Três momentos do crime em três tomadas

A história recente do crime no Brasil, vista a partir dos anos 1950, é prato cheio para complexos estudos e longas discussões sociológicas. Mas, mesmo aos olhos de qualquer cidadão comum, pode sugerir três fases distintas, definidas aqui como romântica, organizada e profissional. Curiosamente, três produções cinematográficas recentes captam esses momentos e revelam a evolução estrutural e o recrudescimento da criminalidade no País.

Memórias da Boca do Lixo
A primeira fase, ainda romântica, remete aos anos 1950 e 1960. Tempos de criminosos míticos no imaginário popular e inspiração para personagens na ficção de Nelson Rodrigues ou nas crônicas de Ramão Gomes Portão. Uma marginalidade com códigos de conduta específicos. Tempos de poucas armas de fogo em circulação, em que qualquer desafeto ou acerto de contas dependia da ginga no manejo da navalha. Esse universo, povoado por bicheiros, prostitutas, gigolôs, golpistas e boêmios, ganhou na figura do malandro carioca sua expressão máxima. No entanto, foi um paranaense, radicado em São Paulo, o responsável por criar um dos mais fiéis retratos da criminalidade de sua época. Seu nome? Hirohito Moraes Joanides, o Rei da Boca do Lixo.

Hirohito vinha de um núcleo familiar abastado. Universitário, noivo, amante de Steinbeck, Baudelaire e Heidegger, mas também dos prazeres carnais, era para a Boca do Lixo que rumava à caça de volúpia. A região, delimitada pelas avenidas Duque de Caxias e São João e as ruas dos Timbiras e dos Protestantes, tornou-se polo aglutinador de prostitutas quando, em 1953, foram extintas as chamadas “zonas de meretrício”, que confinavam a prostituição no bairro do Bom Retiro. Era nas profissionais do sexo que os desajustados sociais encontravam o mínimo de consolo afetivo e foi para essa região que rumou também o restante da fauna marginal da cidade.
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A vida de Hirohito sofre um revés quando o pai é encontrado morto, a golpes de canivete. Principal acusado, ele negou sua participação no crime. Tempos depois, com a prisão dos verdadeiros autores, sua inocência ficaria comprovada, mas, embora absolvido, a exploração dada ao caso pela mídia fez com que a fama de parricida o expulsasse do convívio social. Evitado por familiares e amigos, foi nos habitantes da Boca que encontrou refúgio. A aceitação no meio incluía o envolvimento em delitos, como furtos, assaltos e cafetinagem. Nos anos seguintes, ele se transformaria em uma estrela da crônica policial. Chegou a ser detido 170 vezes, e a ficha corrida lhe valeu 17 anos de prisão, nos quais se dedicou a escrever sua autobiografia. Lançado em 1977, Boca do Lixo se esgotou rapidamente. Reeditado em 2003, o livro ganha agora uma adaptação para o cinema nas mãos do cineasta Flávio Frederico. As filmagens foram feitas em São Paulo e no centro histórico de Santos. No papel do Rei da Boca, Daniel de Oliveira de Cazuza – O Tempo não Para e A Festa da Menina Morta. Para a personagem que corresponde a Zenaide (alguns nomes foram alterados por razões legais), amante de Hirohito, foi escalada Hermila Guedes de O Céu de Suely. No elenco estão ainda Leandra Leal e Paulo César Pereio.

Organizando para desorganizar
Também protagonizado por Daniel de Oliveira e com base em uma autobiografia – a de William da Silva Lima, um dos fundadores do Comando Vermelho -, estreia em 6 de agosto, 400 contra 1, filme de Caco Souza. Tendo como subtítulo Uma História do Crime Organizado, a produção é representativa da fase de organização do crime no País. Estamos no Rio de Janeiro, em 1974, em plena ditadura militar quando, tanto presos políticos quanto assaltantes de banco comuns, eram enquadrados na Lei de Segurança Nacional e cumpriam pena no Presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande. William fazia parte da massa carcerária e assistiu à chegada dos presos políticos. Foi um dos primeiros a perceber a solidariedade entre eles e a se dar conta de que juntos e organizados – ele e seus companheiros – poderiam obter melhores resultados de tratamento humanitário.

Contrariando a tese, de que os “comunistas” teriam ensinado técnicas de guerrilha aos criminosos, o depoimento de William deixa claro que a única colaboração foi a de abrir suas mentes para o conceito de coletividade. Logo, começaram a se organizar em falanges internas – a organização, no início, era conhecida por Falange Vermelha – e, os que saíam, a promover a organização externa. No início da década de 1980, o CV já infernizava a vida da Polícia Militar carioca, promovendo assaltos e fugas espetaculares. A tomada dos morros e o domínio do tráfico de drogas são as etapas seguintes. O título, 400 contra 1, remete ao cerco realizado por 400 policiais para capturar um único fugitivo, Zé Bigode, amigo de William e também um dos fundadores da organização. Bigode resistiu por 12 horas, sendo morto pelos policiais ao final do confronto.

Planejamento empresarial
Se em meados dos anos 1990 a organização do crime era uma realidade, e tornaram-se frequentes sequestros de empresários, orquestrados por um verdadeiro serviço de inteligência, na década seguinte entraria em fase de alto profissionalismo. Em 2005, o País ficou chocado com uma notícia vinda do Ceará. Cerca de R$ 170 milhões haviam sido roubados do Banco Central de Fortaleza. O assalto entrava para a história como o maior já realizado no Brasil e o segundo maior do mundo. Mas, o que mais chamava a atenção, era a ousadia dos criminosos que promoveram uma ação digna do cinema. Com tempo, paciência e o suporte de um engenheiro, os assaltantes alugaram uma casa nas proximidades do banco e começaram a escavar um túnel de 78 m, forrado com lonas, luz elétrica e sistema de ar condicionado. Ao chegar ao cofre, ainda tiveram de perfurar um piso de mais de um metro de concreto maciço.

O evento serviu de inspiração para o roteiro do filme Assalto ao Banco Central, que marca a estreia do ator e diretor de novelas, Marcos Paulo, na direção cinematográfica. Ainda em fase de produção, as filmagens começaram no início deste ano, no Rio de Janeiro. A estreia está prevista para 2011. No elenco estão Lima Duarte, Giulia Gam, Hermila Guedes e Vinícius de Oliveira.

Educação, câmera, ação!


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