O cientista político Cláudio Couto recebeu com estranheza a notícia de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava sendo investigado por suposto tráfico de influência internacional a favor da construtora Odebrecht. Professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e dono de um pós-doutorado pela Universidade de Columbia, em Nova York, Couto considera que propagandear empresas nacionais no Exterior é prática legítima e usual no cenário político mundial. “É absolutamente natural que lideranças políticas de um país, no cargo ou mesmo fora dele, de alguma maneira, façam lobby em prol dos investimentos das empresas desse país no Exterior”, afirma.
Não por acaso, líderes das principais potências costumam agregar empresários em suas comitivas de viagem pelo mundo. “Todo mundo faz isso”, lembra Couto. Embora considere o ex-presidente Lula a maior liderança do campo da esquerda do País, o cientista político acredita que seu legado está ameaçado: “Um eventual fracasso do governo da sucessora, a quem ele bancou, será também um fracasso dele”. O agravante seria uma debacle envolta em denúncias de corrupção. Nesse campo, Couto acredita que doações legais podem, de fato, ser um “instrumento muito engenhoso” de pagamento de propina. Como as construtoras sob investigação doaram para campanhas de diferentes partidos, ele aponta a possível consequência de questionar a legitimidade das eleições com base nessas doações: “Não vai sobrar ninguém”.
Brasileiros – Há uma crise institucional no País?
Cláudio Couto – Não há uma crise institucional porque as instituições não estão em risco. Elas são feitas para funcionar sob pressão, para lidar com crises. O que temos é uma crise política, sobretudo da atual coalizão de governo. Em qualquer democracia, é normal que haja crises políticas.
O problema se restringe à coalizão?
PT e PMDB já não se entendem como antes, mas não me parece que essa seja a única crise. Há uma crise de relacionamento entre governo e oposição. Existe uma oposição que já não considera o governo como legítimo. Daí os clamores por impeachment, por descontinuidade. Houve queixas da oposição à época da eleição com respeito ao próprio resultado do processo eleitoral.
O senhor considera essas queixas legítimas?
As queixas feitas logo após o processo eleitoral, levantando suspeitas, pedindo recontagem de votos, me pareciam apenas choro de mau perdedor. Com o passar do tempo, outros elementos foram se agregando a esse processo. Na época da eleição, os elementos decorrentes da investigação da Operação Lava Jato eram muito menos alentados do que são hoje. Existe também um questionamento de outra ordem, que diz respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal, por conta das “pedaladas fiscais”. Quanto a eventuais abusos cometidos durante o processo eleitoral, não é à toa que tem gente questionando junto ao Tribunal Superior Eleitoral a legitimidade da eleição. Isso é muito mais complicado.
“Na época da eleição, os elementos decorrentes da investigação da Operação Lava Jato eram muito menos alentados do que são hoje”
Por que construtoras hoje sob investigação doaram para várias campanhas?
Exato. Não foi só a presidente Dilma que recebeu dinheiro dessas construtoras. Foram também os candidatos de oposição, no plano federal e nos Estados. É claro que doações legais podem ser um instrumento muito engenhoso para pagamento de propina. É possível que isso seja uma forma de lavar dinheiro de propina? É possível, mas, se formos nesse momento questionar todos os resultados eleitorais com base nisso, não vai sobrar ninguém.
Existe um quadro de instabilidade que afeta a economia, a imagem do Brasil e até o desempenho das empresas. Por trás dos ataques ao governo, a Lula e ao PT pode estar ocorrendo um boicote ao País?
Não creio que haja um boicote deliberado ao País, que use as acusações ao PT como camuflagem. O cenário é um pouco mais complexo. De um lado, quem está nessa luta política não está muito preocupado com os interesses nacionais. Está preocupado com o seu próprio ganho no contexto dessa luta política. De outro lado, houve de fato uma série de malfeitos, para usar uma expressão que a própria presidente gosta. Quando isso vem à tona, gera crise, gera descrédito em instituições, como o próprio descrédito na Petrobras, que se reflete no valor das ações da empresa. Isso ocorre até por razões saudáveis, pelo fato de as instituições de controle, de investigação, estarem funcionando melhor do que no passado. Em boa medida, por mérito dos próprios governos petistas.
Como assim?
Foi a partir da gestão de Márcio Thomaz Bastos no Ministério da Justiça que a Polícia Federal se reforçou tremendamente. O Ministério Público e a Controladoria Geral da União também se reforçaram muito nesse período. Enfim, instituições de controle, de modo geral, se fortaleceram e isso levou a investigações como essas que vemos hoje. No momento em que essas coisas se revelam, produzem crises que têm efeitos tanto políticos como econômicos. Não é possível colocar isso no bojo de uma grande conspiração. Mas há, evidentemente, quem se utilize disso para interesses políticos imediatos, independentemente de qualquer preocupação mais de longo prazo com o País.
No embate político, um dos polos parece preocupado apenas em se colocar como alternativa de poder.
Compreensível em investigações de corrupção, no contexto da disputa entre oposição e governo. É diferente quando a oposição vota contra políticas que ela própria defende ou defendeu no passado, para simplesmente sabotar o governo. Um caso de sabotagem em relação não só ao governo, mas aos princípios da própria oposição, foi votar contra o fator previdenciário, uma iniciativa do governo Fernando Henrique, importante para manter a Previdência viva. A oposição votar contra o fator previdenciário é uma tremenda contradição. É uma sabotagem contra o País para render benefícios políticos de curto prazo.
“A oposição votar contra o fator previdenciário é contraditório, uma sabotagem contra o País, para render benefícios políticos de curto prazo”
Nessa categoria entrariam também as “pedaladas fiscais”? O governo diz que existem desde os tempos de Fernando Henrique.
Se esse mecanismo vinha sendo utilizado da mesma forma, usar as “pedaladas fiscais” contra o governo como forma de criminalizá-lo seria uma decisão casuística. Faz então todo sentido a linha de defesa que a Advocacia Geral da União vem utilizando de que se é para mudar um entendimento, que se mude para o futuro. Criminalizar algo que foi feito quando o antigo entendimento ainda vigorava é retroagir na aplicação da lei. Isso é inconstitucional. A questão mais técnica, que ainda não vi explicitada, é se de fato as “pedaladas fiscais” utilizadas agora são iguais às anteriores.
No atual cenário, qual é o papel do ex-presidente Lula? O que ele representa?
Sem dúvida nenhuma, ele é a maior liderança do PT. Eu diria que, historicamente, ele é a maior liderança do campo da esquerda do País. E é um líder que vê o seu legado seriamente ameaçado. Primeiro, porque um eventual fracasso do governo da sucessora, a quem ele bancou, será também um fracasso dele. Não vai implicar sobre tudo o que foi feito antes, mas é um fracasso. Como as pessoas têm memória curta, pode de alguma forma macular sua longa trajetória. Acaba ficando essa última imagem. Esse é o grande problema. Se, além do mais, o fracasso vier envolto em uma crise profunda relacionada à corrupção, tanto pior. Seria trágico para o campo da esquerda ver sua principal liderança envolvida em um cenário de derrocada política como esse.
As oposições tentam não apenas neutralizar a presidenta Dilma, mas também atuam para tirar o Lula do páreo em 2018. Existe essa possibilidade?
Acredito que sim. Tirá-lo do páreo em 2018 é, de alguma maneira, manchar sua imagem do ponto de vista histórico. Porque isso vai gerar resultados não só para 2018, mas para um período mais longo.
“A dicotomia entre esquerda e direita está mais viva do que nunca. O preocupante são os defensores de que o outro lado deveria ser banido da face da Terra”
Lula está sendo investigado por suposto tráfico internacional de influência a favor da construtora Odebrecht. Como o senhor recebeu essa notícia?
Me causa uma certa estranheza. É absolutamente natural que lideranças políticas de um país, no cargo ou mesmo fora dele, de alguma maneira, façam lobby em prol dos investimentos das empresas desse país no Exterior. Isso é perfeitamente normal e legítimo. Não consigo entender como configura tráfico de influência, que é o uso de um cargo para vantagens indevidas. Propagandear os interesses do País lá fora, fazer gestões para que os interesses dessas empresas sejam contemplados, é algo que as lideranças políticas de todos os países fazem.
Desde o primeiro mandato, Lula defendia que, na Presidência, ele precisava atuar como “mascate” das empresas brasileiras. Incluía inclusive empresários nas comitivas de suas viagens ao Exterior. A prática é comum nos Estados Unidos, na França, na Alemanha, não é mesmo?
Todo mundo faz isso. Faz parte do jogo dos negócios internacionais. Não sei como o conceito de tráfico de influência entra nesse caso. Tráfico de influência, a meu ver, seria tentar burlar uma licitação, seria pagar propina, tentar influenciar de forma ilícita um tomador de decisões. Não é isso que se tem. Na realidade, o que está se fazendo é uma política de convencimento, de apresentação de vantagens e razões do ponto de vista da própria lógica dos negócios.
No Brasil, a grande imprensa adota posturas distintas na cobertura dos institutos dos ex-presidentes FHC e Lula. Em sua opinião, por que isso acontece?
Os grandes veículos de imprensa expressam suas preferências políticas. Ao expressarem essas preferências, eles leem a realidade através de lentes que refletem essas preferências. Como não há uma preferência igual pelo ex-presidente Lula e pelo ex-presidente Fernando Henrique, eles vão interpretar de forma muito distinta coisas que, na prática, são muito parecidas.
Por exemplo?
O funcionamento desses institutos, que são think tanks do ponto de vista ideológico e programático, refletem cada um deles, o ponto de vista de seus mentores. Refletem também a própria liderança de cada um. É muito comum mundo afora, nos Estados Unidos em particular, que ex-presidentes recebam cachês bem polpudos por palestras. É normal que seja assim. Cada um recebe o cachê que acha que deve receber e que os outros decidem pagar. Não vejo nada de ilícito nisso. O gozado no Brasil é que apontam como ilícito quando um ex-presidente faz isso, mas aplaudem quando o outro faz a mesmíssima coisa. São dois pesos e duas medidas.
Em vários países, a começar pelos Estados Unidos, ex-presidentes costumam abandonar a política miúda e se tornam uma espécie de instituição, a serviço de causas nacionais ou globais. Por que isso não ocorre no Brasil?
Os costumes políticos são diferentes lá e cá. Primeiro porque quem é duas vezes presidente nos Estados Unidos não pode ser uma terceira. Isso, por si só, provoca um afastamento dessas lideranças da vida política central. Aqui, o ex-presidente é sempre um potencial candidato. Falamos há pouco da possibilidade de o ex-presidente Lula voltar em 2018. Lá, essa possibilidade está vetada. Ademais, nos Estados Unidos criou-se uma tradição de que depois de exercerem um ou dois mandatos, eles passam a ter um outro papel. Essa tradição acaba gerando uma expectativa na sociedade. Aqui não existe essa tradição e, portanto, não existe essa expectativa. Daí, é normal que ex-presidentes continuem mais ativos na cena política. Lula ficou até mais ativo do que Fernando Henrique durante muito tempo.
Por quê?
Fernando Henrique não assumiu papéis mais ativos antes porque o próprio PSDB tratou de escamoteá-lo. José Serra e Geraldo Alckmin foram candidatos que, em campanhas presidenciais, não priorizaram a defesa do governo do partido. Então, se eles próprios não priorizavam, ficava complicado para Fernando Henrique participar de maneira mais efetiva. Aécio Neves fez uma defesa mais clara do governo do ex-presidente e, de alguma forma, viabilizou uma participação mais ativa de Fernando Henrique na política partidária.
O que mais chama a sua atenção na atual crise?
Vivemos um cenário de polarização política muito agudo. Acho até engraçado quando alguém diz que acabou a divisão entre direita e esquerda. Essa dicotomia está mais viva do que nunca e isso não é necessariamente ruim. Durante décadas, a direita andou envergonhada. Agora, não apenas direita e esquerda protagonizam a disputa, mas fazem isso de forma muito aguda, muito acerba, sobretudo porque setores importantes acham que o outro lado sequer deveria existir. Defendem que o outro lado deveria ser banido da face da Terra, se possível ser jogado na ilegalidade. Esse é o cenário mais preocupante, porque vai contra a democracia e contra o próprio liberalismo. E me causa surpresa que alguns se definam como liberais, mas defendam que outros não podem participar da cena política. Quer dizer, são liberais intolerantes.
É um risco para o futuro do País?
É um risco para a democracia. Não me parece que seja um risco iminente de instituições, mas é de se lamentar que haja quem, no embate político, alimente esse tipo de divisão, como se o outro fosse ilegítimo. É muito ruim.
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