A fortaleza do som

Um sobrado meio descuidado perto da Teodoro Sampaio, a rua mais movimentada de Pinheiros, em São Paulo, na borda da Vila Madalena. Uma das poucas casas que sobraram. Da rua, já dá para se ver os aparelhos eletrônicos empilhados no terraço envidraçado e o focinho de um cachorro da raça bóxer, o Pascoal, examinando a visita pelo vão da janela.

O dono da casa é um senhor descendente de japoneses, que lembra Pat Morita, do filme The Karate Kid. De bermudas, sorridente, simpático. A casa é o estúdio El Rocha e o senhor é Claudio Takara, 60 anos, uma lenda da música moderna urbana, responsável por sons (põe som nisso) insubmissos, de Ratos do Porão a Marcelo Camelo, fase solo, além de ser pai de Daniel Ganjaman, pertencente ao coletivo Instituto; de Fernando Sanches, baixista do CPM22; e de Maurício Takara, baterista do Hurtmold. Graças ao estúdio, muita gente acabou por chamá-lo de Claudio Rocha. Mas seu Takara explica: “Rocha é uma gíria antiga roqueira, sinônimo de ‘pedra 90’, ‘100%’, ‘ponta firme’. Se o fulano é ‘rocha’, é legal”. Um amigo, numerologista, aconselhou-o a acrescentar duas letras para evitar más vibrações. E foi bem claro, afirmando que seriam necessários um “e” e um “l” para o astral melhorar. “Vejamos. Rochale era esquisito e le rocha, ‘bichinha’. Foi Ganjaman quem sugeriu El Rocha”, lembra seu Claudio. Épico como uma banda punk. Colou.
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Claudio é de Lucélia, na região de Marília, no Estado de São Paulo, a 700 km da capital. O nome é a junção de Luiz e Cecília, casal de fundadores do lugar – “a atriz Lucélia Santos foi assim batizada por causa da cidade”, garante o músico-técnico. Sansei, sobrinho de violinista, neto de cantora e filho de técnico em eletrônica, seu Claudio fez jus à ancestralidade. Foi músico de baile, guitarrista. Tocava violão de corda de aço com um captador ligado a um amplificador construído por ele, como todo o restante da aparelhagem do grupo, valendo-se do que aprendeu na oficina autorizada da Philips dirigida pelo pai. O ponto alto da carreira do conjunto foi uma miniturnê pelo interior, acompanhando Paulo Sérgio – já falecido, o único cantor que durante um momento rivalizou com Roberto Carlos.

Seu Claudio levou essa vida até que chegou a hora de se dedicar aos estudos de eletrônica. Parou por completo com a música. O tempo foi passando, ele casou-se com uma amiga de Lucélia, mudou-se para São Paulo, os meninos nasceram, e, quando deu por si, viu-se cercado outra vez por músicos, cada um dos filhos com três bandas e gastando os tubos com aluguel de estúdios de ensaio.

Como na casa havia bateria, amplificadores e toda uma tralha dos seus tempos de conjunto, o pai sugeriu: “Aluguem uma garagem aí e montem vocês mesmos um estúdio”. Foi o que fizeram. Logo os amigos começaram a pagar para ensaiar, o que obrigou a família a se organizar um pouco. O hobby virou negócio em 1996, quando a empresa de automação industrial em que seu Claudio trabalhava faliu. O músico-técnico teve de renascer. Três anos depois, tiveram de se mudar para um lugar maior, o sobrado que ocupam até hoje.

Os irmãos começaram tocando violão. Formaram, com um vizinho, um conjunto que não vingou, justamente porque desde cedo já manifestavam orientações diversas, embora dividissem a devoção pelo punk – que persiste até hoje. Daniel, hoje com 31 anos, é o cara das coisas refinadas, suingadas. Fernando, de 30, é chegado ao som pesado. Maurício, de 28, sempre lidou com a experimentação. Daniel foi o primeiro a se envolver com o estúdio, cuidando da parte de gravação, sempre sob a orientação do pai. Começaram gravando ensaios em fita cassete. Vez por outra, essas gravações eram incluídas em coletâneas de bandas punk. Segundo seu Claudio, o que alavancou o El Rocha foi a aquisição de um kit de gravação do lendário estúdio Gravodisc: um gravador de 16 canais, a fita de duas polegadas e uma mesa de 24 canais – que ainda está no El Rocha, no estúdio de ensaios. “Na verdade, paguei uma miséria por um equipamento que estava encostado lá, nunca funcionou direito. Peguei, dei uma revisada, atendendo às especificações originais, e eles passaram a funcionar como novos”, se orgulha. Ou seja, nos tempos em que os grandes estúdios já usavam há muito o sistema digital, o El Rocha oferecia uma aparelhagem analógica novinha em folha. Para os puristas, o paraíso.

Clemente, da banda punk Inocentes, produziu a primeira gravação do El Rocha, para um grupo chamado Skafajets. Quando Daniel afastou-se da mesa para entrar no grupo carioca Planet Hemp, como guitarrista, o irmão, Fernando, assumiu seu posto, onde está até hoje. Daniel faz seu trabalho com o coletivo Instituto em uma sala da gravadora YB, enquanto que Maurício trabalha em casa, sendo muito requisitado como instrumentista no estúdio do pai. Seu Claudio diz, com uma ponta de ironia, que: “O El Rocha não recebe muitas celebridades por que não tem condições físicas”. É muito aparelho amontoado e o estúdio não para, não pode se dar ao luxo de fechar temporariamente para uma reforma. Orgulha-se, por exemplo, da sala inacabada de bateria. O estúdio tinha um projeto definido, mas “quando fizemos o primeiro take como teste – gravação -, o som saiu tão bom que resolvemos deixar a sala assim mesmo, para não perder o efeito”, diverte-se.

Entre os que gravaram no El Rocha – além de Marcelo Camelo e dos Ratos do Porão -, pode-se citar o grupo Cidadão Instigado, Mallu Magalhães, Hurtmold (todos os discos), CPM22, o trompetista americano (colaborador do Hurtmold) Rob Mazurek (e seus grupos The Chicago Underground e São Paulo Underground), Naná Vasconcelos. Celebridades, sim. A parceria com Victor Rice, uma lenda mundial do dub reggae, trouxe novos contatos para o El Rocha. Em fuga da explosão imobiliária nova-iorquina, Rice desembarcou em São Paulo onde conheceu seu Claudio. O amor pelo som analógico que partilhavam deu início a um intercâmbio em que o brasileiro entra com a experiência e o americano com equipamentos e contatos. Hoje, o El Rocha grava/masteriza discos para países como Dinamarca, Paraguai, Espanha e México.

Quando o estúdio começou, o mercado independente era pequeno e a gravação analógica considerada ultrapassada.


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