Prestes a abrir a segunda hora da gravação, a voz que sai dos alto-falantes soa serena. Dialoga com a plateia e, de forma pausada, transmite confiança e sagacidade. Antes de cantar Eu Só Quero um Xodó, do amigo Dominguinhos, Gilberto Gil reitera o tom irônico, bem humorado, e até autodepreciativo, da maioria das opiniões que expressou até ali. “Um dia ainda vou me redimir por inteiro do pecado do intelectualismo. Se Deus quiser! Não vou ter mais necessidade de falar nada e de ficar pensando em termos dos contrários de tudo, para tentar explicar às pessoas que eu não sou perfeito, mas que o mundo também não é. Não estou querendo ser dono da verdade. Um pequenino grão de areia: é o que eu sou. Só que um grão de areia já conseguiu, sendo tão grande ou maior que eu, ser bem pequeninho e não precisar se mostrar mais.”
Profética, veremos, a frase dá a tônica de um longo registro de quase três horas, feito em um gravador de rolo, em um sábado longínquo. O encontro entre Gil, voz, violão e quase 2 mil pessoas ocorreu há 42 anos, às 17h do dia 26 de maio de 1973. O palco, o ginásio da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Intimado por um grupo de alunos, liderado por Laís Abramo, que havia sido vizinha de Gil, na Bahia, o compositor não debandou do que para muitos era compromisso cívico: fazer um show em repulsa às arbitrariedades da ditadura que, naquele momento agudo, vivia o auge do comando sanguinolento do general Emílio Garrastazu Médici. A convocação tinha motivo pontual e urgente. Com o show, os estudantes pretendiam fortalecer a frente que exigia esclarecimentos sobre a morte do estudante de Geologia Alexandre Vanucchi Leme, assassinado pelos militares havia pouco mais de dois meses, em 17 de março daquele ano. Movimentação que teve início, dias após, com a realização da missa de sétimo dia de Vanucchi. Conduzida por Dom Paulo Evaristo Arns, na Catedral da Sé, a cerimônia mobilizou 5 mil pessoas e, claro, foi fortemente reprimida pelos capangas do general Médici.
A disposição de Gil em prontamente atender o pedido da comunidade uspiana, em 1973, deve causar inveja e indignação ainda maior aos fãs patrulheiros que esperavam do velho ídolo baiano postura semelhante em relação ao show realizado por ele, na última terça-feira (28), ao lado de Caetano Veloso, em Tel Aviv, Israel, penúltimo destino da rota europeia da turnê Dois Amigos: Um Século de Música.
A recusa da dupla baiana aos apelos para que, em defesa da Palestina, boicotassem a apresentação, esteve onipresente nos tribunais virtuais mantidos 24h on-line nas redes sociais, e articulou personalidades como o ex-Pink Floyd Roger Waters e o bispo sul-africano Desmond Tutu. Tudo em vão. Insensatos, diriam alguns – como nosso colunista Salem Nasser, que escreveu dois artigos sobre a polêmica (leia abaixo) –, Caetano e Gil agiram de forma diferente enquanto estiveram emparedados pelos manifestantes pró-boicote.
Caetano se expressou mais e chegou a deixar registro epistolográfico do embate – que em breve deverá ser devidamente esquecido – ao responder a segunda carta enviada pelo baixista britânico. Gil preferiu calar. Omissão? Fadiga? Julgamentos, nesse instante, provavelmente vão repetir o fogo fátuo de discussões tão complexas como a tragédia que segue em curso na Palestina. A eficácia de ações como essa, com todo respeito ao mérito de quem nelas acredita, costuma servir mais a um anseio de posicionamento e empatia ideológica, que beira a obsessão, do que ao combate comprometido. Desde os tempos de ações como o Live-Aid e o USA For Africa, quantos artistas não se travestiram de messias por mero marketing político impregnado de retórica?
Parafraseando a declaração de Gil naquela sábado na USP, me redimo do pecado do intelectualismo opinativo e, ao fim da leitura, sugiro ao caro leitor a audição do show da Politécnica, disponível na internet há alguns anos, graças ao esforço de Paulo Tatit, que recuperou e remasterizou os arquivos registrados por um estudante de Engenharia Elétrica, chamado Guido, que disponibilizou seu gravador de rolo e, talvez sem suspeitar, possibilitou a existência de um documento histórico, acessível a muitos curiosos após ser publicado para download no blog Toque Musical, com a autorização de Gil e comentário de considerar o show o retrato de um momento político do País.
Nas duas horas e quarenta e oito minutos do show, Gil toca 28 canções. Temas de sua autoria e sambas clássicos de craques como Gordurinha e Germano Mathias. Há muita interlocução com a plateia e os mesmos embates de opinião extremada que hoje são caros ao reducionismo que volta a pairar sobre as costas de Gilberto Gil e Caetano Veloso, com a insolente realização do show em Tel Aviv. Intimado a tocar Cálice (veja a apresentação no festival Phono 73, censurada pelos militares), desconversa, diz que não memorizou os trechos escritos por Chico Buarque. Em instantes, um papel com a letra na íntegra é entregue a ele, que não frustra a plateia. Autocrítico, ao tocar Procissão, Gil considera que, seis anos anos depois de ter lançado a canção, a considera “velha”, “ingênua” e “incorreta”, a exemplo de outras composições de protesto, como Louvação e Roda. Ao argumentar a tese, ele atribui os erros à “irresponsabilidade, pela ansiedade de servir”. e adverte, por exemplo, que a frase “Mas se existe Jesus no firmamento / cá na Terra isso tem que se acabar”, de Procissão, é incorreta. E provoca: “A instituição que passou a ser porta-voz de Jesus foi a Igreja, uma instituição tão mundana e tão organizada como a General Motors. Seria mais correto dizer que Cristo foi traído”.
Gil, vale lembrar, é alvo regular de linchamentos virtuais, por motivos que não distinguem questões públicas, como a sua passagem no Ministério da Cultura, de assuntos de foro íntimo – o que dizer da cobertura denuncista e preconceituosa da grande imprensa e dos tabloides de amenidades para o casamento extravagante de sua filha Preta Gil?!
Na edição de julho da Brasileiros, um nobre conterrâneo de Caetano e Gil, o artista gráfico Rogério Duarte foi questionado sobre a polêmica (leia). Esquivo, como os velhos amigos, ele lacrou: “Não tenho opinião a respeito. Isso faz parte da carreira de Gil e Caetano, que devem ter seus motivos, que procuro respeitar, e não os julgo.”.
Da Politécnica da ditadura à Palestina massacrada por Israel, Gil percorreu longos caminhos, bem sabemos. A propósito, tina retornado do exílio em Londres havia poucos meses e, provavelmente, teve a capivara estendida em algumas laudas pelos militares com a afronta do show na Poli-USP. Aos 72 anos, mais de 53 dedicados à vida de artista, Gil não deve estar muito disposto a vestir a capa do super-homem – com o perdão do trocadilho – pela obrigação de redimir as dores de patrulhas articuladas em redes sociais dopantes, de olhos e bocas bem abertas. Talvez por isso, silencie. Contrastes de atitude necessários, em tempos de dicotomia. Da Politécnica à Palestina, Gil continua grão de areia: pouco se mostra. Um direito seu. Doa a quem doer.
LEIA MAIS:
– Gil, Caetano e Mr. Boycott
– Zelberto Zel, Caretano Zeloso e Sartre
– Leia entrevista com o músico, publicada pela Brasileiros em 2009
OUÇA A APRESENTAÇÃO NA POLI-USP
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