Aula magna de sutilezas

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Uma imagem se crava
em nossa memória após vermos a harmoniosa sequência de oito vídeos distribuída ao longo das cinco salas do pavilhão dos Estados Unidos na Bienal de Veneza. A imagem indelével é esta: a artista, em pé na paisagem verdejante, vestindo uma espécie de toga romana drapeada, simula tocar harpa dedilhando as folhas longas e verticais de um arbusto. Talvez essa seja a imagem-síntese da profunda ligação de Joan Jonas com a natureza, o vento, as águas e os animais. Também, na mesma lírica medida de ressonâncias arcádicas, é índice da sintonia de sua obra com a música, a dança, a literatura e a mitologia.

No contexto áspero da curadoria-geral de Okwui Enwezor, dominada pela sombria denúncia das tragédias que assolam a humanidade, Joan Jonas adota o diapasão inverso – destaca a bela e frágil natureza que ainda resiste aos flagelos soltos no mundo pelo ser humano. Bem a propósito, no centro do percurso da mostra, instalou uma série de espelhos, para que a refração/reflexão acrescente novas camadas de significados às imagens já vistas ou por ver, fazendo refluir o protagonismo da natureza para o espectador.

Still de "They Come to Us Without a Word", de Joan Jonas, no Pavilhão dos EUA, 56ª Bienal de Veneza
Still de “They Come to Us Without a Word”, de Joan Jonas, no Pavilhão dos EUA, 56ª Bienal de Veneza

Jonas faz seu trabalho cantar uma delicada e polifônica ode ao planeta, reunindo cacos visuais do que de mais frágil e belo ele ainda possui. Em todos os vídeos há crianças. Muitas e alegres, ruidosas crianças. E abelhas, peixes, baleias, águas límpidas, florestas e mais florestas. Um cavalo e seu tratador nadam um balé sinuoso junto às ondas da praia. Uma foca com a cabeça fora d’água nos vê com doçura e fecha os grandes olhos pretos para o mergulho. Um convite? Há muitas camadas de imagens e significados, em sutil trama de referências e sobreposições de tempos. 

A artista nova-iorquina, aos 79 anos de idade, revisita sua extensa produção de mais de quatro décadas de pioneira da videoarte e da performance (muito antes de Marina Abramovic  surgir, diga-se) e extrai desse acervo inúmeros fragmentos (alguns de filmes analógicos em preto e branco, dos anos 1960), que recombina com imagens de trabalhos a cores dos anos 1970 e 1980, e mesmo vídeos digitais mais recentes.

"The Shape, the Scent, the Feel of Things", de Joan Jonas, no Pavilhão dos EUA, 56ª Bienal de Veneza
“The Shape, the Scent, the Feel of Things”, de Joan Jonas, no Pavilhão dos EUA, 56ª Bienal de Veneza

Parte das imagens é inédita e resultou de workshop que a artista (e professora) fez com crianças. Elas agem como fios condutores entre os diversos vídeos e frisam as interrogações do futuro. É desse universo, em constante intercâmbio de tempos, meios, personagens e planos que surge They Come to us Without a Word (em tradução livre, eles vêm a nós sem dizer uma palavra), a aula magna de sutilezas perceptivas que a veterana artista norte-americana, nascida em 1936, criou para o pavilhão oficial dos EUA em Veneza.

O núcleo dessa obra é Reanimation, que Jonas estreou como performance, em 2010, no MIT (Massachusetts Institute of Technology, EUA, onde lecionou durante 15 anos), e apresentou na Documenta de Kassel, Alemanha, 2012. Baseada em lendas nórdicas sobre a fragilidade da natureza, a proposta foi acrescida de reflexões sobre a transformação ambiental causada pelo aquecimento global. Ex-aluna da coreógrafa Trisha Brown, Jonas faz intervenções harmoniosas ao longo de todos os vídeos.   

"Mirror Piece", de Joan Jonas, Pavilhão dos EUA, 56ª Bienal de Veneza
“Mirror Piece”, de Joan Jonas, Pavilhão dos EUA, 56ª Bienal de Veneza

Joan Jonas é amplamente festejada na Europa. Além de muitas individuais em instituições de prestígio, participou de seis edições da Documenta. Autora de livros de referência sobre história e teoria da performance e da videoarte, ela nunca teve boas relações com o mercado. Sua geração não deu valor a essa inserção, por sinal. Assim como outra notável artista que ocupou o pavilhão dos EUA (1993), a então octogenária Louise Bourgeois, a veterana Jonas emerge inteira e forte nos ombros de sua obra. Ambas feitas à margem do mercado pesado, aquele que influi no frágil equilíbrio ambiental da arte.


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