Militante do movimento negro e ativista social, Douglas Belchior, 36, sempre busca compartilhar informações com as pessoas através das mídias sociais, mas seu trabalho não fica só na internet. Nascido em Poá, na região metropolitana de São Paulo, ele é professor formado em História na PUC/SP, professor da rede pública estadual de São Paulo, educador e fundador da rede de cursinhos populares e comunitários da Uneafro-Brasil. É também membro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) para a gestão 2015/2016.
Segundo Belchior, o debate sobre a questão da maioridade penal não ocorre de maneira clara. Ele diz que o Brasil é um país ainda com muitos hábitos remanescentes do período da escravidão e que ainda a lei funciona para reprimir pobres e negros.
O educador critica a atuação da Polícia Militar nas comunidades e afirma que há uma construção no imaginário do senso comum de relacionar o garoto pobre e negro da comunidade como promotor do tráfico. Ele também defende que a solução para a violência no País seja baseada em medidas socioeducativas e no cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Confira a entrevista completa.
Brasileiros – Como o senhor vê o nível da discussão em torno da redução da maioridade com a sociedade brasileira?
Douglas Belchior – Não houve um debate aprofundado e sério sobre a questão. A redução significa discutir os direitos garantidos da sociedade brasileira a todos os cidadãos jovens com menos de 18 anos. Vivemos em uma sociedade que nega e viola direitos humanos e sociais, especialmente da juventude mais pobre e negra, e que ao final das contas responsabiliza essa juventude, eventualmente, por algum caminho considerado equivocado que esse jovem venha a tomar. A sociedade brasileira não discutiu isso e não tem uma opinião formada sobre esse tema. Os 87% que se dizem a favor da redução tem uma opinião a partir da massificação de informações mentirosas por parte da grande mídia brasileira. Então, o argumento de que o povo brasileiro quer essa mudança e que o parlamento deve obedecer é lamentável. Não cabe. Deveríamos discutir isso com seriedade, e se for o caso, de colocar essa decisão na mão da população, que seja a partir de um debate sério, consequente e responsável. Não da maneira como está acontecendo.
Em um vídeo recente no Facebook, você argumenta que a lei em nosso País pune apenas pobres e negros. Isso acontece por existir um racismo institucional ou pelo problema socioeconômico em si?
O Brasil é um país construído sob a égide do racismo. Não há nenhuma lei repressiva, fruto desses 127 anos de pós-abolição, que não esteja contaminada com valores escravocratas, que ainda hoje regem a dinâmica social brasileira e que ainda são maioria nos espaços de poder. O parlamento brasileiro é majoritariamente representado por donos de terras, de empresas, daqueles que detém poder econômico, ou seja, dos descendentes dos escravocratas no Brasil. Então, a lei brasileira como é hoje já funciona para reprimir, prender e matar pobres e negros. Quando a gente reduz maioridade penal a gente está só concedendo uma norma ativa que já está em vigência, a diferença é que vai prender em maior número e mais cedo a juventude pobre.
Qual é o tratamento dado à periferia pela Polícia Militar?
Três quartos da história do nosso País foram vividos com escravidão. Assim, é evidente que, no imaginário da coletividade, você tem muitos valores escravagistas e a própria ação da Polícia Militar é alinhada a partir desses valores. A Polícia Militar reforça no imaginário dos policiais em treinamento a figura do morador de periferia, a figura do território em si como de risco. Ela existe historicamente para proteger patrimônio privado. Uma polícia é a que dá volta em bairro nobre e outra é aquela que interage nas comunidades. Nas comunidades pobres a polícia vai para reprimir as festinhas. Nas ricas, de classe média e nos centros urbanos a polícia tem um caráter de cuidado e preservação. Esse imaginário interfere na ação prática deles.
Quais aspectos históricos do Brasil marcaram na questão da idade penal e como eles se relacionam com o atual contexto do País?
Em 1888 acaba a escravidão, em 1889 há o advento da República e, em 1890 acontece uma reformulação no Código Penal brasileiro que aplica a maioridade penal para nove anos de idade. As leis brasileiras sempre estiveram, do ponto de vista da punição e repressão, um alvo objetivo e claro. A população pobre e majoritariamente descendente de escravos. E, 127 anos depois, isso não mudou. As comunidades com muita presença negra sofrem com a opressão racista do Estado. Daí a postura radicalmente agressiva da polícia, a negação do Estado em oferecer direitos a esses territórios. Neles falta escola, condições, salário de professor, cuidado com o espaço público voltado para educação, médico, remédio, mas nunca falta policiamento, delegacia, coturno, farda nova, e munição e armas para os policiais reprimirem. Esse é o desenho de como funciona a sociedade brasileira.
A principal argumentação contrária à manter a idade penal em 18 anos é que pessoas de 16 anos já sabem o que fazem. Nas favelas, especialmente, o que esses menores sabem sobre o que fazer? Eles têm noção clara do que os críticos chamam de “distinguir o certo do errado”?
Eu perguntaria aos parlamentares que usam esse discurso frágil se realmente acreditam nisso, se acham que uma pessoa de 16 anos está pronta para as coisas da vida. A verdade é que não está. O problema é que os deputados não enxergam os seus, enxergam o outro, o pobre, negro e favelado que carrega o estereótipo de bandido. Não tenho dúvida de que esse argumento é muito frágil.
Alguns entrevistados da nossa série argumentam que, como a maioria dos adolescentes internados em instituições socioeducativas se envolveram com o tráfico, seria preciso discutir a criminalização das drogas. Como vê esse debate?
Nenhuma discussão sobre segurança pública e discussão de violência é séria se a gente não discute o papel das drogas ilícitas e do que se convencionou a chamar de tráfico de drogas. Todo mundo sabe que não existe grande tráfico sem participação direta da polícia, de setores políticos, do empresariado, do judiciário, então, verdadeiramente, quem promove esse tipo de tráfico está muito longe de ser alvo desse tipo de penalidade. Há toda uma construção discursiva de imaginário de relacionar o garoto pobre e negro da comunidade como promotor do tráfico, quando na verdade eles assumem o papel de trabalhadores precários na mão do tráfico. Aqueles que vão ganhar um pouco mais com uma oportunidade que a sociedade não oferece de outras maneiras.
Como enxerga o atual cenário político no contexto da votação da PEC?
O debate acalorado no Congresso tem a ver com a conjuntura, não só em torno da questão da redução, mas de todas as demandas da classe trabalhadora que as elites tradicionais querem retomar e retroceder com nossos direitos. Se a gente perder e a redução acontecer teremos que botar na rua uma campanha pela volta da redução da maioridade penal para 18 anos. Para que isso aconteça, a gente precisa ter base mobilizada. A população brasileira sendo provocada pelos militantes de esquerda para que estudem e conheçam não só a redução como a terceirização. Temos esse quadro de, ao mesmo tempo ter uma provocação política mais radicalizada, mas ao mesmo tempo ideias muito conservadoras, o que é um grande perigo.
A proposta que não avançou nesta terça-feira (30) no Congresso Nacional que diminuiria a idade penal apenas para crimes hediondos e ainda previa prisões especiais, separadas dos adultos, tinha alguma validade?
Tanto a redução da maioridade quanto o aumento do tempo de internação no final das contas têm o mesmo efeito na prática das ações da polícia, do judiciário e do sistema carcerário. A gente teria a vitória do pensamento do encarceramento. Um pensamento conservador que propõe punição e cadeia para resolver problemas sociais. A segurança pública decorre de problemas sociais e a gente trata disso com recrudescimento penal, o que é um grande erro. Nesse sentido, temos que nos opor tanto a uma quanto a outra. O aumento do tempo de internação tem um efeito muito parecido com a redução da maioridade.
O debate em torno da maioridade penal está ancorado numa suposta associação desse problema com o aumento da violência. Já foi bastante argumentado que diminuir a idade penal, no entanto, não vai mudar a situação. Assim, qual seria a melhor solução para este problema?
O que a gente oferece como solução é aquilo que já é uma ideia velha e que nunca foi implementada. O respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a instituição do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) que propõe a regularização do ECA e que não tem experiência no Brasil ainda. Ela é reconhecida como uma das melhores elaborações de política pública para a juventude no mundo inteiro e não a colocamos em funcionamento no Brasil. Muito porque os governos não a priorizaram.
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