O dia em que elas tomam o poder

Os belos cocares de pena e a pintura do tórax são alguns dos privilégios masculinos confiscados pelas guerreiras. Os cantos da celebração narram como isso aconteceu - Foto: Iano Mac Yawalapiti
Os belos cocares de pena e a pintura do tórax são alguns dos privilégios masculinos confiscados pelas guerreiras. Os cantos da celebração narram como isso aconteceu – Foto: Iano Mac Yawalapiti

Conta-se entre os povos do Alto Xingu que certo dia os homens de uma aldeia foram pescar para festejar um menino que se tornaria adulto e, futuramente, um líder. Eles planejavam ficar três dias fora. O garoto, que permaneceu na aldeia, foi espiar o acampamento dos homens e descobriu que eles estavam se transformando em onças, antas, porcos do mato. Voltou correndo e contou à mãe, que chamou as outras mulheres para o pátio da aldeia e avisou que os maridos não voltariam mais. Elas fizeram então a própria festa. Dançaram, cantaram e chamaram mulheres de todos os outros povos xinguanos. Após a festa, elas haviam se transformado em Yamurikumalu, na versão do povo kalapalo, mulheres independentes e guerreiras que não precisavam mais dos homens, sabiam pescar, caçar e construir casas.

Quem narra o mito é Kuiaiu Yawalapiti, 33, a primeira xinguana a concluir uma faculdade. Ela se formou em Enfermagem, em Fernandópolis, no interior de São Paulo, e hoje trabalha no Ambulatório do Índio da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Aprendeu a história com o avô materno. “Mas é uma versão do povo kalapalo. Cada etnia conta de um jeito diferente”, ensina Kuiaiu. Em outra versão, os homens voltaram da pescaria, mas por dentro eram bichos. A intenção deles era devorar mulheres, crianças e idosos durante a noite, mas as mulheres descobriram, atearam fogo às casas e foram para outro lugar, onde formaram uma aldeia só de mulheres. E não precisavam mais dos homens.

Para celebrar a história das guerreiras, recorrente no território do Alto Xingu, as alto-xinguanas fazem de vez em quando a festa das mulheres. Nesse período, dominam o poder público e ocupam o pátio da aldeia. Assumem atividades dos homens, ameaçam aqueles que não cumprem seus deveres, batem neles de brincadeira e lutam o huka-huka, uma prerrogativa masculina. Também pintam a parte superior do tronco, área que normalmente só os homens pintam, cantam versos de canções masculinas e usam os belos cocares de penas reservados aos homens.

Foto: Iano Mac Yawalapiti
Foto: Iano Mac Yawalapiti

O desejo delas é que essa celebração aconteça com mais constância. A última vez que ocorreu, para ter ideia, foi em 2010. “É difícil conseguir recursos para a festa, mas estamos fazendo uma campanha”, diz Kaiulu Yawalapiti Kamaiurá, 36. Ela é fundadora e presidente da uma entidade que leva o nome do mito das mulheres guerreiras, a Associação Yamurikumã das Mulheres Xinguanas, criada para unir mulheres de várias etnias do Parque do Xingu na defesa de objetivos femininos em comum. Em maio, a associação enviou ao Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico uma proposta para transformar a festa das mulheres (também chamada Jamugikumalu em Karib, outro tronco linguístico do Xingu) em patrimônio imaterial e cultural da humanidade. “Se der certo, vamos fazer toda a festa como era antigamente. E vamos entrevistar e registrar as histórias contadas pelas mulheres que têm esse conhecimento transmitido pelos antepassados, para dar valor a elas como guardiãs da história viva”, diz Kaiulu.

A criação da associação de mulheres xinguanas, a exemplo das que já existem em outras terras indígenas, incomodou sensivelmente os homens. Procurados para dar suporte ao surgimento da entidade, a maioria foi contra a ideia. Kaiulu ficou especialmente mal impressionada com a antropóloga da FUNAI, que a desaconselhou afirmando que as mulheres indígenas não estavam preparadas para levar uma entidade em frente. Apenas duas lideranças xinguanas saudaram a iniciativa e falaram nas aldeias que as mulheres deveriam se organizar: Makupá Kaiabi e o grande cacique Aritana Yawalapiti, tio de Kaiulu e Kuiaiu.

Entre os maiores inimigos está o labirinto burocrático dos brancos. “É muito difícil correr atrás de registro e outros papéis quando não se tem informação. Fui aprendendo na batalha, com o filhinho no colo. Não tem tempo ruim quando a gente quer”, diz a persistente Kaiulu. Mesmo sem ter a ajuda dos mais experientes para facilitar o caminho, a associação Yamurikumã está mostrando a que veio. Uma de suas iniciativas mais bem-sucedidas é a roda de conversa nas aldeias, um encontro de mulheres de todas as idades e etnias em que elas falam do que sentem, do que precisam, do que querem. Para que esses encontros aconteçam, as ativistas percorrem as aldeias, até mesmo as mais distantes, para reavivar o mito das guerreiras e convidar as mulheres a se mirarem nesse exemplo. “Queremos fazer a mesma trajetória de conquista dos nossos direitos. Mas as nossas armas são a conversa, a escrita, as imagens, os nossos conhecimentos e o que a gente fizer juntas para que sejamos ouvidas”, diz Kaiulu.

Outra intervenção que está sendo bem recebida pelas xinguanas é a parceria entre a associação, as equipes do Distrito Especial Indígena do Xingu e o Projeto Xingu, da UNIFESP, para ampliar o alcance dos exames de prevenção ginecológicos. “A gente, da associação, fala com as lideranças das aldeias, pedimos que apoiem a ação das equipes de saúde e mostramos para as mulheres que o exame é importante. Isso ajuda a superar a vergonha e a resistência a fazer a coleta do Papanicolau”, diz a presidente da Yamurikumã. Nesse aspecto, a palavra dela ganha mais peso porque Kaiulu é mãe de cinco filhos e uma das poucas xinguanas que expõe seus pontos de vista nas discussões em que os homens são a maioria. “Nós queremos que a opinião das mulheres seja ouvida em decisões importantes, da saúde à demarcação de terra.” A enfermeira Kuiaiu, que se reconhece feminista, concorda e avalia que as conquistas das mulheres estão mudando a perspectiva de vida das indígenas. “Eu não sabia o que era a palavra sonho. Antes, a gente nascia, crescia, tinha filho. Quando comecei a conhecer o mundo fora da aldeia, entendi o que era ter um sonho e um objetivo”, diz ela.

Formada e com uma carreira pela frente, Kuiaiu se preocupa em melhorar as condições para que as jovens possam se manter na escola. “Pessoalmente, sofri muito por ser a única indígena da faculdade. É necessário criar mecanismos de suporte pedagógico para melhorar a integração e o entendimento dos indígenas.” Ela lembra que passava noites procurando o significado de termos de anatomia. A falta de respaldo financeiro também ameaçou seu futuro. Só não desistiu porque o pai, que é funcionário da FUNAI, conseguia mandar algum dinheiro para comida e transporte. Também recebia um pequeno auxilio econômico do governo, mas era insuficiente para se manter na cidade. “Quem não tem ajuda não consegue.”
Kuiaiu insiste na urgência de pensar em projetos que, além do apoio financeiro, ajudem os indígenas a enfrentarem o desafio de um sistema de ensino voltado para os brancos, que não está preparado para receber os diferentes. Para as Yamurikumãs, as mulheres indígenas e de outras culturas possuem muitos desafios em comum.


Comentários

Uma resposta para “O dia em que elas tomam o poder”

  1. Avatar de José Hamilton de Jesus Santos
    José Hamilton de Jesus Santos

    Eu achei muito legal essa atitude dessas guerreiras indígenas, Que continuo sempre lutando pelos seus direitos como índias forte é guerreiras do Brasil.

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