Polícia Militar do Rio mata dois por dia, diz Anistia Internacional

Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil

A Anistia Internacional divulgou nesta segunda-feira (3) o relatório Você Matou Meu Filho! – Homicídios Cometidos pela Polícia Militar no Rio de Janeiro, que mostra os casos de homicídio decorrentes de intervenção policial em 2014. No contexto da guerra ao tráfico de drogas, a Polícia Militar é diariamente acusada de utilizar força letal contra moradores das comunidades, muitas vezes ocultada pelos “autos de resistência”, onde os agentes supostamente agiram em legítima defesa. A pesquisa ainda aponta que os grupos de extermínio e de milícias contribuem veementemente para esse cenário.

No período de uma década (2005 – 2014), foram registrados 8.466 casos de homicídio decorrente de intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro. Destes, pouco mais de 5 mil casos são na capital fluminense. Estes números revelam um detalhe estarrecedor: a Polícia Militar carioca mata, em média, duas pessoas por dia sob a justificativa dos “autos de resistência”.

O relatório ainda mostra que, das 1.275 vítimas de homicídio decorrente de intervenção policial, entre 2010 e 2013 na cidade do Rio de Janeiro, 99,5% eram homens, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos. “Frequentemente o discurso oficial culpa as vítimas, já estigmatizadas por uma cultura de racismo, discriminação e criminalização da pobreza”, diz o texto da pesquisa.

Segundo o estudo, a imagem negativa associada à juventude, em especial entre os jovens negros que vivem nas periferias, leva “a banalização e a naturalização da violência”. O documento aponta que as políticas de segurança pública no Brasil são marcadas por operações policiais repressivas em áreas pobres, muitas vezes utilizando da força letal, como em casos de pessoas suspeitas de envolvimento com grupos criminosos. Para o diretor-executivo da Anistia Internacional Brasil, Átila Roque, os policiais ainda interferem nas cenas de crimes a fim de maquiar a situação. “É uma prática recorrente, nestes casos, o desmonte da cena. Raramente tem perícia feita no momento em que as mortes ocorrem. O que temos com mais frequência é que rapidamente a polícia isola a área, retira o corpo e pronto”.

A Anistia Internacional fez a pesquisa entre agosto de 2014 e junho de 2015 e foram analisados dados do Datasus do Ministério da Saúde e do Mapa da Violência. A organização ainda apurou o andamento de 220 investigações de homicídios ocorridos durante intervenção policial em 2011 na cidade do Rio e constatou que foi apresentada apenas uma denúncia. Até abril deste ano, 183 investigações continuavam em aberto. Conforme o levantamento da entidade, o Rio de Janeiro apareceu por muito tempo como o Estado com a maior taxa de homicídios. Contudo, entre 2002 e 2012, o indicador diminuiu de 56,5 homicídios por 100 mil habitantes para 28,3, enquanto, na capital, a taxa passou de 62,8 para 21,5.

A análise incluiu também dados estatísticos oficiais, entrevistas com testemunhas, famílias de vítimas e servidores públicos, incluindo policiais civis e militares. O trabalho avaliou ainda registros de ocorrência, atestados de óbito, laudos periciais, inquéritos policiais, fotos e vídeos. Para a Anistia, na comunidade de Acari, na zona norte do Rio, os homicídios decorrentes de intervenção policial, em 2014, têm “fortes evidências de execuções extrajudiciais praticadas por policiais militares do Rio de Janeiro”. Segundo a Anistia Internacional, existem casos em que a vítima foi morta quando já estava ferida ou rendida. Em outras situações, não houve ordem de prisão, a pessoa detida não oferecia perigo para o policial ou os policiais ficam escondidos aguardando a vítima passar para acertá-la.

“O auto de resistência, em particular, segue como uma espécie de cortina de fumaça para que o policial acabe exercendo a execução extrajudicial. Os dados coletados mostram que, em Acari, praticamente todas as mortes classificadas como auto de resistência têm fortes elementos que apontam para execução”, diz o relatório.

O diretor Átila Roque disse que é preciso chamar a atenção para impunidade e ausência de investigação. “Isso é quase uma autorização, uma carta branca para matar. Essa situação é grave, e uma das demandas principais que a gente faz é que o Ministério Público estabeleça imediatamente uma força-tarefa para esclarecer essas situações”, disse.

O documento lembra também o caso do bailarino Douglas Rafael Pereira da Silva, o DG, de 26 anos, morto em abril do ano passado, na comunidade do Pavão-Pavãozinho, zona sul do Rio. O dançarino foi encontrado morto com um tiro e vários ferimentos no dia seguinte a um tiroteio que envolveu policiais da Unidade de Polícia Pacificadora.”[Tenho] sentimento de perda total. Qual outro sentimento uma mãe pode ter com a perda de um filho? Sentimento de indignação e de muita raiva também pela morosidade e muita mentira em torno do processo”, disse Maria de Fátima, mãe de DG. “Eu vou acreditar que a justiça vai ser feita. Uma pessoa não pode tomar um tiro pelas costas e sair como culpado da própria morte. Não acredito que a Justiça vai ser cruel a esse ponto”, acrescentou.

Outro fator que a pesquisa indica é o medo das testemunhas em dar informações. Para Átila Roque, isso é consequência da falta de segurança de quem vai testemunhar. “Existe muito medo nessas comunidades de se mostrar e testemunhar, contar à policia e depois ser uma outra vítima. É uma cultura que está presente não apenas no Rio de Janeiro, em que o Estado não garante condições para que as pessoas que testemunham violência e violação de direitos cometidos por agentes do Estado se apresentem para testemunhar.”, afirmou.

O diretor, no entanto, reconheceu que o Rio de Janeiro deu passos importantes na última década para a redução no número de homicídios e nos autos de resistência. De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, em 2005, eram 1.098 autos de resistência. Em 2007, tiveram a maior alta e chegaram a 1.330. Até 2013, caíram, alcançando o total de 416, mas no ano seguinte subiram para 580. “É preciso reconhecer o avanço, mas se observa que a cultura da guerra continua muito arraigada.”

Nas conclusões, o relatório faz recomendações aos governos federal e estadual, ao Ministério Público e ao Congresso Nacional para combater a violência policial e a impunidade. “Não devemos reduzir essa questão apenas à polícia. Temos todas as demais instâncias do Estado, que de uma forma ou de outra, ou estão sendo incompetentes ou ineficientes, ou pior, estão sendo omissas ao não exercerem o seu papel. Que a questão seja tratada com a gravidade que tem, porque é ela que distingue o estado de direito da barbárie”, avalia o diretor. “Uma mensagem importante que está presente neste relatório é que o combate ao crime não é e não pode ser incompatível com a garantia do direito fundamental à vida”, completou.

Com Agência Brasil


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