Rouxinol
Rouxinol era o apelido do andarilho da Avenida Atlântica. Não se sabe quem deu. Mas cabia-lhe bem, pois o homem cantava a todo pulmão: “Oh, minha amada que olhos os teus. São cais noturnos cheios de adeus”. E repetia, sem parar. Como se ele não soubesse a continuação, ou só aqueles versos o interessassem. Roupa surrada. Pode ter sido creme, um dia. Barba cerrada e crescida – para esconder a pinta feia no lábio superior? Chapéu sebento ocultava os cabelos sujos amarrados com elástico. Costumava sentar junto à estátua do Posto 6 e se punha a ler para o poeta. À noite, sumia. O que fazia crer que ele tivesse família nas redondezas. Muitas vezes, foi visto aplaudindo outro mendigo que fazia enormes discursos na Almirante Gonçalves; em outras, abraçando uma boneca encontrada no lixo.

Ontem, saiu nos jornais: o médico Oswaldo de Souza Faria (85 anos), que sofria de amnésias temporárias, foi encontrado em Copacabana, em estado de desnutrição e demência. A filha e o genro, moradores de Niterói, disseram que ele saíra de casa, com a roupa do corpo e que o procuraram nas delegacias, nos hospitais, nas prisões. Oswaldo de Souza Faria foi internado na Santa Casa da Misericórdia, onde é um de seus maiores beneméritos. Passa bem. Talvez continue a canção: “São docas mansas trilhando luzes que brilham longe, longe dos breus”.

Até a próxima fuga.

Eutanásia
Fabiano precisava emagrecer, pois nos últimos anos engordou mais de cinquenta quilos. Decidira fazer uma operação no estômago. Faltava escolher uma das possibilidades, quando um amigo recomendou um pai de santo, guru, paranormal, sensorial, transmissor de energia vital, sei lá o quê.

Fabiano hesitou, a namorada deu força, a mãe disse que não custava tentar, a vizinha argumentou que se não desse certo, pelo menos ele não ia para hospital nem gastava uma fortuna.

Finalmente, ele foi procurar o terapeuta informal, que fez uma cirurgia imaginária. Em trinta dias ele perdeu vinte quilos. Depois, não parou mais. Ficou magérrimo. Não adiantava comer para parar de perder peso. Emagrecia a olhos vistos. E, o que era pior, perdia massa muscular, já não conseguia ficar em pé. Médicos foram chamados para interromper aquele processo devorador das forças de Fabiano. Sem sucesso. Além de esquálido, ele diminuía de altura.

– Parece um menino de dez anos – ouviu alguém dizer.

A mãe chorava, a namorada moveu ação contra o paranormal, que se mudara de cidade.

Manhã dessas, elas procuraram Fabiano na cama, na casa, na rua. Ele simplesmente evaporou. Vestígios? Manchas de esperma do lençol.

Idade
– Que dia é hoje?

– Quinta-feira.

– Ah, sei.

Duas horas depois.
– Onde nós estamos, filha?

– No Rio de Janeiro.

– Engraçado, parece que já vivi essa cena antes.

– Claro. Todos os dias nós almoçamos aqui na sala.

– Que dia é hoje?

– De novo, papai?

– Não lembro.

– Quinta-feira.

– Ah, sei.

Ele vai repetir a pergunta mais umas três vezes.
– Você precisa tirar esses retratos daí.

– Por quê?

– Ué. Porque sim.

– Sou eu que estou neles.

– Você?

– Sou eu, sim. Por que você quer me mandar embora, pai?

Ele olha, balança a cabeça, pede desculpa.

Agora deu para isso.

Revelação
Foi assim. Se ela não pediu para nascer, tinha todo o direito de saber como era o pai. Procurou o número numa lista telefônica. “Dr. Almeida, por favor”, ela pediu. “Meu nome é Leila. Tenho 35 anos. Minha mãe foi namorada do Dr. Almeida. Preciso falar com ele” – disse rápido para não desistir. Rita, sem que realmente soubesse a razão, resolveu marcar um encontro com a moça, naquela tarde mesmo. Quando Leila entrou no apartamento, Rita se surpreendeu com a semelhança familiar. Só podia ser sua sobrinha. Nenhuma dúvida. Telefonou para o irmão: que viesse imediatamente. Assunto da maior importância. Nem os filhos dele eram tão parecidos. Almeida chegou, preocupado. “Esta é a Leila” – Rita disse. Ele olhou a moça, indiferente. Conhecia aquela cara. Quem era? Leila tirou uma foto de formatura da bolsa e apontou a mãe. Almeida logo reconheceu a antiga namorada e confirmou que aquele atrás dela era ele. Encurtando a história, Leila era sua filha, sim, médica, não precisava de nada, ganhava mais do que o suficiente com a sua clínica. Ela só queria chamar alguém de pai. Chocado, Almeida fez questão dos detalhes. Leila, com voz calma e emocionada, explicou que ele tinha ido estudar na Inglaterra e a mãe não desejou criar problemas, depois que viu a foto do casamento de Almeida publicada no jornal. Eu gostaria de fazer exame de DNA, a filha insistiu. Nem precisava. Um a cara do outro. A paternidade foi confirmada. Almeida adotou a filha, que os meio-irmãos e a sua mulher preferiram ignorar. “Está vendo aqueles dois ali? Aparecem todos os meses, almoçam sempre naquela mesa. Parecem namorados, de tão felizes. Não acha?”

O ator
Virgílio assistiu à sua última cena e não gostou. O público, no entanto, aplaudiu o filme, com entusiasmo. Ele demorava a se distanciar de um personagem, mesmo fazendo esforço. E aquele estadista mexeu demais com ele. Um homem cheio de sabedoria e generosidade morrer solitário, velho e pobre daquele jeito. Uma injustiça. A vida não valia a pena.

Alguns colegas viram a depressão de Virgílio e lamentavam. O ator acreditava que ia morrer como o personagem.

– Está tudo acabado, colega. Você vai viver um padre, no próximo filme. Precisa se desligar do herói político.

Depois do padre: pedófilo condenado à morte (olhou crianças por longo tempo), assaltante preso (não ficava de costas para ninguém, assustado sempre), cientista vitorioso (erguia a cabeça, orgulhoso), retardado mental (vagava pelas ruas, alheio), poeta apaixonado.

Adivinhem. Enamorou-se perdidamente pela atriz da peça de teatro, casou, escreveu poemas, e acaba de publicar livro.

No próximo ano, ele vai encarnar um assassino.

Obstinação
Evaristo tentou o suicídio pela primeira vez aos vinte anos, tomando muitos comprimidos para dormir. Aos trinta, pulou de um viaduto. Casou, teve filhos. Aos quarenta, fechou os olhos e atravessou uma avenida. Aos cinquenta e cinco, nasceu o primeiro neto. Parecia ter descoberto a vida, finalmente. Aos setenta, se atirou de um edifício de doze andares.

Conseguiu.


Edla van Steen é autora de 27 títulos, entre contos, romances, peças de teatro, livros de arte, entrevistas, traduções e infanto-juvenis. Tem quatro livros publicados nos Estados Unidos e dirige oito coleções literárias na Global Editora. Mora 15 dias em São Paulo e 15 no Rio de Janeiro.

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