O cavaliere das carrocerias

Em maio de 2009, em cerimônia solene no Consulado Italiano de São Paulo, o senhor Ottorino Bianco foi condecorado pela Cavaliere dell’ Ordine della Stella della Solidarietà Italiana. Tornou-se assim um cavaliere. Uma honra e tanto. Muito merecida, por sinal. O senhor Ottorino é um dos maiores carroziere do Brasil – leia-se desenhista e construtor de veículos. Sobretudo, os de competição.

Mas ninguém do meio automobilístico o chama de Ottorino. A turma o trata mesmo por Toni Bianco, o criador do Bino Mark II, do Fúria, do Bianco, do Dardo e da primeira van brasileira, a Futura, entre outros carros. Um autodidata. Um homem de criatividade invejável.
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Ottorino, aliás, Toni nasceu há 79 anos na cidadezinha italiana de Concordia Sagittaria, província de Veneza, no Vêneto. Veio para o Brasil em 1951, garotão de 21 anos. “Era o pós-guerra, a Itália estava se reconstruindo e a dificuldade de arrumar emprego era tremenda”, lembra. Quem o convidou para imigrar foi um primo radicado em São Paulo, o padre Cezar Bianco.

Os primeiros dois anos podem ser chamados nômades. Toni trabalhou em uma oficina mecânica em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, aventurou-se a construir casas de madeira no Paraná, e terminou “acolhido por missionários da Igreja, em São Caetano”. Dali, partiu para outra oficina mecânica, na Rua Manoel Dutra, no bairro da Bela Vista em São Paulo. A sua sorte: não era uma oficina qualquer. Os donos, Oliviero e Mario Monarca, produziam carrocerias por encomenda, cada uma com desenho próprio. Um artesanato. As estruturas de carroceria eram moldadas em arame; as carenagens, feitas de chapas batidas, uma a uma. “Descobri minha vocação”, rende-se Toni.

Logo estava restaurando um Porsche para o piloto Celso Lara Barberis, famoso na época, e partindo para ousadias maiores. A pedido de Ciro Cayres, outro ás daqueles tempos, cortou o chassi de uma Ferrari ao meio. “Com um pedaço, fizemos um monoposto e instalamos um pesado motor de um Cadillac, enquadrando o carro na categoria mecânica continental”, conta. A parceria com Cayres seria mantida, mesmo já trabalhando em outra oficina, a Losacco. Toni criou um chassi, instalou o motor de um Corvette e mandou Ciro acelerar à vontade. Era 1958, e o piloto bateu o recorde de Interlagos para a categoria: 3’37”, com média acima de 130 km/h. “Um espanto para aqueles tempos”, diverte-se. Espanto mesmo. O recorde durou quase uma década.

A investida seguinte foram os carros da Fórmula Júnior, então uma categoria de sucesso na Europa. Na Escuderia Tubularte, Toni e os proprietários – entre eles, o lendário Chico Landi – partiram praticamente do nada. Foi assim com um monotipo da categoria Mecânica Nacional. “Fizemos o chassi e a carenagem à mão”, conta. “Outro patrício, o Giuseppe Perego, instalou um motor Porsche 1,5 litro. Com esse carro, corremos a primeira prova de Brasília, em 1960.”

O Fórmula Júnior com motores até 1 litro inspirou outros veículos da categoria, já então equipados com motores fabricados no Brasil, pela Willys e pela VEMAG. A grande ousadia ocorreu em 1962. Naquele ano, Chico Landi decidiu instalar um motor mais potente, um Alfa Romeo de 2 litros, no pequeno Fórmula. “Fizemos tudo em 20 dias, numa correria”, recorda. “Foi preciso mudar toda a frente do carro, para captar a refrigeração.”

Convidado por Luiz Antônio Greco, Toni bandeou-se para a vigorosa Equipe Willys, oficial da fábrica. Começou alterando o Renault Alpine. Até então, os motores desses veículos padeciam de superaquecimento, quando expostos a corridas longas em clima tropical. “Instalei os radiadores na dianteira”, lembra. Depois, usou a experiência do Fórmula Júnior para criar o primeiro Fórmula 3 brasileiro. Ao volante do bólido, Wilsinho Fittipaldi fez bonito no circuito de rua de Rosário, na Argentina, andando pau a pau com os sofisticados modelos europeus. Mas, àquela altura, as categorias de monotipos não estavam vingando no Brasil. Chegava a vez dos carros esportes de dois lugares.

Toni criou uma preciosidade: o Bino Mark II. Um carro vencedor. O nome era uma homenagem a Christian “Bino” Heins, promessa do automobilismo nacional (jovem piloto que morreu nas 24 Horas de Le Mans, em 1963). Vitorio Massari, da Camionauto, gostou tanto da invenção que, em 1969, convidou Toni para desenvolver outro projeto.

Nascia assim aquele que muitos consideram a obra-prima do projetista, o protótipo esporte Fúria. O carro tinha chassi tubular, suspensão independente, câmbio Hewland (fabricado na Inglaterra), freios Girling (da Varga) e um motor do Alfa Romeu JK 2.150 cc. “Fiz tudo em 17 dias e 17 noites. Tomando remédio para não dormir”, confessa, rindo da “loucura”.

Pilotado por Jayme Silva (e, nas corridas longas, em dupla com Ugo Galina), cruzou a linha em primeiro lugar em diversas provas. Para Bianco, o grande troféu foi o Prêmio Victor de 1970, entregue pela revista Quatro Rodas, como “o melhor construtor do ano”. Na época, comemorou no Box, restaurante que montara na Rua Padre João Manoel, em sociedade com Ugo Galina e Vitorio Massari.

O Fúria fez tamanho sucesso que vários pilotos encomendaram o seu – com motorização diferente -, entre eles Camilo Christófaro e Pedro Victor De Lamare. Foi o bastante para que Toni resolvesse dar nova direção à carreira: desenvolver automóveis esportivos de passeio, carros que não se restringissem às pistas. A primeira iniciativa, um Gran Turismo GT, esbarrou em um contratempo: a Fábrica Nacional de Motores, envolvida na empreitada, foi vendida à Alfa Romeo.

Coisas da vida. Toni não perdeu o ânimo. Por conta própria, instalou-se em um galpão próximo ao Aeroporto de Congonhas. O ganha-pão vinha das peças que produzia por encomenda, enquanto trabalhava no projeto de adaptar o Fúria à mecânica Volkswagen. Lançado no Salão do Automóvel de 1976, o Bianco GT teve 176 unidades vendidas já no balcão da grande feira paulistana. Quem ainda tem um modelo trata por joia, por peça de colecionador. Sem dúvida, é um dos mais belos esportivos brasileiros.

Ainda na segunda metade dos anos 1970, a convite de Bruno Caloi, Toni criou o Dardo, um veículo de dois lugares, com motor central Fiat 1.3, inspirado no modelo italiano X1/9, que os dois haviam visto na Feira de Turim. “Era uma tentativa de ir além dos automóveis artesanais da época, quase todos com mecânica Volkswagen”, explica. Logo depois, da prancheta do carrozieri, sairia a primeira van brasileira, a Futura.

Casado há 45 anos com Antonieta di Sora Bianco, pai de duas filhas que lhe deram quatro netos, Toni tem passado os últimos anos curtindo a família e recriando automóveis clássicos – o que, no seu caso, tanto é trabalho quanto diversão.

A novidade começou quando Paulo Trevisan, do Museu do Automobilismo Brasileiro, perguntou se ele construiria um Fórmula Júnior igualzinho aos dos anos 1960, com motor DKW e tudo. “É pra já”, disse o calejado carroziere, esfregando as mãos. A réplica, perfeita, foi desenvolvida na garagem da casa de Toni, no bairro das Perdizes.

Entusiasmado, Trevisan fez outra encomenda. Desta vez, bem mais ambiciosa: reproduzir o histórico Carcará, o protótipo que Anisio Campos e Rino Malzoni trouxeram à luz em 1966; aquele mesmo que, guiado por Norman Casari, estabeleceu o recorde brasileiro, ainda hoje em vigência, de velocidade em linha reta para motores 1 litro com a marca: 212,9 km/h.

Toni foi à luta, armou-se de ânimo e alumínio e fez um Carcará idêntico ao primeiro. Uma beleza. Hoje, tanto o Fórmula Júnior quanto o Carcará são exibidos Brasil adentro. Não só, correm uma barbaridade.

Toni transformou em carro outra encomenda feita por Paulo Trevisan – um Cisitalia que faz sucesso no museu do automobilismo, em Passo Fundo (RS).

Os pedidos não param: atualmente, foi convidado por um colecionador para fazer outra réplica da Maserati.

Claro que o cavaliere vai resolver o assunto e deixar todo mundo pasmo com o resultado.


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