O tempo passa ligeiro e os assuntos escorrem pelas páginas. Escrever sobre livros é tarefa sem fim.
Houve um tempo em que as livrarias ficavam nas ruas e o transeunte, por mais absorvido que estivesse em seus pensamentos, via-se impelido a entrar. Uma Estrela da Manhã com as folhas amareladas no fundo do corredor já era sinal de dia ganho.
Muitas bibliotecas particulares se formam, assim, bandeirianamente, nos interlúdios de caminhadas descompromissadas. A paisagem se torna ainda mais poética, quando as livrarias e sebos percorridos se distribuem nos desvãos de uma cidade empoeirada e invernal, como a São Paulo de outros tempos. Percorrer os olhos pelas estantes é viajar no tempo, nas tardes frias e escuras de julho, quando se caminhava sem pressa…
Na 15 de Novembro, a fachada de uma Garraux reinventada nas páginas de uma pesquisa acadêmica; na São Bento, um sebo de acesso difícil, por entre os andares de um edifício robusto; na rua São Francisco, toda a literatura da Academia Paulista de Letras, a Paulística, a Biblioteca Histórica Paulista, a Documentos Brasileiros, primeiras edições nem sempre bem cuidadas, mas sem dúvida cobiçadas, que saíam silenciosas em uma sacolinha de plástico, sob as recomendações de um vendedor sisudo e de bom coração; na Praça João Mendes os sebos foram sempre em maior número. Tantos que não cabiam no espaço da tarde.
(…) Os livros que depositamos em nossas estantes se tornam indivíduos com suas qualidades e defeitos
Os livros perdidos compõem um capítulo importante na memória dos sebos e livrarias da cidade. Uma primeira edição de Marx, sorrateira, deixou o gosto amargo do livro que se perdeu. A Cidade das Letras estava lá, por que, então, demorou tanto para ser vista? A viagem ao Reno que nunca se completou. As primeiras edições que não se realizaram. E os franceses, com suas edições encadernadas, suas folhas de rosto impressas em tipografia elegante, suas composições austeras e impecáveis, papéis de boa qualidade, volumes que perfaziam bem os ideais de uma Revolução universal que jamais se efetivou. Mas que se acreditava possível, embora distante. O historiador não tem pressa!
Haveria muito a se contar sobre os volumes escondidos, embaralhados, misturados. Quanta tensão, afinal, não se depositou nas estantes de um sebo movimentado do velho centro?
Finda a jornada. Ao atravessar a Praça Clóvis, caminho certo para um bom café paulistano no Pateo do Colégio, impossível não se rir dos vinte e cinco cruzeiros e do retrato.
Já se disse nesta coluna que os livros são a memória do mundo. Das civilizações. No tempo dos homens, os livros constituem parte de sua memória e de sua história. Como ensina um grande bibliófilo, os livros que depositamos em nossas estantes se tornam indivíduos com suas qualidades e defeitos. Eles são únicos, porque guardam, além de tudo, uma história que é só nossa.
“Obrigado, Mário, pela tua companhia.”
*Professora da Universidade de São Paulo. Autora de O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (São Paulo: Edusp, Fapesp, 2011, 448 páginas). Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Biblioteca Nacional, 2011; Prêmio Jabuti, 2012; e Edições e Revoluções – Leituras Comunistas no Brasil e na França (Cotia: Ateliê Editorial, 2013, 334 páginas). Para ler mais, entre na página http://bibliomania-divercidades.blogspot.com.br/
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