Alemanha 7 x 1 Brasil: Réquiem para as chuteiras imortais

Jogadores da Seleção Brasileira após derrota para a Alemanha - Foto: Rafael Ribeiro/ CBF
Jogadores da Seleção Brasileira após derrota para a Alemanha – Foto: Rafael Ribeiro/ CBF

Nessa longa noite que começou no dia 8 de julho de 2014, descobrimos que no mundo do futebol nos tornarmos relíquias. De portadores de uma escola original, admirada e vitoriosa, passamos a atores subalternos, meros exportadores de crianças e adolescentes talentosos, sem novidades a dizer nem para nós mesmo, muito menos para o mundo. Sem um campeonato de qualidade, sem craques jogando aqui, sem estratégia ou tática dentro de campo. E sem superar o complexo de vira latas que não é dos jogadores nem da torcida – mas veste terno, nunca esteve à altura do nosso futebol, e não frequenta só a CBF.

E para entender o que aconteceu naquela noite de julho é preciso voltar à última Copa, quando se ouvia falar que “ninguém mais é ingênuo”, com a constatação de que todos jogam bem, atacam bem, defendem bem, são velozes, resistentes, precisos e potentes. Dos pés da Costa Rica aos da Austrália, a bola rolava com arte nos gramados brasileiros. Uma Copa mais do que nunca globalizada, e um retrato da diáspora em curso no planeta: africanos, árabes e sul-americanos se espalharam por 12 arenas defendendo todas as camisas, trazendo ilusões de algo novo num velho mundo de preconceito e exploração.

Uma Copa em que também descobrimos o quanto todos são letais entre corridas e colisões fantásticas: mordidas, traumatismos cranianos, vértebras quebradas, faces cortadas, traduzindo uma letalidade que não fazia parte do cotidiano do futebol, mas que de forma surpreendente é metabolizada dentro de uma nova normalidade, onde “estádios” tornam-se “arenas”, e todos os segundos são de vida ou de morte – trocamos a polis grega pelo imperium romano com tudo o que essa troca pode significar, para consumo de centenas de milhões de pessoas que, conectadas através de tecnologias de som e imagem, vibram em alemão, português ou chinês, independentemente de vínculos culturais entre torcidas, equipes e jogadores que protagonizam a cena.

A compreensão desse novo formato passa pelas combinações entre torcedores, campo, bola, jogadores e regras, elementos que só se explicam no contexto do futebol, já que a bola de que se fala não é uma esfera qualquer, mas aquela moldada por 22 pés correndo por mais de 100 anos em gramados que se estendem por cinco continentes. Ou seja, tanto bola quanto jogadores não são explicáveis sem o todo que compõe o futebol, assim como aquele dia só é explicável num contexto marcado por uma teia de imagens, interesses e negócios globalizados.

Por isso, propomos voltar um pouco mais, até a excursão do Flamengo à Suécia em 1952 (através do acervo fotográfico do Instituto Moreira Salles), onde um brilhante José Medeiros fixou a simples cena de um grupo de homens entrando em campo, e nos fez ver corpos magros, pernas tortas, ombros desalinhados. A imagem em branco e preto radiografa corpos que reproduziam uma estética presente em estações rodoviárias, operando máquinas ou servindo refeições. Não tem gorduras nem ócios, não tem os resíduos do nosso conforto nem músculos comprados nos mercados da ciência. Esses corpos entram em campo juntos, conversando entre eles, ao que tudo indica havia clima para isso. Antes de mais nada vemos um grupo unido, não entra em fila, nem em círculo, apenas estão juntos, e o que mais chama a atenção diz respeito à vinculação do sentido da cena ao coletivo, e desse coletivo a um clima de habitualidade e autonomia, de trabalhadores a caminho do ofício.

Depois, viajar até 24 de junho de 1958, noite de São João em que Brasil e França jogaram a semifinal da Copa de 1958 na Suécia. Naquele dia, as duas melhores equipes do torneio se enfrentaram com vantagem para a brasileira. A bola, tratada com arte pelo que havia de melhor no futebol, era mais pesada, exigia força e era mais lenta. Os jogadores em velocidade cuidavam para não deixá-la para trás. Chutar ao gol de fora da área era privilégio de poucos. Essa mítica Copa de 1958, que detinha a maior média de gols da história e a imbatível marca de 13 gols do artilheiro francês Fontaine, provavelmente teve seu ápice nesse jogo que pode ter definido alguns padrões para a evolução do futebol nos anos seguintes. Um deles, o de jogador ideal como atleta completo, polivalente e imprevisível simbolizado por Pelé, que saiu da Suécia consagrado como Rei pelos próprios franceses. E outro – o do futebol arte que Brasil e França encenaram – e que correu mundo em imagens de qualidade até então inédita. Esses modelos puderam se consolidar ao longo dos anos 60 e 70 graças a massificação dos meios de transmissão e reprodução de imagens, em especial a televisão e as tecnologias em vídeo.

Esses modelos ideais, mediados pelos veículos de comunicação levando som e imagem para dentro das casas de milhões de pessoas, e o grande mercado global, é que vão determinar as novas relações entre corpo e bola dentro do campo. Corpos e bolas são manipulados para potencializar as promessas contidas na articulação entre os modelos e seus mediadores. Na Copa de 2014 realizou-se uma das promessa contidas no programa “futebol arte”: todos os jogos foram inesquecíveis, se apresentaram como evento único e pronto para embriagar simultaneamente europeus, africanos asiáticos ou americanos. Aparentemente, a arte e a magia teriam vencido a força e a disciplina. Nesse sentido, estaríamos vivendo a consagração desse modelo. Isso pode ser em parte verdade, mas essa conclusão corre o risco de ser precipitada.

Num outro passo da experiência, avançamos 56 anos, e vemos novamente cenas da Copa de 2014. Nessas cenas os corpos não entram juntos, mas em fila concentrada, sintonizada num transe coletivo. Ainda que se repita ritualisticamente, não é cena habitual. Pelo menos, não é vivida assim nem por jogadores nem por torcedores. Há esforço e aparelhagens para torná-la única e insuperável. Se a primeira sugeria o tom de uma crônica, que se repete no cotidiano, essa nova cena reitera uma narrativa épica, de evento único, dramático e transcendente. Ao mesmo tempo, não vemos mais corpos de trabalhadores, ninguém nasce nem morre com eles, são corpos tecnicamente modificados. Em lugar das pernas tortas de um Garrincha, representam ideais estéticos e funcionais de um Cristiano Ronaldo. E se antes era possível relacionar característica física e especialização técnica de um zagueiro ou ponta direita, agora essas divisões tendem a se dissolver em armaduras de músculos capazes de múltiplas funções, conforme a demanda. No lugar de marcas inscritas no corpo por herança, classe ou ofício, vemos singularidades cuidadosamente produzida por tatuagens, cortes de cabelo, chuteiras coloridas, ajustes do calção e até a marcas de cueca, como suportes performáticos em vitrines eletrônicas. Esses corpos estão adaptados a correr três vezes mais que um jogador dos anos 70 – o que significa que o campo ficou bem menor. E são capazes de dominar e conduzir com força e velocidade uma bola muito mais leve, tão ágil que parece ter vida própria.

A foto de Medeiros lembrava trabalhadores indo para as fábricas, operários que ao longo do século passado, dentro de campo ou em arquibancadas, transformaram o futebol no maior esporte de massas do planeta. E nos remetem também à divisão do trabalho fabril, simétrica às funções de um goleiro, lateral, meia etc. Aos processos rotinizados e precisos que fizeram a glória de muitas tradições do futebol. Esse era um programa que o Brasil de 1958, e de toda a era Pelé, incorporava e ao mesmo tempo subvertia ao criar uma nova síntese entre disciplina e criatividade.

A escola brasileira combinava solidariedade e autonomia criativa dentro do campo, e transcendia a ambas. O modelo tinha matriz na liberdade e no protagonismo coletivo e individual para criar respostas não previstas. Naquele modelo, jogadores eram os atores, maestros e programadores de tudo que acontecia no gramado durante os 90 minutos das partidas. O técnico? Este trabalhava ou antes, ou depois do jogo, até 1970 não havia substituições. Hoje são três, e isso mudou radicalmente o equilíbrio de poder, deslocado de dentro para fora do campo.

A cena, retirada de julho de 2014, poderia ser a concretização daquele modelo ideal. Como nas fábricas modernas, hoje equipes e jogadores numa simbiose entre ciência, tecnologia, disciplina, velocidade e criatividade geram unidades performáticas e multifuncionais adaptadas aos comandos que lhes são enviados “a distância”. Mas falta ao programa atual o núcleo da promessa feita em 1958 e não concretizada: a autonomia, o controle de uma cena coletiva. Por mais brilhante, potente e criativa que seja a singularidade de cada jogador, a liberdade de uma equipe criar sua história é obra coletiva. Era esse o elemento transcendente e revolucionário, a famosa “irreverência” do futebol brasileiro que encantou o mundo, mais que a habilidade individual de qualquer “craque”, a cada dia tanto mais potentes, quanto mais abundantes.

Na última Copa nos saturamos de gols e emoções, e nesse sentido tivemos a realização de uma das promessas do “futebol arte” que a era Pelé sintetizou. Mas a equiparação virtuosa das competências individuais evidenciou limites, e a Copa deixou também um incômodo: quando o centro de controle falha, surge a dura realidade de pouco mais que garotos perdidos em corpos superpotentes e letais, à espera de um comando que pode ou não vir, conforme toda uma teia de interesses dos quais estão completamente alheios. Os fatores de controle não entram mais em campo, são negociados e manipulados de forma segura nos bastidores, segundo interesses dos grandes mediadores entre corpos e bola: um mercado organizado e articulado que inclui grupos de mídia, empresários de jogadores, empresas de produção de eventos, fabricantes de equipamentos esportivos, federações e confederações, através de seus prepostos locais e globais organizados corporativamente – os “velhinhos” citados por Mujica, agora como Al Capones, em apuros com o FBI. Essa é uma das virtualidades concretizadas do modelo atual: sequestrar e tornar privada, excludente, toda dimensão pública do fenômeno.

Fato é que as condições materiais que “inventaram” o jeito brasileiro de jogar futebol: o campo, a bola, as regras, os jogadores já não existem mais, nem o “espírito” que se criava na relação direta entre jogador e torcida. Apenas uma promessa não cumprida, que cala fundo na memória coletiva, feita por chuteiras imortais que habitaram corpos mestiços, negros e brancos que encantavam o mundo nos 90 minutos em que eram autores da sua história. Seu símbolo não é um gol de Pelé nem um drible de Garrincha, mas um moreno magro, um mestiço brasileiro que pega a bola no fundo da nossa rede tranquilo, elegante como um príncipe, e caminha rumo ao centro. Em torno da bola na mão esquerda de Didi, o time caminhava e decidia o que deveria ser feito para vencer a Suécia por 5 a 2, e inventar o que foi um dia o melhor futebol do mundo.

O campo ficou menor, a bola mais leve, as regras mais autoritárias, os jogadores mais potentes, os vampiros mais sedentos, porém o que precisamos não depende de nada disso, mas de voltar a produzir jogadores que saibam e queiram buscar a bola, colocá-la embaixo de seus próprios braços e conversar sobre como se ganham jogos – como a Alemanha mostrou que é possível, quando é realmente isso que se deseja. A bola já está lá, bem no fundo da nossa rede – mas quem vai buscar?

*Paulo Augusto André Balthazar é mestre em Ciências Sociais e Pesquisador do Núcleo de Ruralidades no CPDA/UFRRJ. Nascido em berço são-paulino, morrerá corinthiano. Atualmente, uma entre muitas almas atormentadas com as cabeçadas do futebol brasileiro.


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