“O debate sobre o canabidiol deu a entender que ele é algo diferente de maconha”

Muita coisa aconteceu desde as primeiras edições da Marcha da Maconha, uma das mais importantes manifestações públicas em defesa da legalização da cannabis. Em 2002, quando a marcha despontava por aqui, seus organizadores mal podiam imaginar que um dos compostos da maconha seria retirado da lista de substâncias proibidas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

O feito aconteceu o ano passado com o canabidiol (CBD), um dos 80 princípios ativos da erva. O gatilho da história foi o pedido na Justiça de Anny Fischer, 7, para usar o composto. Ela é portadora da síndrome CDKL5, condição que chega a provocar inúmeras convulsões em um único dia. Anny não só conseguiu o direito de usar a substância como deflagrou intenso debate que culminou na mudança do status do CBD na Anvisa. 

Agora, apesar das boas notícias para o movimento canábico, como a expectativa de uma decisão favorável no Supremo Tribunal Federal para a tão sonhada descriminalização do uso, muitos ainda acham que há muito o que dizer. E, para isso, os idealizadores da Marcha da Maconha preparam o CONNABIS 2015, o primeiro Congresso On-line da Maconha que começa nesta segunda (24) e vai até o dia 30. 

O CONNABIS não está vinculado à uma instituição ou universidade. Sem financiamento, ele é uma cria da Marcha da Maconha. O acesso ao congresso é para todos e as inscrições estão abertas aqui.

O evento vai trazer nomes como Dartiu Xavier e Elisaldo Carlini, psiquiatras da Unifesp, Sidarta Ribeiro, neurocientista da UFRN, Henrique Carneiro, professor de História da USP, entre antropólogos, usuários e ativistas para falar sobre maconha na internet. 

São especialistas de peso. O psiquiatra Dartiu Xavier já fez estudos diversos nessa ceara. O mais polêmico sugeria o uso da maconha para o tratamento de viciados em crack. Já Elisaldo Carlini, é um dos arautos da maconha medicinal no Brasil. Ele foi um dos primeiros a atestar os efeitos anticonvulsivos da droga -e foi justamente esse efeito que mudou a visão sobre o canabidiol.

Mesmo com as conquistas e nomes importantes ligados ao ativismo, o organizador do CONNABIS, Fernando Silva, 30, no entanto, diz que o debate sobre a maconha continua estigmatizado porque a mídia dava a entender que o CBD era algo diferente da cannabis (o composto corresponde a uma importante fatia da erva, junto com o THC, mas é conhecido por não ter efeitos psicoativos).                       

Em entrevista, o advogado fala à Saúde!Brasileiros sobre o CONNABIS 2015 e sobre os desafios do movimento canábico.  O Fernando é um personagem curioso e talvez você o conheça mais como Profeta Verde, uma figura que usa uma fantasia verde nas marchas e em ações em defesa da erva.  


Saúde!Brasileiros: Como se tornou o profeta verde?

Fernando Silva: A minha história com a Marcha da Maconha começou quando estudava direito e fui percebendo que uma política de drogas orientada pela repressão ao uso e ao comércio destas substâncias era um verdadeiro equívoco.

Além de não impedir o uso destas drogas (ao contrário, os usos aumentaram neste período de guerra às drogas) os efeitos colaterais da proibição foram enormes: fortalecimento do crime organizado, aumento da corrupção de agentes estatais, lavagem de dinheiro, encarceramento em massa de caráter seletivo que atingia especialmente os pobres. Enfim, uma série de danos que se mostravam muito mais graves que os danos específicos do uso das drogas à saúde dos usuários.

A partir de 2009, eu passei a me envolver com a marcha da maconha e me aprofundar no debate pela legalização, da maconha e de todas as demais drogas. 

Entendi que legalizar não era liberar geral, como pensa muita gente, mas criar uma regulamentação sensata, que difere em níveis de controle e acesso conforme os variados níveis de periculosidade da substância. Ao meu ver, tanto a maconha quanto a cocaína devem ser legalizadas, claro que com normas relativas à produção e distribuição de cada uma delas. 

Em 2011, quando a Marcha da Maconha ainda era proibida, eu decidi usar essa fantasia verde para minimizar o peso do estigma de se participar de uma manifestação tão polêmica. A estética daquela roupa agradou tanto os presentes que decidi criar este personagem que propagaria uma nova era pra maconha: Profeta Verde.


Esse é o primeiro Congresso que fazem. O que acreditam que precisa ser informado. O que é mais importante hoje nesse debate?

Ao concebermos o congresso, queríamos criar mais um canal para a potencialização das vozes da cultura cannábica. O grande objetivo deste encontro é mostrar que os usos da maconha vão muito além daquilo que é mostrado nos noticiários, que quase sempre relacionam o uso ao crime.

Também é importante pra gente municiar aqueles que já sentem que algo precisa ser mudado. Oferecemos informações para qualificar o debate que fazem diariamente com seus pares. Mostramos em nossas entrevistas que não é nada absurda a realidade da maconha. Pelo contrário, é muito mais normal e corriqueira do que se imagina.

Quais estratégias pensam para que o debate da maconha consiga alcançar outros nichos da população?

Precisamos ir abrindo nossos espaços dentro dessa massa informacional gerada pelas veículos de comunicação. O uso da internet para driblar a censura velada feita pela mídia hegemônica é uma de nossas principais estratégias.

Eventos de rua como marchas e atos de protesto é outro recurso que adotamos em conjunto com a panfletagem presencial em eventos que atraiam públicos que queiramos atingir.

Isso tudo é importante porque as pessoas que não são inicialmente simpáticas ao debate podem até rejeitar nossa mensagem, mas não podem fingir que não existimos. Elas começam, então, a se acostumar com a nossa presença nos espaços públicos.


O advogado Fernando Silva, Profeta Verde, em audiência pública no Senado. Foto: Arquivo Pessoal
O advogado Fernando Silva, Profeta Verde, em audiência pública no Senado. Foto: Arquivo Pessoal

Acreditam que a discussão sobre o uso medicinal da maconha pode ser uma porta de entrada para um debate mais profundo?

Sim. Embora seja preciso deixar claro que esta discussão o ano passado [sobre o canabidiol] foi feita de forma eufemista pela mídia hegemônica, que evitava falar de maconha medicinal e dava a entender que o CBD era algo diferente da maconha.

A ideia que se passava era que aquele poderia ser regulamentado enquanto esta poderia continuar proscrita, o que se torna um contrassenso, assim como a descriminalização, porque entende-se ser possível o uso sem que ninguém cultive ou comercialize a planta.

Independentemente disso, o debate sobre o óleo de maconha rico em CBD foi importante para trazer, pela primeira vez no país, uma visão positiva da maconha que há décadas vinha sendo associada a usos negativos. Agora, estamos tentando aproveitar essa brecha aberta no imaginário público para alargamos a aceitação dos demais usos da maconha.

O que acharam do debate em torno do canabidiol o ano passado? A retirada da lista de substâncias proibidas da Anvisa foi um avanço?

Além de um tanto falacioso, o debate sobre o canabidiol, ao nosso ver, revelou mais uma vez a força dos interesses econômicos por trás das políticas adotadas.

Uma pena que sigamos restringindo a exploração do potencial terapêutico da maconha in natura para favorecer os interesses da indústria farmacêutica, interessada em patentear e lucrar com os componentes purificados da planta.

De toda forma, a mudança da classificação do canabidiol na Anvisa já é uma pequena vitória para uma pequena parcela dos usuários medicinais de maconha que agora podem, em algumas doenças e casos bem específicos, fazerem um uso regulamentar da maconha.
 

Vocês têm um plano de ação para que isso seja uma conquista estendida a todos os componentes da Cannabis?

Nosso plano de ação é que a maconha seja legalizada da forma mais ampla possível. Assim, todos os usos medicinais seriam possíveis, mas não só: também os usos religiosos, industriais e até mesmo recreativo, como acontece hoje no Colorado ou no Uruguai.

No debate sobre o canabidiol, algo bem frisado foi o fato da substância não ter efeitos psicoativos, ao contrário do THC. O que achou desse enfoque?

Essa é uma abordagem reducionista que não leva em consideração o efeito comitiva da maconha, a sinergia entre os mais de 80 canabinoides e centenas de tempernoides capazes de trabalhar no nosso sistema endocanabinoide e regular uma série de funções vitais do organismo.

CBD e THC são parceiros que atuam em nosso organismo de forma orquestrada com os demais canabinoides, propiciando os diversos efeitos terapêuticos indicados para diferentes sintomas patológicos.

As pessoas procuram vocês para saber sobre o uso medicinal da erva? Esse debate cresceu?

Algumas pessoas já nos procuravam pedindo ajuda para obter o acesso à maconha, fosse para o uso medicinal ou recreativo. Após o boom do CBD na mídia em 2014, essa procura aumentou em relação ao óleo de CBD, com muitas pessoas nos procurando para saber como obter o óleo.

Hoje, infelizmente, não damos conta de ajudar estas pessoas porque ficamos atados com a proibição que prevalece sobre a regulamentação para a maioria dos casos que chegam até nós.

O que diriam para as pessoas que estão tentando usar a erva como medicamento pela primeira vez e têm medo dos seus efeitos?

Que procurem outras pessoas que fazem o uso medicinal da maconha e vejam o que relatam de melhora ou piora em seus quadros sintomáticos.


 

 


Comentários

2 respostas para ““O debate sobre o canabidiol deu a entender que ele é algo diferente de maconha””

  1. Avatar de Rivadalvis Marinho
    Rivadalvis Marinho

    Está mais que na hora do Brasil dar um salto de qualidade em sua qualidade de vida.

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