No deslumbrante edifício da Sala São Paulo, Arthur Nestrovski abre uma brecha na concorrida agenda para falar com Brasileiros. Em pauta, a febre polivalente de alguém que mescla, na mesma cumbuca, política cultural erudita, composição e execução de música popular e curadoria musical. Os olhos azuis desse gaúcho, descendente de russos, brilham quando começa a falar do mais novo desafio da carreira: a direção artística da OSESP. Que teria deixado orgulhoso o avô Maurício, seu iniciador no gosto pela música clássica ainda menino. Porque Nestrovski diz que se preparou para a OSESP – sem saber – durante toda a vida, reunindo formação musical, literária, acadêmica, editorial e de músico popular. E ao assumir o cargo, em janeiro de 2010, deu um salto no escuro. Ou quase.

Depois de acompanhar de perto o crescimento da orquestra por 12 anos, como crítico musical do jornal Folha de S.Paulo, foi convidado para assumir a vaga que marcaria o início da nova fase da OSESP. Um modelo de gestão que, segundo Nestrovski, é o adotado por 90% das grandes orquestras. Ou como ele mesmo explica: “Quem conta com um maestro do porte de Yan Pascal Tortelier (regente de algumas das principais orquestras do mundo, e que não consegue ficar no Brasil por mais de 10 ou 12 semanas do ano), carece de um gestor que esteja aqui no dia a dia, pensando não apenas nos concertos, mas em outras atividades, como as séries de apresentações de câmara, de música didática, os projetos culturais, as publicações e os programas”.

Nestrovski resume seu objetivo à frente da OSESP: “Fazer com que a orquestra seja reconhecida como uma das melhores do mundo. E que tenha uma presença cada vez mais expressiva e incontornável na cultura brasileira. Sem esquecer aquilo que é: brasileira, de São Paulo”.

Dia a dia
Disciplinado, ele acorda entre 7 e 8 horas da manhã, reservando uma hora (pelo menos) para o estudo diário do violão. Dedicação evidente no elegante CD Chico Violão (Biscoito Fino), onde assume o risco de desnudar 15 músicas de um dos maiores cancioneiros nacionais. Afinal, é quase impossível ouvir Tatuagem ou Iracema Voou só na melodia, sem pensar nas letras que embalaram nossos ouvidos desde sempre. Por isso mesmo, o encarte traz todas elas e uma possível explicação de Nestrovski por sua opção: “Ninguém como Chico leva o legado musical de Tom Jobim adiante”.

E não é apenas o público que aplaude a quase revelação dessas melodias. O próprio Chico Buarque mandou mensagem ao violonista agradecendo a delicadeza e dizendo que “não sabia que era tão bom”!

Em outro lançamento, Pra que Chorar (Tratore), Nestrovski acompanha o cantor Celso Sim ao violão e assina como autor ou coautor de nove das 16 faixas que trazem, além de peças inéditas, versões de alguns Lieder (canções, geralmente arranjadas para piano e cantor) de Schubert e Schumann (compositores românticos do século XIX), e clássicos da música brasileira: Ismael Silva, Cartola, Caymmi, Lupicínio Rodrigues.

O namoro de Nestrovski – formado em Música pela Universidade de York (Inglaterra) e doutor em Literatura e Música pela Universidade de Iowa (EUA) – com os paulistas começou piano e veio em um crescendo. Em 2006, o então professor de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP trocou as salas de aula pelos palcos.

No primeiro show, feito com Zé Miguel Wisnik, em 2004, Nestrovski não vislumbrava o que passaria a ser tão frequente e mudaria o rumo de sua carreira. Logo, estava dividindo palcos com Ná Ozzetti, Luiz Tatit, Zélia Duncan (cantora carioca que se encanta com paulistas), Tom Zé e outros. “Em 2009, fiz quase 60 apresentações, entre aulas-show com Zé Miguel, acompanhados por orquestra, executando músicas minhas e dele, no Teatro São Pedro, em Porto Alegre, e ainda shows em Portugal e na Polônia.”

E a parceria com Wisnik não ficou só na música. Em 2006, fizeram juntos a seleção de textos para a Praça da Língua, do Museu da Língua Portuguesa, espécie de planetário de palavras, com clássicos da prosa e da poesia em sons e imagens.

Na Virada Cultural paulistana, em maio deste ano, o trio Nestrovski, Wisnik e Tatit se apresentou pela primeira vez, no Vale do Anhangabaú, para mostrar canções próprias e parcerias, acompanhados de banda e do cantor Celso Sim. Uma multidão cantou, de cor, canções com letras e melodias extremamente elaboradas.

Paradoxo
Tamanho sucesso seria um sinal de revalorização ou revitalização da música popular brasileira? A resposta de Nestrovski é ponderada: “Quem frequenta o circuito de música popular, sabe que os teatros estão cheios. Onde a gente toca está lotado. Quem não acompanha isso é a mídia. As pessoas estão lá”. Então, é a mídia que está comendo bola? Sem alterar o tom, ele explica: “A mídia, de maneira geral, continua privilegiando e dando a grande parcela de seu espaço, seja reportagem ou o pouco que existe de crítica, para a arte de mercado, a cultura pop”. Para ele, um paradoxo: “As poucas pessoas que ainda leem jornal, em princípio, teriam interesse naquele outro repertório. Mas faz tempo que os chamados cadernos de cultura são apenas de variedades ou entretenimento, voltados para a cultura popular de massa, massa que não lê jornal”.

Seja como for, no show de abertura da IX Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que homenageia o escritor Gilberto Freire, será possível conferir mais uma vez bom gosto musical e a seleção certeira de Nestrovski. Lá estarão o carioca Edu Lobo, a pernambucana Renata Rosa, compositora, rabequeira e cantora de voz sinuosa e cristalina, mais conhecida na Europa que por aqui, e o próprio curador acompanhado por uma banda da pesada: Marcelo Jeneci, Lucas dos Prazeres, Márcio Arantes, Sérgio Reze, Cristina Bastos e o Quarteto de Cordas da Academia da OSESP. Ele explica a mistura: “O sucesso do Brasil – na música e no futebol – vem do caldo de influências com origens branca, negra e indígena. As coisas que mais deram certo aqui, deram certo por causa da mistura”.

O que quer da vida agora? “Tocar. Na medida do possível.”

Repito uma fórmula usada por Clarice Lispector no Jornal do Brasil (e também pelo próprio Nestrovski diante de Wisnik, no Programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo) e pergunto: “Qual é a coisa mais importante da vida?”. Depois do breve silêncio, seguido de um suspiro e um sorriso: “Estar dentro da vida. Por incrível que pareça, a gente tem de lutar para não ficar fora da própria vida e da vida como experiência. Talvez esse seja um ideal”.



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