A relação do Brasil com os Estados Unidos é bem mais complexa do que apenas o cancelamento da viagem da presidenta Dilma Rousseff a Washington, em 2013, em meio ao escândalo de espionagem da NSA, e a ida dela ao país nesta semana, onde se encontrou com o presidente norte-americano, Barack Obama, nesta terça-feira (30). O governo brasileiro atua tanto como um “estabilizador” das tensões na América do Sul por delegação dos EUA como ocupa uma posição de liderança “deixada” pelos norte-americanos nos últimos anos, quando voltaram-se para o Oriente Médio. As conclusões foram explicitadas no debate América Latina e Estados Unidos: Novos Desafios, na biblioteca Brasiliana, na Universidade de São Paulo (USP), na tarde desta terça.
“Brasil e Estados Unidos se aproximaram muito do ponto de vista estratégico nos últimos anos. Os EUA delegaram ao Brasil uma função de estabilidade na região. Isso significou, de certa forma, que ficamos mais conservadores, condenando certas revoluções e procurando uma estabilidade regional, ainda melhor se aliada com interesses externos”, argumentou o economista e professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), Ricardo Sennes.
Já para Silvia Portela, consultora da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e especialista em relações trabalhistas e processos de integração no Mercosul, o Brasil ocupou de forma satisfatória uma posição deixada pelos Estados Unidos, dialogando com os vizinhos de forma mais clara, viés que perdeu intensidade a partir da eleição da presidenta Dilma Rousseff. “Avançamos em várias iniciativas desde estão, como a criação da Unasul e da Celac. É importante lembrar que, logo após a eleição do presidente Lula, houve uma greve golpista na Venezuela, que visava derrubar o governo chavista. Naquela mesma época, Lula foi aos Estados Unidos para se encontrar com George Bush, e ouviu do presidente norte-americano um pedido de intermediação da relação com a Venezuela. O governo Lula cumpriu esse papel”, explicou ela.
“Falta interesse pessoal da presidenta Dilma Rousseff nesses assuntos. Não se fala mais da África nesse País, por exemplo. O presidente Lula foi a quase todos os países africanos quando era presidente, e hoje a nossa agenda africana sumiu. A China está nadando de braçadas lá”, completou.
Agenda sul-americana
Para o economista e professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), Ricardo Sennes, nos últimos anos, o Brasil conseguiu desenhar uma agenda internacional mais clara, voltada para a América do Sul, mas possui uma grande dificuldade na capacidade de alocar recursos para implementá-la na região. A consequência disso, segundo ele, é uma incapacidade de atuar com mais vigor nas decisões políticas sul-americanas.
“O Ministério da Saúde do Brasil, por exemplo, tem um orçamento de cerca de R$ 90 bilhões, sendo que menos de 1% desse montante vai para projetos regionais. Se você pegar um dos ramos de atuação da pasta, a contenção de vírus, eles não respeitam fronteiras. Quando surge um vírus, ele não olha muito para qual território vai agir. Ou seja: não faz nenhum sentido. Até hoje defendemos a carne brasileira no exterior também, sem considerar a questão do agronegócio do ponto de vista regional, já que as pragas e as doenças animais, da mesma forma, não respeitam fronteiras”, explica.
Sennes afirmou que algumas questões travam uma postura mais firme do Brasil na região, como a dificuldade em impor seu tamanho perante os vizinhos e, de certa forma, a cooperação da sociedade para uma integração maior entre os países sul-americanos. “A sociedade brasileira não permite alocar recursos a nível regional”, afirma. “A agenda brasileira avançou bastante ao desenhar seu espaço prioritário, voltando para a América do Sul, com densidade em algumas agendas, mas a implementação delas é aquém do que se desenhou. Considerando o tamanho do Estado que temos, surgem contradições como sentar com o Uruguai para negociar e não conseguir colocar o fato assimétrico em questão. Quando não conseguimos ser eficazes nesse espaço prioritário, entrar no jogo de poder existente nesse ambiente, outro ator entra, como a China. Não adianta querer ser uma potência regional alocando 1% de todas as suas políticas para o tema regional. Isso significa que a questão regional afeta 1%, se que é que é isso, da sua vida pública”, completa.
Por fim, o economista apontou como “exemplo clássico” da dificuldade brasileira em se impor no contexto sul-americano das relações internacionais a ausência quase completa do Brasil no conflito colombiano envolvendo as Farc e o governo do país vizinho. “É uma ferida do Brasil não colocar o tema colombiano, que dura 40 anos, em sua agenda. Se você tem um problema como o que eles possuem, de metade do território ocupado por uma força que não é estatal, o que você precisa fazer? Resolver o problema, ou seja, recuperar o monopólio da força no seu território. Se o Brasil vai falar com a Colômbia e diz: ‘Vamos negociar flores’, se eu sou a Colômbia, respondo: ‘Olha, é legal discutir flores, mas vamos falar do principal tema que está acontecendo aqui?’. Pode concordar ou não com o tratamento que a Colômbia dá ao tema, mas fingir que não existe não é a melhor postura”, finalizou.
Deixe um comentário