Quando a psicóloga Ianni Scarcelli colocou seu único filho no mundo, Gabriel, em junho de 1987, o escritor tcheco Franz Kafka – que, 28 anos depois, daria sentido, rumo e nome ao maior dilema da sua relação materna – era apenas um escritor esquecido na estante da casa onde morava com o pai do menino, Rui Rogério Barbosa. Seja a partir da traumática experiência de Gregor Samsa, o caixeiro que se vê transformado abruptamente em um inseto em uma manhã, descrito em Metamorfose, de 1915, ou a partir de Josef K., um bancário que, também no início de um dia qualquer, é levado pela polícia acusado de um crime que desconhece, personagem de O Processo, de 1920, é possível encontrar – na história de Ianni, Rui e Gabriel – traços do que Kafka entendeu, no início do século 20, como ficção de qualidade para seus livros.
Para ser sucinto tal como Kafka seria: Gabriel Scarcelli Barbosa, hoje com 28 anos, está preso no quarto pavilhão do Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, na margem de uma das quatro pistas da intersecção entre as marginais Pinheiros e Tietê, há exatos 89 dias. Ele foi acusado de participar de três assaltos à mão armada e do consequente roubo de três automóveis – sendo que, em um deles, ele está praticamente absolvido por causa da contradição das vítimas nos testemunhos – em julho e setembro de 2013, respectivamente, na região da Vila Mariana, na zona sul, perto do apartamento onde mora com sua mãe – hoje professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Na audiência de um dos processos, a promotora pediu absolvição de Gabriel por falta de provas. O outro, que o levou à primeira prisão preventiva, teve o pedido de habeas corpus concedido por unanimidade dos desembargadores que o julgaram. Mas antes que pudesse ser liberado, uma nova prisão preventiva foi decretada no mesmo dia por causa de um terceiro processo. Este, que agora corre na Justiça Estadual, teve uma liminar em pedido de habeas corpus negada depois de 44 dias de análise pelo relator do Tribunal de Justiça, um abaixo-assinado entregue aos desembargadores e centenas de manifestações de pessoas de diversas áreas, como o secretário municipal de Direitos Humanos, Eduardo Suplicy, que pediu por carta a um dos juristas envolvidos no caso para analisar o caso levando em conta fatores técnicos.
Para além dos fatores formais, a prisão de Gabriel transbordou outras complexidades na vida dele e da família: pai de Guilherme, que faz um ano neste sábado (19), ele viu o filho por cinco vezes desde que foi encarcerado – sempre rodeado pelas muralhas descascadas do CDP de Pinheiros IV. A primeira visita que recebeu de Ianni na cadeia aconteceu mais de um mês depois que foi preso, resultado de um castigo coletivo que puniu todos os outros 867 detentos do complexo penitenciário durante os meses de julho e agosto. Quando enfim pôde reencontrar o filho, Gabriel estava alguns quilos mais magro e com um aspecto triste, apesar de amparado pelos colegas que fez na cela. “É incrível como ele, mesmo passando por situações violentas e injustas como esta, consegue se manter sereno. Ele sequer se revoltou com a situação”, conta Ianni. “Fiquei tocada com a fala de um dos detentos que me disse que ele tem bom coração e que todos sabem da sua inocência. E ainda me aconselhou a procurar provas que pudessem tirá-lo de lá”, completa.
O detento em questão não sabia, mas concluiu, por meio de sua perplexidade subjetiva diante de um companheiro de cela, um processo longo, complexo e, como Ianni se acostumou a chamar, kafkiano.
Tudo começou em uma manhã qualquer de setembro de 2013: o delegado Kleber Massayoshi Isshiky, da Delegacia de Repressão a Crimes contra o Patrimônio da União da Polícia Federal em São Paulo, foi buscar seu automóvel em uma oficina mecânica na Vila Mariana no mesmo momento em que três homens haviam planejado entrar armados para roubarem o caixa do estabelecimento. O servidor e outras três pessoas tiveram subtraídos pertences como relógios, dinheiro e os celulares. Um deles, um aparelho funcional da Polícia Federal, foi levado pelos bandidos – que provavelmente não notaram a amplitude do objeto que estavam levando. Um Inquérito Policial Federal foi aberto para investigar o roubo do celular – propriedade da União -, sob os cuidados do delegado Vladimir Schinkarew, que encarregou outro colega de apurar o caso, mas, dias depois determinou que a investigação fosse, na verdade, conduzida pelo próprio Massayoshi, a vítima do assalto.
Dois dos três assaltantes foram indiciados mais de um ano depois, em outubro do ano passado, depois de uma longa operação conduzida pela equipe de Massayoshi. Assim, paralelo a isso, ele passou a investigar uma suposta quadrilha especializada em roubar veículos na Vila Mariana, da qual os três rapazes teriam ligações.
As versões, a partir daqui, divergem: segundo Ianni, o delegado, aparentemente inconformado com o roubo de seu celular, ao identificar dois dos possíveis autores do crime em filme registrado nas câmeras da oficina, buscou identificar a rede de relações dos suspeitos com intuito de punir a todos. Fez isso, principalmente, a partir da escuta de ligações telefônicas e de perfis no Facebook. Após listar vários rapazes, a maioria da comunidade em que moram os dois suspeitos identificados com o roubo, levantou Boletins de Ocorrência registrados nos distritos próximos à região do roubo, entre eles o 6º e o 36º Distritos Policiais. Associou as características descritas pelas vítimas às fotos colhidas nas redes sociais daqueles que começaram a ser identificados como suspeitos dos delitos. Gabriel, que tem amigos na comunidade próxima ao local onde moram ele e sua mãe, tinha fotos postadas com vários desses rapazes listados.
“Mais de um ano depois do roubo na oficina, no final de 2014, e na condição omitida de vítima, o delegado solicita decretação da prisão temporária dos rapazes que investigava. Para prendê-los, lidera uma operação com a utilização de muitos aparatos e dezenas de policiais da Polícia Federal na Mario Cardim. Nesse mesmo dia e horário, ele próprio vai à nossa residência acompanhada de outros policiais federais para também prender Gabriel, mas não o encontrou. Cerca de uma semana depois, a Justiça Federal declara sua incompetência para processar e julgar as ações penais relacionadas aos supostos crimes levantados por ele. Além disso, foram expedidos contramandados de prisão a favor de todos os acusados. Mas, não satisfeito com a decisão da Justiça Federal, por sua própria conta, o delegado busca conseguir um mandado de prisão provisória contra Gabriel. Sei de pelo menos um que foi negado. Até que conseguiu isso com uma juíza da Justiça Estadual. Foi assim que prendeu Gabriel, que nunca teve passagem pela polícia, baseando-se em precários reconhecimentos fotográficos realizados cerca de sete meses após os roubos dos carros e presencial dois anos após o ocorrido. No reconhecimento na sede da PF, Gabriel com suas vestes de cadeia foi colocado entre dois homens bem vestidos e diferentes de seu biotipo”, disse a professora.
O delegado, no entanto, relata versão distinta à Brasileiros. Segundo ele, a investigação do roubo do celular funcional se baseou no rastreamento dos outros aparelhos roubados no dia do assalto e em descobrir quem os estava usando. O processo levou a polícia a um grupo que roubava carros e, ao mesmo tempo, vivia no bairro. Desta forma, chegou-se a Gabriel e aos outros supostos assaltantes. “Assim, a identificação dos suspeitos pela polícia não foi realizada pelo Facebook, como veiculado na imprensa”, diz Kleber Massayoshi. “Verificando-se a existência de outras vítimas de outros roubos de veículos, elas foram intimadas para prestar informações e consultar cadernos com fotografias nos quais há fotografias de diversas pessoas, inclusive daquelas pessoas apontadas na investigação como suspeitas do crime, com o fim de se identificar os autores dos crimes”, completa ele. Mesmo na versão do delegado, portanto, o fato de Gabriel Scarcelli estar nas fotografias ao lado dos acusados na rede social colaborou no processo que o levou à cadeia.
Sobre o reconhecimento, o delegado também conta outro fato: “No reconhecimento pessoal, são colocadas lado a lado pessoas com características físicas semelhantes e a vítima fica em local apartado e não visível aos que estão sendo objeto do reconhecimento. Há orientação de que somente seja positivado o reconhecimento quando houver certeza”, disse.
MÁRIO CARDIM
A Rua Doutor Mário Cardim, na Vila Mariana, é uma daquelas estranhas ligações entre classes sociais existentes em grandes cidades como São Paulo. Antes do encontro das ruas Tangará e Gandavo, na altura do número 340, há mansões cercadas por serpentinas eletrificadas, condomínios tão protegidos quanto e até algumas casas antigas que, por algum motivo, insistem em manter os portões pequenos de uma época em que as pessoas privilegiavam o charme das residências à segurança. Da rua Napoleão de Barros, em diante, no número 270, no entanto, Kombis modificadas para o transporte de aparas de papelão, casas expondo os vermelhos tijolos baianos e pequenas vielas que se perdem na primeira visão colocam-nos em uma realidade social distinta da encontrada dois quarteirões antes.
Do apartamento atual de Ianni, na Chácara Klabin até a comunidade, são 20 minutos a pé, reduzidos a sete em algum veículo motorizado por meio da conhecida rua Sena Madureira. Provavelmente por ela é que Gabriel construiu a sua ponte particular entre a casa da mãe, entre os mais abastados da Vila Mariana, e a namorada na Mário Cardim, quando ainda entrava na casa dos 20 anos. O relacionamento terminou cerca de quatro anos depois, insuficiente para cortar os laços de amizade que fizera na comunidade.
Assim como a Rua Doutor Mário Cardim, Gabriel Scarcelli também tem uma história estranha para uma sociedade acostumada a diferenciar seres humanos por riquezas e experiências materiais. Seu pai, Rui, é engenheiro da General Motors, no Brasil e a mãe, professora da USP, profissões que concederam estabilidade financeira. Quando criança, ele viajou com os pais para destinos no exterior, como Vietnã e Nepal, além de ter estudado no colégio católico Madre Cabrini, Até os 18 anos, Gabriel viveu, basicamente, uma vida comum de uma família da classe média paulistana.
“Quando estava no colégio, o melhor amigo dele morava na Cidade Tiradentes. Quando ele tinha uns 14 anos, resolveu ir lá com esse menino sem me contar. Quando voltou me disse: ‘Gostei demais daquele lugar, mãe. As pessoas dividem tudo, mesmo o que não tem. Todo mundo dá bom dia, boa tarde…’”, relembra Ianni.
Quando foi preso, em junho, Gabriel estava na Pizzaria 1900, nos Jardins, onde trabalhava à noite como entregador há seis anos. Segundo a professora, ele já tinha contratado um advogado para apresentar a sua defesa quando os roubos que foram lhe atribuídos se tornassem inquérito na delegacia onde foi registrado o boletim de ocorrência. O rapaz foi surpreendido em um domingo à noite pelo delegado – vestido à paisana – que o levou à sede da Polícia Federal na Barra Funda.
Ianni visitou Gabriel quatro vezes na prisão desde junho e, em cada uma, mergulhou em uma realidade antes restrita aos métodos de pesquisa da psicologia. Sua linha de estudos foca-se na compreensão do funcionamento de manicômios, aparelhos que, de certa forma, se assemelham às cadeias. Em 1998 concluiu o mestrado com a dissertação intitulada “O movimento antimanicomial e a rede substitutiva de Saúde Mental: a experiência do município de São Paulo”. Naquele mesmo ano iniciou a tese de doutorado, concluída em 2002, com o título “Entre o hospício e a cidade: exclusão/inclusão social no campo da saúde mental”. A conversa entra, inevitavelmente, no cunho epistemológico. Até onde a ciência pode se aprofundar no que entendemos por realidade? É ela o mecanismo mais profundo ou o lado mais complexo de compreensão de todas as coisas? Os fatores sentimentais – as conversas com as famílias dos presos nos dias de visita, a revista minuciosa e invasiva pela qual passam as mulheres, a complexidade burocrática para entregar a comida nos dias do jumbo, a situação física do prédio do CDP de Pinheiros, a dignidade humana colocada em qualquer outro plano quando se joga 40 pessoas em celas sujas e compactas – também revelam caminhos para se alcançar alguma realidade. A professora, enfim, sabe que sairá desse processo impactada pessoal e profissionalmente, assim como Gregor Samsa, Josef K e Gabriel Scarcelli.
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