Agosto, o mês trágico que assistiu ao suicídio de Getúlio Vargas e à renúncia de Jânio Quadros. Em 2015, organizações virtuais convocaram um novo ato – para o dia 16 – a favor do golpe contra Dilma Rousseff. Organizações populares de esquerda prometem a contraofensiva no dia 20.
Pessoalmente, não acredito na viabilidade do golpe, mas não convém deixar a barba de molho. Em 1964, quando a classe média paulista foi às ruas pedir a intervenção militar, os seus representantes políticos acreditavam que eles sairiam logo do poder. Ficaram 20 anos.
Hoje, as tentativas de derrubar os presidentes na América Latina se dão através do Judiciário, da mídia e do Congresso. São “golpes constitucionais”. Mas não poderia uma ala do Congresso ou o juiz celebrizado do momento sair do controle da elite política à qual serve?
Por que se fala tanto em reforçar o Congresso? É que, historicamente, o Poder Executivo é o mais progressista. Os parlamentos latino-americanos são o locus das oligarquias regionais, especialmente o brasileiro, devido à desproporcionalidade entre os votos de distintas regiões. Não por acaso, ante uma presidenta enfraquecida, o Brasil já vive um parlamentarismo branco. O seu líder, Eduardo Cunha, não contente em tentar usurpar do Executivo até a indicação de diretores de empresas estatais, defende abertamente a adoção do regime parlamentarista a partir de 2018.
Em Honduras e no Paraguai, os presidentes foram depostos sob a capa da legalidade. Na Venezuela, a primeira tentativa contra o presidente Chávez foi o clássico golpe militar, mas falhou. Em 2015, na Argentina, na Bolívia e, de maneira mais brutal, na Venezuela e no Equador, a tática foi a da defesa da liberdade das empresas de mídia, apoiada em protestos de massas e em governantes oposicionistas locais.
Em março, a direita brasileira que foi às ruas não suportou manter seus protestos e todo o seu poder de parar o País em um domingo se esvaiu numa marcha a Brasília com… 30 pessoas.
A mundividência
Vê-se logo que a classe média tem poder de mobilização, mas não de organização permanente. Não podendo explicar suas contradições psicológicas pelas tensões da sociedade, nem seus fracassos pessoais pela luta de classes, prefere explicar o mundo através de mesquinharias veiculadas em telenovelas ou best sellers de história do Brasil.
A Independência do Brasil seria resultado dos impulsos sexuais de Dom Pedro I, assim como o PT seria uma quadrilha de criminosos. O ciclo econômico de Kondratiev entraria em fase descendente devido à corrupção do governo e o déficit público seria resultado do número de ministérios. Não há forças sociais, apenas personalidades e pequenas traições.
Uma parte da classe média projeta sua própria experiência familiar nos processos gerais da sociedade e da economia. Crê em um Deus que Lhe é fiel. E ela só devolverá a Ele a fidelidade celestial em troca de compensações previstas em um contrato terreno. O seu culto desaba à primeira ameaça de ruína e ela troca de igreja como de roupa. Seus filhos ganham apetrechos eletrônicos que a endividam e mantêm-se na escola privada ainda que inadimplentes. Ela lhes oferece presentes, mas não a sua presença. Como são importados, o dólar caro também a incita a vilipendiar o governo.
A “mesquinhez de sua vida cotidiana” necessita de aventuras esportivas ou extraconjugais, que também são planejadas dentro do orçamento mensal. Uma dose de violência precisa ser exercitada em esportes motorizados em trilhas do interior do País. Ali, em cidades “homogêneas”, onde tudo está arrumado e as prefeituras pagam as passagens dos migrantes pobres para que “voltem ao nordeste”, as camadas médias podem ver e ser vistas no clube local ou no shopping center.
Como as camadas médias também se escrevem no plural, católicos e evangélicos, pequenos burgueses ou administradores, altos funcionários do Estado ou do mundo corporativo veem (e, uns poucos leem, mas não até o fim) o intelectual que glorifica o “homem médio”. Este não é o cidadão da Velha Europa liberal, mas aquele que se classifica previamente pela cor da pele e status para ter direito a um pensamento médio.
Nova classe média?
As camadas médias só são uma classe social pelas condições de vida compartilhadas, mas não pelo sentimento de uma luta comum contra outra classe.
A classe média nova – ou que se julga enquanto tal – precisa se deslocar para longe, a fim de cumprir o sonho da casa própria. Mas ela ainda não pertence, de fato, às classes médias tradicionais porque lhe falta o curso universitário dos pais, as lembranças de vida em comum em clubes e colégios particulares, as viagens ao exterior na adolescência e a capacidade de ingressar no restaurante fino com a naturalidade do habituè.
No mundo ideal das classes médias em períodos de crise não haveria social democracia, partido de esquerda de massas, sindicatos, legislação trabalhista, impostos ou direitos humanos.
Não podendo se organizar, ela age como biruta sob um vento indeciso. Tem “razão” ao se indignar contra o trabalhismo que, ao conciliar o interesse do grande capital a melhorias da vida dos pobres, nada tem a lhe oferecer. Mas desconfia que o Reino do Grande Capital só terá lugar para os eleitos. É assim que ela descobre em um projeto de terceirização, em abril de 2015, que seria a maior prejudicada pelo que ela mesma pedia.
Por outro lado, a classe média se divide e sua alma de direita também pode se calar diante de sua alma de esquerda, como aconteceu nos anos 1980. Por trabalhar com abstrações, é ela quem mais fornece os quadros dirigentes da esquerda institucional. O seu defeito, a indecisão, se faz virtude em outra situação histórica.
Os governos petistas já perderam a oportunidade de conquistá-la porque isso exigiria cobrar mais impostos dos ricos e financiar uma verdadeira melhoria dos serviços públicos. Como a ideologia lulista não aceita acirrar a luta entre as classes fundamentais da sociedade, a classe trabalhadora persistiu prisioneira de uma representação distorcida da luta de classes. A briga no interior de setores médios oculta os verdadeiros conflitos fundamentais da sociedade. Dessa maneira, discutimos temas morais típicos da classe média, como a corrupção ou o suposto aparelhamento do Estado pelo PT. Nenhum dos dois lados pode de fato defender a interrupção da Usina de Belo Monte ou rediscutir o papel do agronegócio e do envenenamento do meio ambiente, por exemplo.
De um lado, os políticos corruptos de discurso moralista, de outro ex-esquerdistas afundados nos sofás de gabinetes medrosos. Fora do poder especificamente político, a direita se torna ideológica e a esquerda, pragmática. Esta oferece cargos e compromissos, aquela radicaliza a fim de obter cada vez mais e, por fim, retomar um poder político que para os burgueses práticos é indiferente, já que possuem o poder econômico.
Os de baixo
Há um jogo de cena na disputa entre oposição e governo. Nenhum dos lados quer mesmo transformações sociais. Estamos diante daquilo que o filósofo da USP Paulo Arantes chamou de uma falsa polarização, pois um dos lados só radicaliza o processo político a fim de impedir o outro de governar.
Mesmo assim, invisíveis na arena da luta entre classes acessórias, trabalhadores e trabalhadoras aprenderam como mudanças políticas de escala nacional se reproduzem em seu cotidiano. Mas elas dependem de sua força nos bastidores daquele teatro.
O teatro, portanto, não significa que interesses concretos de trabalhadores não sejam afetados por um golpe ou simplesmente pelas ameaças que mantêm o governo popular no canto do ringue. Mas os avanços sociais sempre foram o fruto de sua mobilização e não de partidos ou caudilhos no poder.
Quando Getúlio Vargas foi deposto em 1945, as empregadas de um brigadeiro golpista não arrumaram a casa dele e nem lhe fizeram o almoço. Ao chegar à sua residência, ele reclamou. Então, elas lhe disseram: “O senhor ajudou a derrubar nosso amigo Getúlio. Não lhe serviremos mais!”. I
*Professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo.
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