Reconhecido pelo seu profundo trabalho com meninos de rua e menores de idade em conflito com a lei, o padre Júlio Lancelotti se consagrou como uma das vozes mais ativas da igreja católica em relação aos diretos humanos e o combate à desigualdade social. Vigário episcopal da Pastoral Povo da Rua e membro da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo, Lancelotti, ou padre Júlio, como é conhecido, engajou-se em diversos movimentos populares e sua presença em manifestações e passeatas é quase uma tradição.
Formado em teologia e pedagogia, o sacerdote católico também é pároco na acanhada Igreja São Miguel Arcanjo, na zona Leste de São Paulo, entre os bairros da Mooca e do Belenzinho. Em uma conversa com Brasileiros, como parte de nossa série especial que visa debater a redução da maioridade penal, padre Júlio criticou a chamada bancada evangélica e sua pretensão de apoiar certas medidas, como a própria redução, para satisfazer interesses próprios: “É uma visão que não é a visão do evangelho, é de um pragmatismo muito grande e de um imediatismo muito forte. O papel da religião neste debate é de ter luz ética, e não envergonhar os princípios do País”.
Lancelotti também contradisse o argumento de que a violência iria diminuir caso seja aprovada a redução da maioridade, levando em conta seu trabalho direto com os menores infratores no Centro de Defesa dos Direitos Humanos Padre Ezequiel Ramin: “Nós temos mais de 50 mil dados de jovens atendidos lá e foi através destes números que chegamos nos 0,02 % de adolescentes que cometem crimes graves”. Para o padre, o fim da violência está diretamente atrelado a uma mudança estrutural na sociedade. ” O sistema em que nós vivemos é um sistema de descartáveis. Os descartados acabam reagindo e acabam reagindo atingindo o sistema que os descartou.” Leia a entrevista completa:
Como o senhor está vendo este debate em torno da redução da maioridade penal?
Temos que entender este debate pelo contexto. Estamos vivendo a questão da redução da maioridade penal em um momento onde há uma tentativa de desmanche de toda a Constituição de 1988. Uma das coisas que toda a abordagem midiática passou é que, reduzindo a maioridade penal, a violência seria diminuída na cidade e no geral. Os dados que nós temos de acompanhamento dos fóruns das varas especiais, onde chegam todos os adolescentes em conflito com a lei da cidade de São Paulo, indicam que os jovens que estão envolvidos em crimes graves, como homicídio, latrocínio e estupro, representam 0,02 %. Esta redução, que vai ter um efeito para todos, vai atingir, em termos de crimes mais graves, uma porcentagem ínfima, o que não vai ocasionar uma diminuição da violência no geral.
O senhor faz um exímio trabalho com os jovens de rua e com jovens carentes em geral. O que leva estes adolescentes a cometerem crimes e entrarem em conflito com a lei?
O Centro de Defesa dos Direitos Humanos Padre Ezequiel Ramin faz um trabalho em conjunto com a Defensoria Pública, nas chamadas oitivas informais, onde são apresentados todos os jovens que estão em conflito com a lei na cidade de São Paulo. Nós temos mais de 50 mil dados de jovens atendidos lá e foi através destes números que chegamos nos 0,02 % de adolescentes que cometem crimes graves. Em relação ao porquê destes jovens entrarem para a criminalidade, são variados fatores que influenciam nesta questão. Um destes fatores, por exemplo, é o deslumbre com o consumismo. Em termos de roubo, o índice maior é o de celulares, que é o objeto que todos exibem pela rua e o desejo de consumo de todos. Quem tem um iphone 5 quer o 6, quem tem o 6 quer o 7. Então existe um deslumbre muito grande em função do consumo.
Um fator que ainda é muito latente na sociedade brasileira é a desigualdade social, que atinge todas as camadas etárias. Esta desigualdade ainda é uma questão preponderante no que diz respeito aos crimes cometidos por menores?
É um dos fatores. Não podemos dizer que ele é decisivo, pois existem muitos jovens de classes sociais mais baixas que não são infratores. Além disso, também existem muitos jovens de classe média ou alta que estão em conflito com a lei. Então não podemos dizer simplesmente que a condição social é determinante, embora seja um elemento facilitador. Agora, existe um detalhe: o jovem de classe média ou alta dificilmente vai para a Fundação Casa ou é privado de liberdade. Os que são privados de liberdade são os pobres.
Na sua visão o que o jovem brasileiro mais sente falta?
Não só o jovem brasileiro, mas como os jovens de diversos países enfrentam situações difíceis. Eu acredito muito no que o Papa Francisco apontou na visita à América Latina. O sistema em que nós vivemos é um sistema de descartáveis. Os descartados acabam reagindo e acabam reagindo atingindo o sistema que os descartou.
Estamos vivendo um momento político em que pautas mais conservadoras, como a própria redução da maioridade, vêm ganhando força e sendo muito discutidas no Congresso. A que se deve essa situação?
Eu acredito que a busca pela segurança e a busca pela manutenção dos privilégios vêm gerando esta questão. Principalmente os que defendem os privilégios e que defendem que as coisas continuem como estão. Esse sistema tem que mudar, ele se esgotou. Continuar um sistema de descarte humano no nível em que estamos vai fazer com que as pessoas fiquem cada vez mais insatisfeitas e com seus anseios de frustração cada vez maiores. Um dos maiores geradores de violência é a frustração, a impossibilidade. No fundo eles querem que as pessoas fiquem frustradas e caladas.
O senhor deu uma entrevista no começo do ano e citou o conceito de “cegueira moral”, do filósofo Zygmunt Baumann. A redução da maioridade penal passa por uma questão ética e moral?
Sim, na medida em que não se quer enxergar a realidade. Hoje, o que temos muito claro é que nossa percepção é seletiva. Nós só percebemos o que nós queremos. E a nossa percepção muitas vezes é direcionada, então hoje a própria mídia faz com que os jovens em conflito com a lei sejam vistos como facínoras. E se trabalha um conceito extremamente inadequado, como dizendo ‘ele sabe o que faz, então ele tem que pagar’. Ora, nós conquistamos a idade da razão aos sete anos. A questão não é saber, a questão é poder ter respostas diferenciadas e ter cuidados. As pessoas, no mundo em que estamos vivendo e nesta sociedade de descarte, também vão se tornando insensíveis, muito individualistas, não tem uma visão comunitária, solidária. A cegueira moral nos leva impossibilidade da solidariedade.
Por trás de toda essa discussão em torno da redução da maioridade está a bancada evangélica, que figura como uma das principais vozes a favor do encarceramento de menores de 18 anos. Eles utilizam de princípios supostamente cristãos para defender essa ideia.
É uma questão fundamentalista. É uma visão que não é a visão do evangelho. de um pragmatismo muito grande e de um imediatismo muito forte. Isso é um grande perigo: usar a visão religiosa para punir os outros. Usar de convicções para descartar os outros, ou para condenar os outros. Nós vivemos em um estado laico, nós não deveríamos ter interferência de bancada nem católica, nem evangélica, nem ateia e nem muçulmana. Nenhuma bancada deveria interferir e determinar os caminhos de uma nação e de um povo. O papel da religião neste debate é de ter luz ética, e não envergonhar os princípios do País. É ter a possibilidade de construir junto com o povo respostas, e não de fazer lobbys que possuem interesses financeiros escusos.
A Fundação Casa e os locais onde os menores infratores são internados obviamente não são perfeitos, mas o sistema prisional é visivelmente mais violento. Isso pode ser notado na taxa de reincidência, que na Fundação é de 30%, enquanto nas cadeias chega a 70%. Na sua visão como o jovem iria se inserir neste ambiente?
Nós somos uma sociedade marcada pela punição, pela meritocracia e pela vingança. Isso é o que norteia nossa ação. Uns ficam domesticados, outros são aprisionados. Hoje, os jovens que estão na Fundação Casa conhecem a realidade carcerária, é uma realidade muito dura, muito violenta. É um ambiente de regras muito rígidas, de um extermínio muito grande. Infelizmente eles já estão condenados. Hoje, um jovem que nasce na Cidade Tiradentes tem uma determinação de vida muito diferente de quem nasce em Higienópolis. Mas mesmo assim a Fundação ainda é melhor. Eu acredito que existem uma série de fatores que contribuem para esta reincidência ser menor. Na Fundação Casa, o jovem pode encontrar algumas outras possibilidades.
A ampliação do tempo de internação do jovem no Estatuto da Criança e do Adolescente também vem sendo muito discutida. O ECA contempla bem os direitos do jovem?
Se nós respeitássemos o estatuto e o trabalhássemos da forma que ele é concebido veríamos que, pelo ECA, não existe qualquer tipo de impunidade. Existem medidas socioeducativas e existe a privação de liberdade. Acontece que o estatuto nem sempre é levado a sério. Eu chegaria a dizer que ele ainda não chegou em São Paulo. Está a caminho, mas não chegou. Para ele contemplar os direitos dos jovens, ele precisa inicialmente ser aplicado.
Como o senhor mesmo disse a pouco a realidade dos jovens da periferia de São Paulo é muito dispare da dos jovens que nascem em bairros abastados. Pensando dessa forma, e também colocando na mesa a abordagem policial nestes bairros, já existe uma redução da maioridade em curso nas periferias?
Eu diria que nas periferias, e com a juventude negra também, existe um genocídio em curso, e o que é aplicado é a pena de morte. Os jovens que são abordados por policiais nas periferias são pegos, julgados e executados. Eles são exterminados imediatamente.
A PEC 171, que trata da maioridade penal, foi aprovada em primeiro turno na Câmara depois de ser derrotada uma vez. Como o senhor enxergou a manobra do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, para votar de novo a proposta?
Existem muitos interesses escondidos atrás disso. Além da bancada evangélica existe a bancada da bala, a bancada ruralista. Existem muitos grupos políticos e muito interesse na questão da privatização dos presídios, na questão do investimento na área da segurança. A redução da maioridade penal é uma bandeira que está escondendo muita coisa.
Na sua opinião, padre, qual seria a melhor forma de se ressocializar um jovem?
A melhor forma seria a sociedade mudar. A forma como ela se arranja deveria mudar, e não descartar os excluídos, como o Papa Francisco apontou com muita força em sua visita à América Latina. É tempo de mudança, e nós não podemos fazer um monte de mudanças para tudo continuar do mesmo jeito. Temos que realizar as mudanças para que todos possam viver de uma forma digna.
O que o papa Francisco diria em um debate sobre a redução da maioridade penal?
O Francisco já deixou bastante claro que é contra a redução. Ele já fez declarações, em Roma mesmo, nas quais se mostrou contrário a esta questão. Além dele, todo o conjunto da doutrina social da Igreja Católica também pensa assim. É a posição firmada e documentada da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que já soltou uma nota oficial neste sentido.
O colunista da Folha de S. Paulo, Gregório Duvivier, escreveu uma coluna muito interessante relatando o que Jesus Cristo pensaria se viesse à Terra neste momento. Para o senhor, padre, o que Jesus pensaria da questão da redução?
Jesus, no seu contexto histórico, era do grupo mais penalizado. Era também de um grupo bastante descartável dentro de uma visão teocrática, onde o poder se exercia a partir de Deus. Jesus, com muita clareza, tomou o partido dos mais pobres, dos mais fracos, dos mais sofridos e dos excluídos. Ele esteve ao lado dos que estavam mais machucados e feridos. Dentro da visão do judaísmo ele se colocou junto aos excluídos pela própria religião. Por isso que ele foi considerado assim. Ofendiam Jesus dizendo que ele era endiabrado, que ele usava o poder do demônio, e que ele era um comilão e beberrão que só andava com gente que não prestava. Hoje ele continua indo de encontro a uma elite que quer se perpetuar no poder e que quer utilizar de todas as formas para manter seu poder, inclusive a corrupção.
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