Eis que o livro surge como atitude mimética da ordem do corpo e das cidades.
Do corpo humano, tomam-se de empréstimo as partes elementares de uma anatomia complexa: cabeça, pé, frente, costas… Mas também o dorso que convida, a pele que ativa o tato e o olho que demarca o título. No fluxo aparentemente desordenado da tinta – apenas aparente, note-se, pois tudo no livro obedece a um imperativo –, letras e grifos fazem escorrer palavras e pensamentos que afloram nos poros, no gesto e no diálogo que se cria nesse corpo a corpo a que chamamos leitura.
O livro é uma obra de arquitetura modelar. A peça guarda entre duas capas toda a verdade do mundo. Mas também as maiores mentiras, crenças, decepções, vitórias e derrotas acumuladas e imaginadas pela humanidade. Não há, enfim, temática ou gênero literário que não caiba em sua superfície.
O livro é um gesto urbano. E de urbanidade. Desde a Renascença convencionou-se que o leitor era convidado a adentrar no livro por um grande portal, ou portada – ancestral da singela folha de rosto. E os portais eram tão eloquentes quanto a arquitetura das cidades vibrantes do Velho Continente.
Há no gesto tipográfico o sentido da urbanística. A mancha urbana e a mancha tipográfica se constroem a partir do mesmo confronto entre o branco e o preto. Entre o vazio e o cheio. Entre o espaço acometido pelo sulco violento do tipo e aquele que se guarda imaculado, onde a luz repousa e os olhos descansam.
E se os livros são cidades que se encerram entre duas capas, não seriam também as cidades grandes livros abertos para a escrita dos povos? Assim como os livros, as cidades se submetem ao ato da escrita. Os signos urbanos antecipam e cristalizam as leis que regem a tipografia. Ambos se dobram a uma mesma ação, filiada a uma única raiz etimológica, do latim scribre. Nas palavras do Houaiss, “marcar com o estilo (ponteiro ou haste de metal), traçar uma linha, assinalar, gravar, marcar com cunho, desenhar, representar em caracteres, fazer letras”… numa palavra: escrever.
Gravar, marcar com o cunho, fazer sulcos. As escritas monumentais constituem um gesto urbano e de integração social cuja herança e significados sobrevivem nas sociedades contemporâneas. Fazer sulcos na cidade, como faziam os antigos; marcar a cidade, como o faz o tipo sobre o papel; sulcar o concreto, como quem “machuca” uma matriz xilográfica; tirar da secura do concreto sua luz, dobrar-se às suas sombras e encher de cores a matéria bruta e enegrecida das grandes cidades, tudo isso constitui uma atitude urbana. Fazer da cidade um livro-concreto se torna, portanto, um gesto público. Arte pública.
Maria faz tudo isso. Em suas mãos, a superfície ganha volumes, sulcos, sombras, luzes e cores. Seus livros são monumentais, pois seus leitores transitam nas grandes cidades. Maria faz livros para as massas. O que Maria faz? Maria Bonomi tira da matéria o que lhe resta de inefável.
*Professora da Universidade de São Paulo. Autora de O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (São Paulo: Edusp, Fapesp, 2011, 448 páginas). Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Biblioteca Nacional, 2011; Prêmio Jabuti, 2012; e Edições e Revoluções – Leituras Comunistas no Brasil e na França (Cotia: Ateliê Editorial, 2013, 334 páginas). Para ler mais, entre na página http://bibliomania-divercidades.blogspot.com.br/
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