“Você tem de ir à nossa fazenda no Piauí para ver o que estamos fazendo lá. Está ficando uma beleza…” Os olhos de Roberto Macedo, um quatrocentão de 73 anos, até brilham quando fala do projeto agrícola que a família está implantando em Regeneração, município de 17 mil habitantes na região do Médio Parnaíba, a duas horas de Teresina, uma fronteira agrícola que os novos bandeirantes abriram nos últimos anos.
Paulistano e são-paulino fanático, Macedo é o famoso dono do restaurante Rodeio, no coração dos Jardins, tradicional churrascaria que ele comanda faz mais de meio século, na esquina da Haddock Lobo com Oscar Freire. Detalhe: a maioria dos seus funcionários da cozinha e do salão veio do Piauí no tempo em que lá não havia emprego. Embora o encontre quase toda semana, só fiquei sabendo dessa nova aventura do amigo, graças à proibição de fumar em restaurantes. Ao sair para a calçada e dar uma tragada após o almoço, contei-lhe meus planos de viajar na semana seguinte para fazer esta série de reportagens sobre o chamado Novo Nordeste, e ele desandou a falar sobre a sua fazenda no Piauí.
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Convite aceito, acertei tudo com seu sobrinho Tiago Junqueira, de 28 anos, o jovem agrônomo que implantou e toca o projeto em Regeneração. Tiago é filho de Manoel Junqueira, primo-irmão de Macedo, um antigo fazendeiro paulista com terras no Paraná, que é seu sócio no sonho da Real – Regeneração Agropecuária Limitada, nome da empresa -, que se tornou realidade em apenas três anos. O avô dos dois, Antonio Lopes Velludo, era grande fazendeiro de café em Ribeirão Preto, na Califórnia Brasileira, de onde vem o amor da família pela terra.
Nem eles próprios poderiam imaginar que em tão pouco tempo mudariam completamente a paisagem dos 20 mil hectares, onde antes só havia mato, comprados do espólio de Clidenor de Freitas Santos, uma terra a perder de vista na Chapada Grande, a 30 km da cidade, na direção de Oeiras, a antiga capital do Piauí. Mas, como uma história para ficar boa tem de ser contada como foi desde o começo, melhor é ir logo para Teresina, onde encontramos Tiago Junqueira, o principal personagem dessa saga.
Com dois celulares e um aparelho de rádio UHF ligado diretamente à fazenda, entre uma e outra ordem de venda e compra, ao longo dos 140 km de estrada em direção ao Recife, ele vai nos contando como tudo começou. Recém-formado em Agronomia pela UNESP de Jaboticabal, Tiago convenceu o pai e o tio a procurarem terras virgens onde ainda eram baratas, no Norte e Nordeste do País. Em 2004, alugou uma casa em Balsas, próspera região agrícola do Maranhão, e foi à luta. Em seis meses, montado em uma Parati, rodou sozinho mais de 50 mil km. Passou por várias regiões do Pará, Tocantins e Maranhão, antes de chegar ao Piauí. “No dia em que pisei na área, falei para mim mesmo: encontrei o que queria.”
Os herdeiros do espólio pediam R$ 200 por hectare, Tiago acabou fechando negócio pagando a metade, e hoje o preço da terra não está por menos de R$ 500. Quer dizer, mesmo que não tivesse feito nada na fazenda, a propriedade já teria valorizado cinco vezes. Uma das razões está aqui mesmo no caminho, no município de Monsenhor Gil, onde a Suzano está investindo R$ 23 milhões no galpão de 55 mil m2 do Viveiro Central de Mudas, visando o reflorestamento de eucalipto para abastecer a sua futura fábrica de papel e celulose, com inauguração prevista para 2014.
A Suzano já comprou uma área de 100 mil hectares e precisa de outro tanto para viabilizar a fábrica, o que fez disparar o preço das terras na região e levou Tiago a mudar seus planos para a fazenda. Quando comprou a área na Chapada Grande, seu plano inicial era ocupar 100% da área com lavoura de grãos, em especial a soja. Agora, 8 mil hectares serão destinados ao reflorestamento (1,2 milhão de mudas já foram plantadas em 3.500 hectares), 4 mil para o plantio de grãos (além da soja, arroz, feijão e girassol) e o restante foi destinado à reserva legal da mata nativa (30% do total), além do espaço já ocupado por estradas, aceiros, casas, silos, depósitos, pomares, hortas e o setor administrativo.
Chegando à Regeneração, uma cidade bem movimentada em torno da feira na Praça da Matriz, onde fica a Prefeitura, de sandália de couro e camiseta, o prefeito Eduardo Alves Carvalho (PTB), 50 anos, mais conhecido por Dua, logo nos recebe em seu gabinete. “Confesso que você me pegou desprevenido…”, comenta ao ver o fotógrafo trabalhando. Ex-motorista de caminhão e pilador de arroz, ex-vereador e ex-presidente da Câmara, Dua já vai logo falando que a chegada da família Junqueira, “do nosso amigo Tiago”, mudou a vida da cidade.
“A situação aqui melhorou pelo menos 50%. Junto com eles vieram outros empreendedores. Já temos mais de 400 trabalhadores com carteira assinada, o comércio está aquecido, pode ver. Antes, este cerrado era isolado do mundo, só tinha emprego público”, conta Dua, que tem 600 funcionários na prefeitura e conta com um orçamento anual de R$ 19 milhões. Quando lhe pergunto qual foi a principal mudança na cidade, responde na lata: “Ah, o povo deixou de ser pedinte… Antes, essa sala na frente do meu gabinete vivia lotada de gente esperando para pedir todo tipo de coisa…”.
A caminho da fazenda, em uma estrada agora asfaltada, que se percorre em 15 minutos (antes, na terra, levava-se pelo menos uma hora, quando não estava chovendo), nada se vê plantado, tudo ainda é mata virgem. “São Paulo um dia também já foi assim”, constata Tiago. “Isto aqui é uma máquina do tempo. Temos a chance de voltar no tempo e fazer o que nossos antepassados fizeram em São Paulo e no Paraná, mas não é para qualquer um. Tem de ter sangue nos olhos.”
O asfalto da PI-236 corta 22 km da fazenda. São mais de 100 km de aceiros e estradas vicinais dividindo os talhões de produção. De um lado, as plantações de eucalipto do reflorestamento; de outro, arroz, feijão, soja, girassol. Pelo rádio, localizamos o capataz da fazenda, Edmilson dos Santos Sommer, 43 anos, gaúcho de Passo Fundo, chamado de Chê Bagual. Meio-dia, sol de matar paulista, ameaçando chuva, Bagual está comandando a colheita mecanizada de soja.
São quatro colheitadeiras arrendadas, a R$ 100 por hectare (estava para chegar a primeira colheitadeira própria, comprada por R$ 460 mil). Cada uma pode colher até 25 hectares de soja por dia, que são despejados em oito contêineres, com capacidade para 15 toneladas, e de lá levados em caminhões para a esmagadora Dureino, em Teresina. Toda a produção de soja, assim como a de feijão e milho, é vendida no mercado interno.
Chê Bagual nasceu e começou a trabalhar na roça com nove anos, na fazenda do pai. Como eram apenas 25 alqueires para nove filhos, só um ficou lá. Há doze anos, ele migrou para o Piauí e, em 2007, veio parar na Chapada Grande para prestar serviços com um velho trator. Em pouco tempo, foi contratado e, embora só tenha estudado até a 6a série, hoje ele é o gerente agrícola da fazenda. “Eu não queria estudar, mas sou inteligente. Não uso calculadora. Comigo é tudo na cabeça… Sou um agrônomo prático.”
No comando de 30 funcionários, entre tratoristas, motoristas e operadores de colheitadeira, ele forma o pessoal ali mesmo, a maioria recrutada em Regeneração, antigos boias-frias que passavam metade do ano cortando cana em São Paulo. “Esse pessoal não tinha nem carteira de motorista, agora já está operando colheitadeiras.” Eles ganham de R$ 750 a R$ 1.100 reais por mês. Em meados de maio, quando estivemos lá, havia cinco vagas abertas. O gerente ganha, entre salário e comissão na lavoura, R$ 3 mil, o que dá para levar uma vida de rei em Regeneração. “Sou gaúcho, mas amo o Piauí”, diz ele, que não pretende mais sair de lá.
A fazenda acaba de comprar mais 40 tratores New Holland, por R$ 3,5 milhões e, dez caminhões Ford, por R$ 2 milhões. O total de investimentos feitos na Real já chega a R$ 25 milhões, sendo R$ 12 milhões de recursos próprios, R$ 9 milhões financiados e R$ 4 milhões reinvestidos na empresa.
Quem anda hoje pela fazenda não pode imaginar que os primeiros plantios foram feitos há apenas três anos. São quilômetros de terra reflorestada e lavouras de grãos a perder de vista. Neste ano, serão colhidos 30 mil sacos de soja de 60 kg, num total de 1,8 mil tonelada. Na Chapada Grande, boa parte dos funcionários já anda de moto. E alguns já começaram a trocar as motos por carros. Sobrou apenas um cavalo na fazenda, utilizado para recolher jegues abandonados ou espantar o gado dos vizinhos que invade as lavouras.
Tiago Junqueira orgulha-se de seus viveiros experimentais, onde 30 variedades de mudas de eucalipto estão sendo testadas para ver quais se adaptam melhor às condições de solo, clima e índice pluviométrico para futuros projetos. “Olha o tamanho dessas árvores”, empolga-se Tiago, ao entrar em uma área do teste clonal de 12 de janeiro de 2008, que já apresenta espécimes com 9 m de altura e 38 cm de diâmetro. O normal é fazer o primeiro corte de eucalipto aos sete anos, mas aqui vai dar para fazer com seis. As mudas vêm de um fornecedor do Maranhão. Em 2010, já foram plantadas 300 mil e, até o final do ano, será alcançado o total de 1,2 milhão. Cada trabalhador planta, em média, mil mudas por dia, mas alguns chegam a duas mil. No total, a fazenda tem 300 funcionários com registro em carteira, mais 150 de empresas terceirizadas.
Ainda neste ano, serão erguidos quatro silos com balança e secador, cada um com capacidade para 30 mil sacos de grãos, um investimento de mais R$ 3 milhões. Aqui, trabalha-se a mil por hora, falando em milhões – nem parece que estamos em uma das regiões que até pouco tempo atrás era considerada uma das mais pobres do Piauí e do Brasil. “Nada dá de graça, mas em se plantando dá de tudo aqui…”, brinca Tiago ao andar pelo pomar, onde já colhe melancia, maracujá, banana, graviola, uva, acerola, pitanga, abacaxi, pimenta…
A qualidade da terra antes renegada e a produtividade alcançada na Chapada Grande logo despertaram a cobiça de além-mar. Em 2008, o GEF (Global Enviroment Found), dos Estados Unidos, fez uma oferta para comprar 50% da empresa por R$ 25 milhões. Mas o negócio não foi adiante porque, entre outras cláusulas, os americanos queriam garantir a compra dos outros 50% no prazo de três anos. O projeto deles era plantar 100% de eucalipto e montar uma serraria voltada para a exportação de madeira.
Até chegar ao atual estágio, porém, foi uma longa e nem sempre tranquila batalha. Começou com a abertura da primeira área de plantio, a derrubada da mata, o enleiramento da madeira. A autorização para o desmatamento só saiu em janeiro de 2006. Uma grande siderúrgica se propôs a comprar a madeira para fazer carvão, pagando R$ 200 por hectare, ou seja, o dobro do que os Junqueira e os Macedo pagaram pela terra.
O serviço acabou sendo terceirizado para quatro empresas autônomas, que montaram as carvoarias. Um dos carvoeiros é Carlos Roberto da Silva, 51 anos, mineiro de Bom Despacho, que já conta com uma frota de oito caminhões, um deles comprado recentemente por R$ 440 mil. Silva conta que, quando começou na região, em 1999, era “tudo mais bagunçado”, sem qualquer controle ou fiscalização.
“Agora, com tudo mais legalizado, a margem de lucro diminuiu, mas a produtividade aumentou.” Ele chega a movimentar 5 mil m3 de carvão por mês e investe os ganhos em imóveis em Bom Despacho e fazendas no Maranhão. “Cheguei aqui há dez anos arrastando uma cachorrinha… Já formei minhas duas meninas na faculdade. Não posso reclamar da vida.”
Tiago é muito grato aos conselhos que recebeu do doutor Hans Krogh, um agrônomo sueco especialista em reflorestamento, que trabalhou 30 anos na Suzano e atualmente mora em São Luís. Em 2006, durante um “Dia do Campo”, que a Real promove todos os anos, trazendo convidados ligados à área, os dois conversaram bastante. Krogh, além de consultor, tornou-se fornecedor das mudas de eucalipto. Em 2013, a Real completará o reflorestamento em 8 mil hectares e, no ano seguinte, quando começa a funcionar a fábrica de papel e celulose da Suzano, em Monsenhor Gil, fará o primeiro corte. Quer dizer, Tiago juntou a fome com a vontade de comer.
Agora, ele tem a companhia do seu primo Roberto Macedo Filho, de 43 anos, o Beto, que trabalhou boa parte da vida com o pai no setor de manutenção e compras do Rodeio. Em 2007, os Macedo, pai e filho, compraram mais 2 mil hectares de terra, no topo da Serra do Grajaú, no município de Miguel Leão, a 90 km de Teresina e 60 km de Regeneração. Além de reflorestamento e lavoura de grãos, como na Real, Beto pretende investir em caprinocultura, com tecnologia baseada no Projeto MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo) que prevê o aproveitamento de dejetos para a produção de energia.
Estudioso da agricultura sustentável, Macedo Filho está nesse momento elaborando um projeto de viabilidade econômica para pedir um empréstimo de R$ 1 milhão ao Banco do Nordeste do Brasil, que pretende aplicar na aquisição de 750 matrizes e nas instalações para a criação de dois mil animais. Por enquanto, está passando vinte dias em Miguel Leão e o restante do mês em São Paulo, onde mora sua família. Tiago não tem esse problema. No começo de junho, ele se casou com Jhamya, uma assistente social que conheceu em Teresina – mais um motivo para ele ter adotado o Piauí como sua nova morada para sempre.
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