Querido Fábio,
Meu nome é Jesualda Pereira, sou maranhense e tenho 58 anos. Depois de ter visto um vídeo seu, que anda circulando desde o último domingo na internet, com o protesto que você fez no Brazilian Day em Nova York, confesso que ando bem preocupada contigo e sinto-me à vontade para escrever esse apelo encarecido, porque sou sua fã desde o tempo em que você usava o codinome Mark Davis e eu nem sabia que você era brasileiro.
Peço sua atenção por alguns minutos para eu poder contar um pouco da minha – e da nossa – história. A primeira vez que ouvi você cantar foi há mais de 40 anos, em 1973, no radinho Motorola, vermelho, de pilha, que minha ex-patroa Berenice providenciou para entreter minhas horas vagas noturnas logo que passei a morar na casa dela no Jardim América, bairro nobre aqui de São Paulo, que você deve conhecer.
Eu tinha 16 anos e havia chegado a São Paulo dias antes, recomendada por uma tia minha que trabalhava na casa da irmã de Dona Berenice. Lembro bem daquela noite. Eu estava em meu quartinho, que ficava no fundo da mansão, e passava ferro em minhas poucas peças de roupas, quando depois de um sucesso de Benito Di Paula, começou a tocar sua balada romântica Don’t Let Me Cry. Dois ou três dias depois, fui ao açougue fazer a compra semanal para a patroa e, ao passar por uma banca de jornal, vi seu rosto estampado na capa de uma revista, com o a manchete “Mark Davis: surge um novo ídolo”, impressa em letras amarelas. Por um instante, meu mundo parou. Estremeci diante de sua beleza. Contei os trocados, comprei a revista e, dias depois, com meu primeiro pagamento, fui até uma loja de discos na Praça da Sé somente para comprar um compacto com a música. Eu nem tinha uma vitrola para escutar o disquinho, mas ouvia repetidamente a música no enorme aparelho Gradiente, que ficava na sala de visitas, toda vez que Dona Berenice e a família saia ou viajava. Somente em 1975, você revelou sua verdadeira identidade, adotou o nome artístico Fábio Jr., mas esteja certo de que minha paixão por você começou naquele dia em que ouvi sua voz no rádio e achei que você vivesse em Londres ou em Nova York.
Outro momento nosso que jamais esqueço aconteceu em 1979, quando o Brasil passou a ser presidido pelo general Figueiredo – aquele que amava cavalos e odiava pobres – e você lançou o sucesso Pai. Foi um ano difícil para mim. De janeiro a agosto, eu caia no choro toda vez que ouvia sua música tocar na abertura e no encerramento da novela Pai Herói. Era um choro doído, verdadeiro. Bastava eu ouvir a estrofe “Pode ser que daqui a algum tempo / Haja tempo pra gente ser mais / Muito mais que dois grandes amigos / Pai e filho, talvez” para eu ser tomada por um nó na garganta que invadia o corpo e me fazia pensar no dia em que reencontraria meu pai Lourival, que deixei desconsolado em Alto Alegre do Pindaré. Infelizmente, Fábio, esse dia de reencontro nunca chegou. Dona Berenice nunca permitiu que eu me ausentasse de sua casa por mais de uma semana, eu não tinha direito a férias e meu pai morreu, em 1989, sem que eu pudesse revê-lo ou me despedir.
Trabalhei duramente para a família de Dona Berenice por mais de 15 anos, cuidei de seu filho caçula e de seus dois netos, até que veio o Plano Collor, eles passaram por maus bocados, tiveram de vender casas, carros e fechar pequenos comércios para organizar as finanças e possibilitar a partida de dois filhos para aos Estados Unidos. Por fim, decidiram me demitir, porque havia outras duas empregadas na casa e eu era a mais nova das três.
Sorte minha, Fábio, passei a trabalhar para Dona Iracema, que era professora de Geografia e História e, desde o primeiro dia de trabalho, fez questão de me tratar de forma muito diferente. A começar pelo fato de ela ter me registrado no emprego com todos os direitos previstos pela CLT – coisa que só veio a acontecer para todos os trabalhadores domésticos do Brasil no começo deste ano, você deve saber Fábio.
Mas Dona Iracema fez algo ainda mais importante por mim: ela insistiu para que eu voltasse a estudar. Em menos de dez anos, completei o primário, fiz supletivo do ginásio e ingressei no colegial. No decorrer de tudo isso, fui a vários shows seus, acompanhei seu dia a dia nas revistas de fofoca, seus passeios luxuosos na Ilha de Caras e, ao contrário da maioria das fãs, torci por cada novo casamento seu – e foram muitos, você sabe Fábio. Claro, também fiquei muito emocionada quando soube da reaproximação entre você e sua filha Cléo. Quisera eu ter tido a mesma sorte com meu pai.
Preciso confessar que tenho outro grande ídolo, Fábio. Mas não se preocupe. Ele não chega aos seus pés. É O Jorge Ben Jor. Costumo dizer que você é o ídolo do coração e Jorge o ídolo do corpo. Dona Iracema também morava em casa térrea, bem mais modesta, na Vila Mariana. Quando chegava o sábado, eu adorava lavar o piso do quintal dos fundos ao som do Jorge. W/Brasil, Engenho de Dentro, aqueles sucessos dos anos 1990. Enquanto esfregava as lajotas, cantarolava as músicas dele e bailava com o rodo e a vassoura, como se nem estivesse trabalhando.
Um dia, quando comprei uma caixa de CD’s com discos antigos dele, descobri que Jorge tem uma música que conta a história de uma moça com o mesmo nome que o meu. A Jesualda do Jorge também era muito humilde, vivia em um morro carioca e não tinha a menor perspectiva de uma vida melhor. Um belo dia, ao descer para o asfalto, Jesualda “parou com o morro” e foi salva da vida miserável por um gringo que se casou com ela e a levou para o exterior. Nada contra a escolha da minha xará, mas tenho muito orgulho do caminho que trilhei para transformar minha vida, Fábio.
Depois de alguns anos que havia me formado no colegial, decidi prestar o ENEM e não é que consegui entrar para a faculdade?! Claro, uma universidade privada, mas consegui uma bolsa parcial e financiamento de 30% do curso. Inspirada em Dona Iracema, uma santa para mim, decidi estudar Pedagogia para também poder ajudar a transformar a vida de outras pessoas. Hoje, sou feliz, moro sozinha, tenho um namorado – que, aliás, morre de ciúme de você – e nem penso em aposentadoria. Sou professora e leciono para crianças de 10 a 15 anos.
Voltando ao motivo do meu apelo, depois de ver e rever o vídeo do seu protesto em Nova York, Fábio, juro que senti vontade de ter um encontro contigo para pedir, gentilmente, “senta aqui” e, num papo franco, ser toda ouvidos e carinho para poder entender “o que é que está se passando na sua cabeça”. Sabe Fábio, a oportunidade de ter estudado e as muitas conversas que tive com Dona Iracema abriram minha cabeça e me fizeram conhecer um pouco da história recente do Brasil.
Você deve – ou devia saber – tudo que passamos desde aquele distante ano de 1973, quando você surgiu, como Mark Davis, querendo ser americano enquanto muitos brasileiros morriam sob o comando do temido general Médici. Aliás, Fábio, você deve saber também que estaria morto ou vivendo na clandestinidade se, naqueles dias, tivesse feito o mesmo que fez no último domingo em Nova York, com transmissão ao vivo e em cores.
Você deve – ou devia saber – como foi difícil fazer com que, 21 anos depois, o País fosse redemocratizado ao custo de uma dívida externa gigantesca herdada do fantasioso Milagre Econômico dos anos 1970. Claro, você não passou por isso Fábio, mas comemos o pão que o diabo amassou, dia após dia, até chegarmos à estabilidade econômica e à consolidação das instituições democráticas que, depois, possibilitaram que o Brasil prosperasse e saísse do Mapa da Fome, da condição de Terceiro Mundo para, hoje, ser a 7ª economia do planeta. Você vivia os tempos áureos do “retratista” Jorge Tadeu, na novela Selva de Pedra, mas deve lembrar como o País foi arruinado pelos fracassos de Sarney e seu sucessor, o Caçador de Marajás da Rede Globo, Fernando Collor de Mello. Você deve recordar que o estrago feito por ele foi tamanho que sobrou até para gente graúda como Dona Berenice e sua família.
Ironicamente, Collor está, aí, novamente na berlinda, indiciado na Operação Lava Jato. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que destina 24 horas de seus dias para minar as forças do governo federal, também. No mês passado, Paulo Maluf – que, aliás, tem fama de corrupto desde os tempos em que Pai Herói estava no ar e é um decano no quesito “improbidades decorrentes da exploração do petróleo” com a Paulipetro – foi intimado a devolver quase R$ 130 milhões aos cofres públicos de São Paulo. No final de agosto, o senador tucano Aécio Neves, líder da oposição, também foi acusado de ter recebido dinheiro ilegal em esquema que envolve Furnas, a empresa de economia mista subsidiária da Eletrobras.
No entanto, Fábio, você escolheu como alvos preferenciais do seu protesto desbocado, de argumentos chulos, a presidente Dilma e o presidente Lula. Muito feio bradar – a plenos pulmões e fora de seu próprio País – aquele discurso repleto de desinformação, palavrões e termos de baixo calão que em nada combina com sua aparência de bom moço. É preciso considerar que a corrupção é um mecanismo endêmico do sistema político que vigora no País desde que Collor foi eleito, em 1989. Aliás, chegamos a discutir vagamente essa questão a partir dos protestos de junho de 2013. Mesmo engavetada, em nome de uma polarização doentia, está mais do que evidente de que a reforma política será a única medida capaz de dar ao Brasil um futuro ético e ascendente em todos os sentidos. Mas você viu o que fez, na última semana, a bancada do PSDB no Senado, Fábio? Pois é, curiosamente, os cavaleiros da retidão votaram em bloco contra o fim do financiamento privado de campanhas políticas. Verbas privadas em campanhas são o principal mecanismo da corrupção e, pela primeira vez na história do País, a prática está sendo combatida, novidade que tem resultado na prisão de grandes empresários como Marcelo Odebrecht e Otávio Azevedo, respectivamente ex-presidentes da Odebrecht e da Camargo Correia.
Sabe Fábio, demorei décadas para entender a miséria do Estado em que nasci e há menos de 20 anos, depois que voltei a estudar, fui entender que as mazelas do povo maranhense eram, em grande parte, resultado das sucessivas gestões da família Sarney. Apesar de ser contra uma série de medidas, posicionamentos infelizes e omissões terríveis da presidente, votei em Dilma Rousseff por acreditar que ela representa meus anseios. A vitória foi apertada, mas o voto popular, um dos alicerces da nossa democracia, garantiu o segundo mandato de Dilma. Juro que não dei muita atenção quando, no começo do ano, o senador tucano Aloysio Nunes disse que queria vê-la sangrar. Achei que fosse um gesto destemperado, puro rancor de perdedor. No entanto, Fábio, enquanto escrevo essa carta para você, Aloysio, que desde janeiro deste ano vocifera outras barbáries como suposto bastião da ética, também passou a ser investigado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por financiamento ilegal de campanha, o tal “caixa dois”, que até agora resultou apenas na prisão de tesoureiros do PT, quando, dizem, é prática comum de todos os partidos desde que voltamos à democracia.
Lembro que em 15 de março deste ano, houve o primeiro protesto contra a presidente Dilma. O Paulinho da Força, também exigindo o posto de defensor da ética, colocou três caminhões de som da Força Sindical na Avenida Paulista, um deles apinhado de gente saudosa da ditadura, que pedia a volta dos militares. Ontem, enquanto finalizava essa cartinha, Paulinho também foi destaque na imprensa, com a abertura de processo no STF em que é réu, devido a escândalos de corrupção no BNDES. Ironicamente, Fábio, até o momento nem Dilma, nem Lula tem investigações em andamento.
Não seria melhor, em vez de destilar ódio seletivo, como milhões de brasileiros têm feito desde janeiro, nos unirmos para aperfeiçoar nossa jovem democracia?! Não estou defendendo a canonização de Lula, nem de Dilma. Tenho certeza de que eles não são perfeitos, mas ninguém pode ser condenado sem que haja provas contundentes.
Do fundo do meu coração de fã devota, recomendo que você procure se informar melhor para evitar manifestações desastrosas e deselegantes como essa de domingo. Você viu que até o Sensacionalista fez piada contigo em “matéria” que ganhou o título Michael Jackson não morreu: cantor é visto em protesto contra Dilma em Nova York?. Desnecessário tudo isso, Fábio. Você deve saber, por exemplo, que a mesma tática não tem funcionado para o Lobão e o Roger. Claro, você é bem mais bonito do que eles e nunca teve fama de lobo-mau ou inútil. Longe disso, sempre se portou como um bom moço. E é por isso que temo pelo seu futuro e peço que você reflita.
Respeito quem não votou na presidente Dilma, mas estou há muito tempo esperando que também respeitem meu voto e os dos outros milhões de brasileiros que tiveram sua candidata eleita de forma legítima. Com esse fogo cruzado entre coxinhas gourmet x esquerda caviar, tucanos x petralhas, quem perde somos todos nós, Fábio. Quem perde é o Brasil, que vive ensimesmado em um confronto estúpido, enquanto segue em curso, ao redor do planeta Terra, uma crise mundial.
Estamos em setembro. Nove meses desde que teve início 2015. Já está mais do que na hora do ano nascer, você não acha Fábio?!
Vejo você em seu próximo show.
Beijos e um abraço afetuoso.
P.s.: Caso não conheça, a música do Jorge que leva meu nome está logo abaixo.
Deixe um comentário