Miguel de Cervantes Saavedra

Coluna_header_ topo Auro Danny Lecher
Deu no El País de 17 de março passado, que os supostos restos mortais de Miguel de Cervantes teriam sido encontrados numa cripta do Convento de las Madres Trinitárias, no centro de Madri. Uma equipe de 30 cientistas legistas, liderada pelo Dr. Francisco Etxebarria realizou uma série de análises do material orgânico durante os subsequentes 25 dias, período necessário para que fosse confirmada a suspeita inicial.

Não foi possível a comprovação pelo exame de DNA, visto que após 4 séculos as informações genéticas vão se diluindo, e não sobraria resquícios identificáveis num descendente atual da família Saavedra; nem tampouco foi identificada a lesão no seu punho esquerdo, ferido por um tiro de arcabuz na Batalha de Lepanto, em 1571, entre espanhóis e turcos. O tecido ósseo dessa região anatômica esfacelou-se com o tempo.

Mesmo assim, considerando todas as outras evidências, o Dr Etxebarria assinou embaixo, e no dia 11 de abril de 2015, com as pompas e circunstâncias merecidas, o velho, soldado, fidalgo e pobre** Miguel de Cervantes Saavedra, nascido em 1547 em Alcalá de Henares e enterrado (a primeira vez) naquela cripta obscura do Convento em 1616, é novamente sepultado, espera-se agora, em seu monumento definitivo, na Igreja de San Ildefonso, Madri.

Muito bem até aqui com a ajuda da ciência e seus vereditos. Porém temos que continuar acreditando nas bruxas. Mas que elas não existem, elas não existem! A intersecção entre a mentira, a ficção e o delírio produz um campo de pesquisa complexo, fascinante e irresistível.

Quando restos mortais são exumados, manuseados e submetidos a procedimentos diversos, aqueles restos vitais que ficaram impregnados no âmago da matéria, hibernados, mesmo que ao longo de séculos, mobilizam-se ganhando, às vezes, configurações bizarras, como a que aconteceu com Cervantes, que durante 25 dias materializou-se na figura de um anjo. Os relatos das pessoas que tiveram acuidade sensitiva para vê-lo flanando por aí, nos 4 cantos da terra, são coincidentes: seu vôo é desajeitado, suas asas improvisadas com penas de ganso, trançadas com arame bem fininho e impermeabilizadas com uma camada de banha. Parecia ser de porco.

Miguel de Cervantes - Foto: Reprodução/elinformativo.org
Miguel de Cervantes – Foto: Reprodução/elinformativo.org

De tudo que ele presenciou nestes 25 dias de anjo, chamou-lhe a atenção 3 pontos que o inquietaram:

  • A prevalência de transeuntes nas ruas, cabisbaixos, apertando sem parar um espelhinho portátil do qual emana uma estranha luz. Ora ansiosos fazendo bico na boca e linguinha de fora, ora sorridentes como se tivessem sido afetados por alguma lembrança agradável.
  • Sobrevoando a Plaza de España, no centro de Madri, reconheceu, lisonjeado, uma estátua em sua homenagem num canto da praça. No outro canto, uma estátua em homenagem a Dom Quixote, muito maior e mais imponente do que a sua. Cervantes pensou um bocado na relação, às vezes tensa, entre criador e criatura.
  • O outro ponto que mereceu especial atenção de Cervantes, deixando-o atônito até a hora de seu segundo enterro, foi constatar a vitalidade do seu Dom Quixote, publicado integralmente em 1615 e ainda um best-seller. Lembrou-se da história que teria acontecido com Dante Alighieri, 3 séculos antes: passeando para espairecer no início do século 14, Dante flagrou um ferreiro iletrado declamando a sua Divina Comédia, com as batidas rítmicas do seu martelo que alinhava as ferraduras. Seus versos estavam na boca do povo. Sua poesia é para todos.

É possível que tenha dado tempo para Miguel de Cervantes perceber que seu legado foi forjar na alma da humanidade, com ferro em brasa, um ethos. Caminhando num fio da navalha entre o sublime e o ridículo, mostrou que cada um de nós escreve sua própria história. Nem anjo nem demônio. Nem herói nem anti-herói. Simplesmente humano.

*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote   aurolescher@gmail.com

**Segundo a definição do Professor José Manuel Lúcia Megías, Presidente da Associação de Cervantistas, sobre o autor de Dom Quixote.


Comentários

2 respostas para “Miguel de Cervantes Saavedra”

  1. Avatar de Adriana Komives
    Adriana Komives

    Dom Quixote é um velho amigo nosso, um cara cujos sonhos são tão possantes que viram realidade. É este também o legado de Cervantes: sonhar é o primeiro passo para a realização do sonho. Por isto temos que ter cuidado com o que sonhamos.

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