Quando Nova York era o centro do mundo

Douglas Crimp é um dos principais teóricos da arte contemporânea. Seu livro Sobre as Ruínas do Museu, publicado em 1993 nos Estados Unidos, e no Brasil apenas 12 anos depois (lançado pela Martins Editora, hoje está esgotado), é um dos textos essenciais na compreensão da passagem dos procedimentos modernos para os contemporâneos na arte.

“Eu não estaria aqui se não fosse ele”, disse Mônica Nador, ao apresentar Crimp ao pequeno grupo que, em maio passado, acompanhou o depoimento do acadêmico no Jardim Miriam Arte Clube, o JAMAC, espaço de artivismo fundado pela artista há mais de uma década na periferia da cidade.

“Você deveria se valorizar mais”, brincou o bem-humorado Crimp, nesse último evento de sua passagem por São Paulo, que contou ainda com três palestras, duas na capital, no Ateliê 397 e no Consulado Americano, e outra no Instituto de Artes da Unicamp, em Campinas. Após São Paulo, ele visitou Inhotim e Ouro Preto, onde se declarou totalmente surpreendido pelo barroco mineiro.

Nas palestras em São Paulo, Crimp leu trechos de seu novo livro Before Pictures, que será lançado por uma jovem casa editorial norte-americana, a Dancing Foxes Press, no próximo ano. Com caráter autobiográfico, Before Pictures aborda os dez anos que Crimp viveu em Nova York, antes de sua antológica exposição, Pictures, no Artists Space, em 1977.

Escritor norte-americano Douglas Crimp/Foto: Divulgação
Escritor norte-americano Douglas Crimp/Foto: Divulgação

Nascido em Idaho, ele estudou história da arte em Nova Orleans, chegando a Nova York em 1967, um dos momentos mais efervescentes da cidade: da contracultura nos protestos contra a guerra no Vietnã, do fortalecimento da cultura gay, das experimentações de artistas na Judson Memorial Church e do universo irreverente de Andy Warhol, em seu badalado estúdio The Factory. Crimp circulou vivamente por toda essa cena e o livro é um testemunho que mescla esses dois mundos em ebulição: o da arte e o gay.

Foi nesse momento que despontaram artistas como Richard Serra, Joan Jonas, que atualmente representa os Estados Unidos na Bienal de Veneza, e, desde então, é amiga de Crimp. Ou Peter Hujar, fotógrafo que registrou a cena alternativa de Nova York, e morreu em decorrência da AIDS, em 1987.

O escritor norte-americano Douglas Crimp em registros do anos 1970/Foto: Acervo pessoal
O escritor norte-americano Douglas Crimp em registros do anos 1970/Foto: Acervo pessoal

Com exclusividade, Crimp cedeu alguns trechos de dois capítulos do novo livro à ARTE!Brasileiros, nos quais relata, entre outras aventuras, suas noites no bar Max’s Kansas City, onde circulavam de Richard Serra a Joe Dallesandro, o superstar de Warhol. Leia a seguir:

Trecho da introdução do livro Before Pictures, de Douglas Crimp, intitulado Front Room, Back Room

Em 1969, mudei-me do Spanish Harlem para o bairro do Chelsea, Downtown Manhattan. Comecei a ir quase todas as noites ao Max’s Kansas City, bar e restaurante da cena artística que ficava na Park Avenue South próximo a Union Square e para onde a Factory de Warhol havia então mudado. O Max’s tinha dois salões − um estreito na entrada, ao longo do qual ficava o balcão do bar, e um quadrado na parte dos fundos, onde predominava uma escultura de Dan Flavin pendurada no canto sobre um balcão, e que enchia o salão de um vermelho florescente. O salão dos fundos, para onde eu me dirigia todas as vezes, era o refúgio da turma da Factory em seus últimos dias (Warhol não chegou a frequentá-lo tanto depois que foi baleado por Valerie Solanas, em 1968). Ali eu conheci as travestis do Teatro do Ridículo e da filmografia do Paul Morrissey − Jackie Curtis, Candy Darling e Holly Woodlawn − e algumas das estrelas dos primeiros filmes de Warhol, principalmente Ondine e Taylor Mead. Para chegar ao salão dos fundos, eu tinha de atravessar a área da frente, onde, ao entrar, eu via e rapidamente cumprimentava alguns dos artistas conhecidos meus que frequentavam o local − Dorothea Rockburne, Richard Serra e Lawrence Weiner. Era sempre um pouco desconfortável para mim não parar e ficar mais tempo ali com eles, mas os buchichos da cena queer na parte dos fundos era o que me levava a frequentar o Max’s. Eu tinha minhas paixonites platônicas por algumas daquelas estrelas que davam as caras de vez em quando, como Eric Emerson e Joe Dallesandro.

Aqueles ambientes na parte da frente e nos fundos do Max’s refletiam dualidades que eram bem evidentes no mundo da arte daqueles dias e que iam desde as diferenças entre a arte minimalista conceitual e inflexível e a cena “glam” da arte-performance até as distinções entre os homens de verdade e os chamados “swishes” − para usar um termo de Warhol. Claro que hoje em dia sabemos que essas diferenças não eram de modo algum intransponíveis, mas naquela época, a maioria dos artistas estava preocupada em fazer o carão até mesmo no Max’s, onde supostamente tudo era válido. Minha própria vida e postura estética refletiam a ambivalência e os medos que ainda existiam na época em relação à homossexualidade, ou se a arte seria uma profissão suficientemente masculina ou quais formas de arte eram consideradas mais viris que outras. As mulheres eram sempre relegadas a um segundo plano, muito embora algumas fossem veneradas em seus respectivos ambientes (Agnes Martin e Eva Hesse no primeiro, por exemplo, Viva e Patti Smith no segundo). Quando penso naqueles dias, percebo que uma das formas de lidar com o dilema sobre até que ponto eu deveria me assumir como gay no mundo da arte foi dedicando boa parte do meu trabalho a mulheres artista − Linda Benglis, Hanne Darboven, Eva Hesse, Joan Jonas, Agnes Martin, Dorothea Rockburne, Pat Steir, Hannah Wilke.

A dualidade representada pelos dois ambientes da frente e dos fundos do Max’s, ou seja, entre o mundo artístico e a cena queer, foi algo com o qual eu aprendi a conviver ao longo dos primeiros dez anos em que vivi em Nova York. “Before Pictures” conta a história desse período.

Andy Warhol em retrato de 1986, feito por Robert Mapplethorpe
Andy Warhol em retrato de 1986, feito por Robert Mapplethorpe

Trecho do capítulo 5 de Before Pictures, intitulado Action Around the Edges

 Muito se ouve falar sobre a originalidade com que artistas de nossa era transformaram espaços industriais abandonados de Manhattan dando a eles outros usos. A desindustrialização da cidade de Nova York no período pós-guerra chegou a seu ponto mais crítico no início da década de 70. Porém, alguns de nós, de maneira não intencional e temporária, saímos ganhando com a crise enquanto outros perdiam seus lares e seus empregos ao mesmo tempo em que os auxílios sociais eram drasticamente cortados. Alguns daqueles espaços industriais revitalizados ficaram conhecidos, como o 112 Greene Street – local de exposições alternativas, fundado por Jeffrey Lew – e o The Kitchen – fundado por Woody e Steina Vasulka como lugar para performances artísticas. Ambos foram os primeiros exemplos do que aconteceria cerca de um ano depois, quando muitos estabelecimentos comerciais sairiam dos subúrbios de Uptown para o SoHo. Mas muito pouco ficou registrado sobre o fato de que artistas que viviam em lofts grandes e relativamente acessíveis abriam seus espaços para que pessoas convidadas pudessem fazer performances e apresentações musicais. Lembro, por exemplo, de ouvir Music in Twelve Parts, de Philip Glass, em uma reunião informal de artistas de loft em um domingo à tarde no SoHo. 

Muito se ouve falar também – embora raramente neste contexto – sobre a importância dos lofts para o surgimento de uma cena musical e performática nunca vista antes. Em 1970, David Mancuso começou a dar festas para bancar aluguel de seu loft no SoHo, o que para uma geração representou o auge da era disco e o início de uma cena club que persiste até hoje. Em torno de  uma série desses clubes girava a vida noturna de Nova York naquela década. Em 1974, na mesma rua onde funcionava o Loft na esquina da Broadway com a Houston, Michael Fesco abriu a disco gay conhecida como Flamingo que funciona de forma privada no quinto andar de um prédio que se estendia até a rua Mercer. Um ano depois, a 12 West foi inaugurada em um antigo viveiro de plantas que ficava na esquina da rua 12 com a West no extremo noroeste do Greenwich Village. Mais para o final da década, aquela que é considerada por alguns como a maior disco de todos os tempos foi inaugurada em uma garagem de caminhões na rua King a oeste da Sétima Avenida. O lugar recebeu o nome de Paradise Garage – mais apropriado, impossível. 

Mas antes de surgirem as discos gays, homens e mulheres abertamente homossexuais da era pós-Stonewall saiam para dançar em outro lugar, em um quartel do corpo de bombeiros na rua Wooster, SoHo, que foi desativado e arrendado, na primavera de 1971, pela Aliança de Ativistas Gays de Nova York. Nos sábados à noite, a antiga garagem do caminhão de bombeiros transformava-se em uma pista de dança e no segundo andar, onde antes oficiais do corpo de bombeiros jogavam tempo fora, dançarinos aproveitavam para descansar, beber uma cerveja e fazer suas investidas. Em 1974, a Firehouse foi totalmente destruída por um incêndio provavelmente causado por garotos do bairro indignados com a invasão de bichas e sapatões em seu território todos os sábados à noite. Um dos riscos de frequentar as festas da Firehouse era a possibilidade de cruzar com as gangues de garotos Ítalo-Americanos e seus tacos de basebol. Quase todos sabem que o SoHo foi uma região industrial antes de virar um bairro comercial. Mas o que hoje é conhecido como SoHo era na verdade uma zona mista. A parte sul da Zona Industrial de Houston misturava-se com um bairro residencial Italiano conhecido como South Village. Uma feira de rua Italiana, a Feast of Saint Anthony, ainda acontece todos os anos em frente à igreja de Santo Antônio de Pádua na Sullivan passando a Houston. Por volta da época em que comecei a frequentar as festas da Firehouse passei um verão inteiro tomando conta e morando em um loft de um amigo, Pat Steir, na rua Mulberry no bairro de Little Italy do outro lado do SoHo. Lembro-me de sentir-me claramente como um estranho no ninho e de morrer de medo que os caras durões do bairro percebessem que eu era gay.  Eu adorava comprar prosciutto e mozzarella fresca nos mercados do bairro, mas os porta-retratos com fotografias de Mussolini que eu via em várias vitrines certamente me fizeram rever o hábito.
Paradoxalmente – ou talvez nem tanto – um designer de interiores que conheci nas festas da Firehouse, que acabou virando uma transa esporádica e um amigo para a vida inteira, era um daqueles Italianos típicos da classe operária de Nova York. Ele havia crescido em um daqueles projetos residenciais do Lower East Side, mas quando nos conhecemos em 1971 ele morava a uma quadra na direção norte – lado leste da Santo Antônio de Pádua e depois, por muitos anos, na direção sul – lado oeste, em um apartamento no sótão alugado na casa de uns amigos da família dele que haviam comprado uma casa no velho bairro Italiano.     

 Gordon Matta-Clark é a figura mais comumente associada ao espírito da Downtown Manhattan como comunidade utópica de artistas e de experimentação em arte na década de 70, uma fama que sem dúvida tem origem, em parte, no fato de que ele morreu tão jovem. Sua juventude é tudo o que conhecemos sobre ele, sua carreira juvenil coincidiu com um momento de efervescência artística particularmente intensa. Certamente, porém, essa associação também tem a ver com o fato de que o sujeito e o lugar da arte feita por Matta-Clark eram a própria cidade, a cidade vivida como abandonada e utilizável, dilapidada e bela, perda e possibilidade ao mesmo tempo. Matta-Clark escreveu,

 O trabalho com estruturas abandonadas teve início com minha preocupação com a vida útil da cidade cujo um dos efeitos colaterais mais fortes é a metabolização de edifícios antigos. Aqui, como em muitos centros urbanos, a abundância de estruturas vazias abandonadas era um sinal bastante palpável da falácia contínua que é a renovação pela modernização. A onipresença do vazio das habitações abandonadas e das demolições iminentes deu-me a liberdade de experimentar com as múltiplas formas alternativas da vida enquadrada dentro de uma caixa e com as posturas populares adotadas em relação à necessidade de nos fecharmos…

            Os primeiros trabalhos também foram uma investigação de uma cidade que para mim ainda estava se desenvolvendo. Foi uma exploração de partes menos lembradas de Nova York que ficam no espaço entre os muros de pontos de vista que enxergam de dentro para fora. Eu saia dirigindo minha caminhonete pela cidade em busca do vazio, de um local abandonado e tranquilo no qual concentrar toda a minha atenção.

           A busca pelo vazio em um tecido urbano tão denso quanto Manhattan pode parecer algo sem sentido, e, de fato, fazer isso hoje em dia seria quase totalmente inútil. Mas Nova York era uma cidade muito diferente quatro décadas atrás. Como prova disso, gosto de citar uma série de fotografias feitas por Peter Hujar no ano 1976 e que foram tiradas no extremo lado oeste de Manhattan, indo em direção sul desde o Meat Packing District até o aterro do Battery Park City e depois por volta do Distrito Financeiro e Centro Cívico. As fotografias dividem-se em dois tipos, sendo que um deles mostra áreas industriais desoladas em decadência e o outro o centro de Manhattan completamente deserto à noite. Neste último grupo, há uma foto tirada da rua Nassau onde na meia distância se pode ver o edifício onde fui morar no mesmo ano em que Hugar tirou aquelas fotografias. Na forma como eu as vejo, todas são fotografias de passeio onde não aparecem pessoas – isso também parece ser algo sem sentido. Mas o objetivo do passeio, ou pelo menos um dos objetivos, é sentir-se anônimo e sozinho na cidade, sentir que a cidade pertence a você somente e quem sabe a alguma outra pessoa que surge do acaso, parecida como você – ao menos no interesse de explorar a cidade vazia. Será que por acaso haveria outra pessoa também vagando por estas ruas desertas? Esse alguém poderia estar à espreita? Será que nós dois encontraríamos uma esquina escura onde ficaríamos um tempo juntos? Será que a cidade pode ser somente nossa, só por esse momento? 

            Claro, nem todos vivem os espaços urbanos vazios da mesma forma. Um ano após Hujar ter tirado aquelas fotos, Cindy Sherman começou a trabalhar em sua famosa série Untitled Film Stills também nas ruas desertas de Lower Manhattan. As fotos dela são diferentes não somente porque em sua maioria foram feitas à luz do dia (Lower Manhattan também era deserta durante o dia nos finais de semana). São diferentes porque em todas elas aparece uma personagem feminina solitária personificada pela própria Sherman e porque as imagens são compostas de forma a sugerir que algo aconteceu na história daquela personagem. As poucas fotos que foram tiradas nas ruas durante a noite são imagens em tom noir de uma feminilidade ameaçada, e mostram uma mulher apreensiva vagando sozinha por uma rua deserta e escura. Mas essa mulher não é Cindy Sherman e tampouco a cidade é Nova York; a cidade que aparece nessas fotos é uma cidade genérica, como a locação de um filme. O que se vê é uma mulher em uma cidade qualquer – e essa cidade não é onde ela deveria estar naquele momento (e claro, a ideia de que uma mulher não deveria andar sozinha à noite na rua também é desconstruída pelo uso que Sherman faz dessas ruas como lugar para sua fotografia.)

 


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