Mergulho no primitivo para ousar na modernidade

Quase nenhum movimento de arte do século XX escapou da influência da arte primitiva. Grande parte do estrelado elenco da Escola de Paris bebeu diretamente na fonte, sem nunca ter colocado os pés na África, Ásia, Oceania ou Américas. O Surrealismo, e o Expressionismo mergulharam na chamada arte “primeira”, para renovar seu discurso visual com valores e formas diferenciadas.

Muitos dos grandes mestres da pintura e da escultura reinterpretaram traços de artistas anônimos, tribais, de etnias perdidas, especialmente da África iletrada e atrasada social e intelectualmente, segundo os padrões culturais do eurocentrismo vigente. O que se pode dizer do conceito de arte “primitiva”, utilizado desde o início do século XX, como abrigo semântico, que engloba desde pinturas pré-históricas a peças criadas pelo homem comum sem instrução artística?

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O termo naïf é mais recorrente nos discursos dos galeristas que comercializam pinturas coloridas, realistas, marcadas pela espontaneidade de um figurativismo livre dos dogmas da composição e da perspectiva. No Brasil, Heitor dos Prazeres e José Antônio da Silva, já na década de 1950, abriram o caminho para uma comunidade muito ativa que se firmou nas duas décadas seguintes.

O divisor das águas no embate entre primitivos e eruditos é o MoMA, que, em 1984, idealizou a exposição Primitivism in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern. Inteligente e essencial, a intensa pesquisa teve como curador William Rubin que contou com uma equipe de especialistas em arte primitiva para reunir peças raras em museus etnográficos europeus, em galerias especializadas e em coleções particulares de vários países. Com uma montagem instigante, colocou lado a lado obras de mestres ocidentais modernos, como Picasso, Giacometti, Brancusi e Henry Moore, com peças museológicas da Guiné, Oceania e América. Um dos objetivos era mostrar a semelhança das formas entre as obras de períodos tão distantes entre si. O resultado foi muito além e colocou em xeque, mesmo fora dos domínios do MoMA, o caráter político e moral das obras celebradas pelo mercado internacional desses intocáveis mestres contemporâneos. Uma das críticas foi a excessiva ênfase dada às afinidades formais, que evidenciavam as desigualdades culturais e sociais. E também o fato de que os artistas ocidentais eram mostrados geniais, por terem descoberto e recriado primitivos anônimos e atemporais.

O que se levantou é que a ausência de uma iconografia ou de publicações acessíveis a esses objetos permitiu que fossem apropriados por uma comunidade artística sem qualquer tipo de questionamento. Grande parte deles colecionou raridades que mantinham em seus ateliês. A tensão provocada era decorrente do fato de não haver discussão quanto ao poder de propriedade intelectual dessa arte “primitiva”. Segundo o crítico americano Gill Perry, o exótico foi recriado por eles, de acordo com os pressupostos e práticas ocidentais da época – e, portanto, sob a égide da política colonial europeia.

Ao se observar algumas obras de Emil Nolde, Paul Gauguin, Henry Moore, Paul Klee, Henri Matisse, Marc Chagall, Max Ernst, Joan Miró, Amedeo Modigliani, Pablo Picasso, entre muitos outros, não se pode deixar de refletir sobre o que seriam das artes plásticas, nos anos 1950, sem essa investida na arte primitiva.

Depois da iniciativa do MoMA, foi a vez dos franceses mergulharem fundo nas questões, organizando uma mostra que foi uma espécie de resposta à exposição americana. O Beaubourg de Paris organizou a Les Magiciens de la Terre, em 1989, que se estendeu, na mesma capital, até o Grande Halle de La Villette. O curador Jean-Hubert Martin reuniu centenas de obras, levando em consideração a produção periférica do circuito de arte e, consequentemente, a arte primitiva. O crítico francês refletiu sobre o significado dos objetos na passagem de uma cultura a outra e sobre a comprovação de que existe autoria artística “primitiva”.

Política e cultura sempre renderam dividendos aos políticos de qualquer país. O escritor e intelectual André Malraux, ex-ministro da cultura da França, responsável pelo avanço da política cultural daquele país, na década de 1960, mantinha o bordão de que era preciso considerar “as artes primordiais”. Com esse mesmo refrão, o ex-prefeito de Paris, Jacques Chirac, também deixou marca ao criar o Museu do Quai Branly, que reúne peças importantes de vários períodos e de alto valor antropológico e etnográfico.

Ao entrar no museu ou em qualquer uma dessas exposições, pode-se imaginar a avidez desses artistas sobre a produção da África, Ásia, Oceania e da América que eram autênticos reservatórios de formas e valores inovadores. Há pontos em comum que chamam a atenção dessa produção “pirata” europeia. Em primeiro lugar, eles tomaram o elemento primitivo como escudo da modernidade e da filiação às formas autênticas e radicais. Depois se apropriaram do que eles consideravam “exótico” para recriar uma arte com as práticas ocidentais da época – e, como ressaltou Gill Perry, construindo uma arte, “sob a égide da política colonial europeia”.

Na verdade, a ausência de uma iconografia acessível desses objetos permitiu que eles fossem facilmente absorvidos por uma cultura artística moderna. Essa descontextualização fez com que os artistas modernos fossem acusados de responder de modo etnocentrista à arte africana e da Oceania, atribuindo a suas aparências sentidos ocidentais do século XX.


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