite Poesias, criado em parceria com a amiga Giuliana Xavier. Inspiradas na música de mesmo nome do pernambucano Chico Science, elas faziam intervenções em que distribuíam poemas em espaços públicos e festas como a Sunset, realizada pelo MIS (Museu da Imagem de Som), onde surpreenderam os presentes ao entregar dezenas de balões inflados que serviam de “embalagem” para poemas. Em paralelo, com a amiga Ana Mendes, Carol também criou a confecção de calças legging Eslovenia. Com o propósito de expor as peças na festa, Ana levou Carol a conhecer a Voodoohop e, consequentemente, a se aproximar do futuro namorado. A partir do momento em que Pita e Carol somam forças, no início de 2011, a Calefação ganha regularidade de agenda, passa a ter ao menos uma data mensal, e o acréscimo do nome Tropicaos (que faz alusão ao livro do artista gráfico baiano e ícone do tropicalismo Rogério Duarte, lançado em 2003, pela Editora Azougue). A história de sucesso que começa a ser escrita pelo casal talvez tenha como base uma soma feliz de afinidades eletivas. DJ’s esporádicos, eles decidiram fazer do repertório de música brasileira, de diversas regiões e períodos, a principal característica da festa.
Desde 2006, Carol procurava levar suas pesquisas musicais às festas de amigos e pequenas pistas de dança. Um “vício” desenvolvido na adolescência, que ganhou força com as descobertas da música brasileira de décadas passadas. “Quando passei a explorar esse universo as coisas começaram a fazer um sentido maior para mim. Um processo que veio com artistas como os Mutantes, com quem rolou uma identificação muito forte, e álbuns como A Banda Tropicalista do Duprat (LP de 1968 do genial maestro Rogério Duprat, aliás, arranjador dos primeiros títulos d’Os Mutantes). Sempre fui louca por música e, assim que cheguei a São Paulo, passei a ver todos os shows possíveis e também tocar em algumas festas, naquele momento em que rolava uma onda de samba-rock na cidade. Mas era algo feito por pura brincadeira. Eu não tinha a menor ideia de que a coisa chegaria a essa dimensão de hoje.”
A soma dos interesses de Carol com as pesquisas do namorado pernambucano apimentaram o caldeirão sonoro da Calefação Tropicaos. A origem recifense, claro, fez nascer em Pita, desde a mais tenra infância, a admiração e o interesse pelos gêneros genuinamente nordestinos. Rejeitados pela geração anterior ao manguebit, com a explosão do movimento liderado por Chico Science e Fred Zero Quatro, eles passaram a ser novamente objeto de culto e a impregnar todos os cantos da capital pernambucana. “Com o boom pós-manguebit, o som das pistas de dança de Recife passou a ser a música regional. Quando cheguei a São Paulo, o clichê das festas de música brasileira era o samba-rock, o samba-soul. Era garantia de a galera cair na pista, mas ninguém dava muita abertura a esse tipo de som tipicamente nordestino. Quando muito tocava forró, baião, mas na versão ‘universitária’. Ia soltando aos poucos, nas pistas, coisas da Lia de Itamaracá, de Dona Selma do Coco. Tocar Reginaldo Rossi (cantor idolatrado em Recife, morto em 2013), naquela época, era algo inimaginável.”
Com a adesão de público e a estabilidade financeira do projeto, Pita e Carol acrescentaram as festas shows de bandas independentes como Mel Azul e Anjo Gabriel, e a promover edições gratuitas da Calefação Tropicais em espaços públicos da cidade. Iniciativa que chamou a atenção do curador Joel Borges, da Casa das Cadeiras, centro cultural instalado na zona Oeste, em um extinto complexo industrial da família Matarazzo. Borges foi apresentado a dupla pela produtora cultural Inti Queiroz, o Festival PIB – Produto Instrumental Bruto, dedicado à música instrumental independente. A festa também abriu os olhos da Secretária Municipal de Cultura que, por meio da assessora Karen Cunha, passou a apoiar as ações da Calefação Tropicaos e disponibilizar espaços públicos como a Rua São Bento, no centro velho de São Paulo, e também a incluiu em eventos como o SP na Rua, criado no início da gestão do prefeito Fernando Haddad.
Em princípio, essas ações tinham como objetivo prover entretenimento a um público jovem carente de eventos ao ar livre. No entanto, com o advento das jornadas de junho de 2013, esse propósito ganhou conotações políticas de ressignificação da relação entre a cidade e seus habitantes. “Começamos a fazer essas intervenções de rua sem ter muita consciência da necessidade de ocupar os espaços públicos. Outros coletivos começaram a fazer o mesmo e passou a haver maior reflexão sobre a importância de gestos como esses. Depois de junho de 2013 essas questões ficaram bem mais latentes. Todo mundo teve de refletir sobre elas e a cobrança de uma postura era inevitável. Hoje defendo que essa discussão tem que ser cada vez maior”, diz Pita.
Essa tomada de atitude foi deflagrada à revelia dos órgãos públicos, uma vez que as primeiras ações aconteceram com certo caráter de flashmob, como relembra Carol. “Aprendi a lidar com coisas que eu não imaginava fazer algum dia, como ocupar espaços públicos para promover o encontro das pessoas sem pedir autorização ou pensar no que pode acontecer. Uma vez que a festa ganhou essa dimensão procuramos trabalhar com várias possibilidades e defender a apropriação de ambientes que pertencem à cidade e as pessoas que nela vivem.”
Para alguns, como as ações são organizada por um coletivo que tem como propósito a realização de festas, essas intervenções podem soar frívolas, mas Pita e Carol atribuem à iniciativa uma interpretação que vai além. “O que considero mais positivo nesse processo é que, aos poucos, as pessoas vão se convencendo que ele deveria acontecer de forma espontânea. Muita gente esquece que há pouquíssimo tempo havia artistas de rua sendo espancados em São Paulo – algo que está acontecendo agora em Recife. Se a próxima gestão paulistana for de um prefeito com a cabeça menos aberta, essa repressão pode voltar a rolar. Então, acho que é muito positivo o que as pessoas vêm fazendo, mesmo que de forma desarticulada, porque iniciativas como essas alimentam a perspectiva de que este se torne um comportamento natural. Ou seja, independentemente de quem vier gerir a cidade, se ele decidir reprimir iniciativas como essa, terá de lida com o fato de que corre o risco de ser execrado. As pessoas não vai mais aceitar que seja normal reprimir com violência artistas de rua ou ocupações pacíficas e cidadãs, que promovem o encontro das pessoas”, defende Pita.
Em 2014, a proposta de itinerância de Carol e Pita ganhou um terceiro elemento: uma simpática Kombi branca, adereçada com motivos psicodélicos, batizada de Tereza, que permitiu maior mobilidade e facilidade de transporte dos equipamentos de som, principalmente nos eventos gratuitos. Até outubro, a perua será “pimpada” com sistema integrado de som, brinquedoteca e feira alternativa. Na próxima semana a festa integrará a Virada Cultural. Em julho, será realizada uma nova edição na Casa das Caldeiras. A comemoração dos 5 anos da Calefação Tropicaos terá início às 22h e previsão de encerramento às 6h. Fred Zero Quatro e os parceiros do Mundo Livre devem subir ao palco às 2h. A celebração será mesmo em grande estilo.
MAIS:
Em 2013, o líder do Mundo Livre S/A , Fred Zero Quatro, foi entrevistado pela Brasileiros, na reportagem que prestou homenagem aos 50 anos do álbum Samba Esquema Novo, de Jorge Ben Jor (leia a íntegra). Na entrevista, o compositor explicou os motivos que o levaram a escolher o título Samba Esquema Noise para o já clássico álbum de estreia do Mundo Livre S/A.
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