Sob a superfície

A curadora norte-americana Carolyn Christov-Barkagiev. Foto: Divulgação
A curadora norte-americana Carolyn Christov-Barkagiev. Foto: Divulgação


A pintura do brasileiro
Cildo Meireles, Projeto de Buraco para Jogar Políticos Desonestos, será um dos trabalhos centrais da 14ª Bienal de Istambul, SALTWATER: A Theory of Thought Forms (Água salgada: Uma Teoria de Formas Pensantes), aberta agora em setembro. “Como estou trabalhando com essa ideia sobre aquilo que está abaixo da superfície, qualquer que seja ela, um iPad ou mesmo um iPod, é uma forma de incorporar essa questão, sobre códigos secretos”, explica a curadora, sobre a pintura de Meireles. Nessa pintura, o artista retrata Brasília como uma pequena cidade, dando mais destaque às camadas abaixo da superfície, porque soube uma vez que a crosta sob a capital brasileira seria menor do que no resto do mundo.

Nas curadorias de Christov-Bakargiev o mais aparente, como na pintura de Meireles, nem sempre é o que interessa, mas uma chave para abordar temas complexos. Em Istambul, assim será com o polêmico tema do genocídio dos armênios na Turquia, ocorrido há 100 anos. Em vez de apresentar obras literais sobre o holocausto, ela vai exibir vasos art noveau do francês Émile Gallé. “Tratar de art nouveau é também uma forma de abordar a questão armênia, pois eles eram os artesãos que faziam moldes para os prédios de Istambul”, disse a curadora.

Em maio passado, enquanto a cantora Alcione relaxava ao lado de uma piscina em um hotel nos Jardins, Christov-Bakargiev contou à ARTE!Brasileiros os conceitos centrais da mostra turca. Responsável pela dOCUMENTA (13) de Kassel, na Alemanha, em 2012, ela segue na Turquia algumas ideias lá desenvolvidas, como o questionamento ao antropocentrismo. Para tanto, além dos objetos art nouveau, ela vai ocupar edifícios no mesmo estilo, projetados pelo italiano Raimondo Tommaso D’Aronco, em Istambul, pois constatou que o movimento do final do século XIX com suas formas orgânicas que criticavam o modernismo é semelhante a questões atuais, como a bioagricultura e a bioarquitetura. “Percebi que o que eu estava fazendo era um art nouveau de hoje, mas só entendi após a dOCUMENTA (13)”, confessou. Leia a seguir trechos da entrevista, que está na íntegra online:

Cildo Meireles, Projeto de Buraco para Jogar Políticos Desonestos, 2011, óleo sobre tela, 240 x 140 cm.  Foto: Divulgação/Galeria Luisa Strina
Cildo Meireles, Projeto de Buraco para Jogar Políticos Desonestos, 2011, óleo sobre tela, 240 x 140 cm.                               Foto: Divulgação/Galeria Luisa Strina

ARTE!Brasileiros — O que a levou a organizar a Bienal de Istambul depois da dOCUMENTA (13)?
Carolyn Christov-Bakargiev – Eu não pretendia mais organizar exposições. Acho que há muitos jovens curadores e que o mundo já teve Carolyn o suficiente. Entrei em um “modo palestras”, falando em vários lugares. Depois de três anos fazendo isso e ainda realizando uma pesquisa no Getty Center, a Bienal me convidou. Eu já estive no comitê, fiquei muito honrada. Queria dar um tempo no mundo da arte, ler, escrever, mas acho que ficar de fora é ser mais narcisista, não menos. Organizar uma exposição é estar a serviço dos artistas, buscar fazer a visão dos outros ser celebrada. Então voltei a essa posição.

Também sou muito próxima de quem trabalho e colaborar com artistas é como codefinir trabalhos. Eles perguntam o que eu acho, dou sugestões, e eu estava sentindo falta disso.

Eu realmente acredito na Bienal de Istambul. Já fui crítica das bienais, achava que havia em todo lugar e elas diziam mais respeito a turismo, mas agora, no mundo em que vivemos, com tantas guerras e tantos conflitos, tantas feiras e leilões, acho que essas mostras temporárias são plataformas que precisam ser protegidas e cuidadas. Elas têm baixo orçamento, em comparação a outros eventos do mundo da arte. É preciso dedicar tempo e vida intelectual para mantê-las e engajar o público.

Na dOCUMENTA (13) você tratou da Alemanha e do Afeganistão. Istambul parece estar no meio de Kassel e Cabul…
Isso é interessante. De fato, algumas questões continuam em Istambul. Em Kassel, tratava-se de uma mostra que participou da reconstrução de uma sociedade, depois da Segunda Guerra, um lugar que foi completamente bombardeado e destruído, ocupado por seus libertadores, assim como ocorria em Cabul, na época em que fiz a dOCUMENTA (13). Cabul era uma sociedade que saía de um regime fascista, o Talebã, uma cidade terrivelmente bombardeada e ocupada por seus libertadores, especialmente norte-americanos, exatamente como ocorreu em Kassel quando Arnold Bode estava trabalhando. Contudo, o Afeganistão é um país muçulmano, bem diferente da Alemanha e também da Turquia, porque a Turquia não é um país islâmico. Ela tem uma maioria islâmica, mas o governo está baseado na distinção entre Estado e religião.

Mas realmente há questões comuns que envolvem essas duas mostras. De certa forma tudo começou com a Guerra do Golfo (1990-1991), uma catástrofe que desmantelou o Iraque e foi uma espécie de Caixa de Pandora.

Muitos trabalhos serão comissionados…
Sim, a maioria dos 80 artistas irá produzir novas obras, é assim que trabalho. Não vou divulgar a lista antes da abertura, mas há uma equação que sempre uso em toda mostra: 1/3 dos artistas é formado por aqueles com quem sempre trabalho, 1/3 é do lugar e 1/3 é de novos.

Depois da dOCUMENTA (13), tenho certeza que vão dizer: ah, ela chamou os mesmos artistas da dOCUMENTA (13). Na verdade, será 1/3, mas não apenas da dOCUMENTA (13), e sim de todas as mostras anteriores. É a minha geração de artistas com os quais sempre trabalho, com os quais partilho muitas questões. Por exemplo, eu leio alguns autores para pensar no desantropocentrismo, enquanto Pierre Huyghe lê outros, mas partilhamos da mesma preocupação.

E artistas brasileiros?
Cildo Meireles vai estar com uma peça muito importante no contexto da mostra,  Projeto de Buraco para Jogar Políticos Desonestos (2011), porque é uma ótima plataforma para tratar do que está abaixo da superfície, e ele expôs essa pintura apenas duas vezes. Como estou trabalhando com essa ideia sobre aquilo que está abaixo da superfície, qualquer que seja ela, um iPad ou mesmo um iPod, é uma forma de incorporar essa questão, sobre código secretos. Há apenas um trabalho dele, mas é uma peça central na mostra. Digamos que ela estará no cérebro da exposição.

Do modo como você fez em Kassel?
Exatamente, ela está entre as peças-chave da Bienal, de todo o conceito. Desta vez, contudo, não vou chamar de cérebro, mas vou reunir algumas peças históricas que questionam o antropocentrismo, abordam o orgânico, o que, afinal, é uma espécie de continuidade de Kassel.

O que percebi é que meu interesse por bioagricultura e bioarquitetura, como isso se desenvolve no final do século XX e começo do século XXI, tem uma rejeição semelhante a uma forma de modernismo e classicismo que ocorreu no final do século XIX, quando o estilo art nouveau se desenvolveu, com suas formas orgânicas, como ondas. O art nouveau ocorreu contra a arquitetura clássica do século XIX e se desenvolveu simultaneamente ao pensamento de Nietzsche, Bergson. Percebi que o que eu estava fazendo era um art nouveau de hoje, mas só entendi após a dOCUMENTA (13).

Agora, eu apresento art nouveau na Bienal em lindas peças de Émile Gallé (1846-1904), que era um anarquista! Os artistas do art nouveau eram 0contra o poder, contra a burguesia, contra o art déco.

Adahan Hotel , antiga mansão de uma proeminente família judaica e hoje um dos espaços expositivos da bienal de istambul. Foto: Divulgação
Adahan Hotel , antiga mansão de uma proeminente família judaica e hoje um dos espaços expositivos da bienal de Istambul. Foto: Divulgação

E ele também produziu em Istambul?
O Émile Gallé não, mas toda a cidade foi reconstruída pelo arquiteto italiano Raimondo  Tommaso D’Aronco (1857-1932), que foi convidado pelo sultão para construir o pavilhão para a Feira Internacional de Agricultura, em 1894, que acabou nunca acontecendo por conta de um terremoto, e D’Aronco acabou vivendo em Istambul por 16 anos, reconstruindo toda a cidade. Há muitos prédios dele, assim como de arquitetos armênios. Aliás, há muito prédios construídos na cidade por armênios, que depois foram decapitados! Tratar de art nouveau é também uma forma de abordar a questão armênia, pois eles eram os artesãos que faziam moldes para os prédios de Istambul.

Em cidades como Paris ou Barcelona, o art -nouveau não era de fato considerado, mas construído em periferias, diferentemente de Istambul, que atualmente vejo como a bioarquitetura que é contra os prédios de Frank Gehry.

Émile Gallé (1846-1904), vaso Mante Religieuse et Hanneton (Louva-Deus e Besouro), vidro transparente e esmalte. Foto: Divulagação
Émile Gallé (1846-1904), vaso Mante Religieuse et Hanneton (Louva-Deus e Besouro), vidro transparente e esmalte. Foto: Divulagação

E quais lugares você vai usar?
Vou usar, pela primeira vez,  o museu Istanbul Modern, além de Arter, e outros dois  espaços de arte, mas no total serão 30 locais. A maioria não são lugares convencionais e vão ser usados como ondas, do Mar Negro ao Mar de Mármara. Portanto, para visitar a mostra, será necessário usar barcos, e não táxis, por três dias.

E o nome SaltWater?
SaltWater é nome aberto, porque tem vários significados. A água salgada absorveu o corpo dos escravos, porque os corpos dos escravos que atravessaram o Atlântico substituíram as baleias desse oceano, já que um em cada dez morreu durante a travessia, enquanto houve um empobrecimento do oceano por conta das ca-ças às baleias para a captura de óleo. É uma história muito triste que será abordada em uma obra de Ellen Gallagher.

14ª Bienal de Istambul
De 5 de setembro a 1° de novembro
biennialfoundation.org


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