Um trabalhador braçal

Uma das imagens pioneiras de Prokúdin-Górskii que fazem parte da edição com todas as narrativas breves do autor de Guerra e Paz. Foto: Divulgação/Cosac Naify
Uma das imagens pioneiras de Prokúdin-Górskii que fazem parte da edição com todas as narrativas breves do autor de Guerra e Paz. Foto: Divulgação/Cosac Naify

Quem ouve o carioca Rubens Figueiredo, de 58 anos, não imagina que ele é o maior tradutor de Tolstói do País e um dos melhores escritores brasileiros das últimas décadas. Sua simplicidade e bom humor destoam da figura típica do intelectual bem-sucedido e admirado. Já ganhou dois Jabuti e traduziu dezenas de obras-primas, do russo e do inglês, mas seus olhos brilham mesmo quando fala dos alunos que teve ao longo de 26 anos em Cidade de Deus, ou dos catadores de cana que encontrou numa cidadezinha a que foi para uma palestra, recentemente. Com passagem breve pela Polop (Organização Revolucionária Marxista Política Operária) em tempos de resistência, define-se como “irremediavelmente de esquerda, mais do que nunca”, e encara seu trabalho como uma tarefa braçal. Sem sombra de falsa modéstia, não parece ver um mérito especial no que faz, ainda que tenha enorme prazer no ofício. Simpático e sorridente, dá a impressão de leveza, de quem não deve nada a ninguém e nunca teve o rabo preso. É assim que desmonta mitos como Susan Sontag e George Steiner, ou ataca os vícios do capitalismo. Com a mesma naturalidade, fala de sua admiração incondicional pela literatura russa do século 19, Tolstói em especial. Passou os últimos anos traduzindo o velho Conde, dos romances Anna Kariênina, Ressurreição e Guerra e Paz a esses contos completos, reunidos agora pela primeira vez, numa edição em três volumes. Aposentado das longas viagens de ônibus para a periferia, hoje dá palestras em cidades pequenas Brasil afora, além de cursos de escrita e tradução, como o que ministra na Estação das Letras, no Rio. É também jurado do Prêmio São Paulo de Literatura, do qual saiu vencedor em 2011, com seu último romance, O Passageiro do Fim do Dia.

Brasileiros – Conta um pouco da sua experiência profissional.
Rubens Figueiredo
– Eu fui professor da rede estadual durante 30 anos, 26 deles na Cidade de Deus, à noite. É um bairro com o índice de pobreza mais baixo que tem no Brasil. À medida que ia conversando com meus alunos, ficava sabendo que moravam em casebres com chão de terra, sem banheiro. Foi um choque. Por mais que eu tivesse como estudante alguma leitura a respeito dessa questão da desigualdade, o contato com os fatos é muito diferente. Uma coisa é o discurso, a teoria, outra é a vivência. Eu era professor de português, mas logo percebi que tinha outras coisas mais importantes do que ensinar gramática. Eu tinha que dar um jeito de fazer aquelas pessoas acreditarem que não podiam ser tão maltratadas, que tinham que ser respeitadas.

E você parou por quê?
Eu pegava dois ônibus para ir, dois para voltar. Eu moro em Copacabana e esse bairro fica em Jacarepaguá. No início, eu demorava uma hora e quinze para ir, era tranquilo. Na volta, o ônibus ia mais rápido. Você tinha que ver, eu pegava o famoso 175 para voltar, era o chamado voador. Nunca teve acidente, os caras eram os maiores pilotos do mundo. Mas a Barra da Tijuca, que fica no meio do meu caminho, foi o bairro de expansão mais intenso nos últimos anos. O trânsito ficou horrível, o tempo para ir passou para duas horas e meia, às vezes mais, e eu não chegava no horário. Estava se tornando uma coisa inviável. Observe que ficar 26 anos no mesmo colégio é raríssimo para um professor. Mas eu gostava muito de lá.

Qual foi o maior aprendizado nesse período?
Saber identificar os meus preconceitos. E aprender que os preconceitos não são uma questão de caráter, nem de educação, nem de cultura, é uma determinação objetiva do dia a dia. Você acorda de manhã e aquele aparato que se interpõe entre você e os outros volta. É assim que a sociedade capitalista se reproduz, bloqueando a nossa consciência. Você tem que realmente viver na pele dos outros, é a única forma. Tudo que se fizer para ajudar é interessante. Porque tudo o que se fizer pode se perder facilmente: a resistência é muito grande. O medo de quem tem de perder o que tem é o maior entrave.

É o que a gente está vendo agora…
É o que a gente está vendo. A sensação de pânico, de ameaça, a histeria, é só isso. É uma tristeza, né?

Aliás, recentemente você teve uma experiência parecida, nessas palestras que vem dando….
Foi no ano passado, num lugar que só tinha cortador de cana e a biblioteca era no velório municipal. Foi um negócio memorável, porque só eles tinham história para contar, eu que perguntava para eles. Foi um espetáculo (risos).

Crítico da chatice  e pretensão de escritores famosos, Rubens já traduziu Philip Roth, Susan Sontag, Colm Tóibin e Ian McEwan, além dos clássicos russos. Foto: Daniel Benevides
Crítico da chatice e pretensão de escritores famosos, Rubens já traduziu Philip Roth, Susan Sontag, Colm Tóibin e Ian McEwan, além dos clássicos russos. Foto: Daniel Benevides

Você ainda se considera um homem de esquerda?
Totalmente. Absolutamente. Irremediavelmente, mais do que nunca. Um dia foi um repórter lá em casa, faz uns anos, falando que não existe mais esquerda e direita. Eu disse: você está fazendo um discurso de direita (risos). E ele achando que estava fazendo uma coisa bacana, mas estava apenas reproduzindo o mesmo esquema sem se dar conta disso. As coisas que têm efeito mais profundo são ações realizadas de maneira inconsciente. Não é o inconsciente psicanalítico, é o inconsciente social. As pessoas veem um trabalhador como um mero instrumento, não como gente. Não imaginam que, se ele torcer o pé, vai doer tanto quanto doeria na minha mãe ou na sua. É simples assim.

Nesse sentido, você acha que a literatura pode ter um papel social?
Acho que é mais profundo que isso. Essa sociedade em que a gente vive está cada vez mais fechada em seus próprios fins, que são produzir riquezas para concentrar e acumular riquezas. É uma sociedade irracional, nenhuma vida humana pode se apoiar nesse princípio. Para que isso sobreviva, é preciso não enxergar muita coisa, é preciso que a gente seja cegada cotidianamente, que o nosso pensamento seja neutralizado, e o mecanismo de realizar isso está em toda parte, está ali na televisão, está na arquitetura deste hotel, em tudo. A questão da literatura não é ter um papel social, mas oferecer a experiência de questionar um pouco esses mecanismos e mostrar que eles podem ser desfeitos. Considerando que a gente está se transformando em máquina, ela tem o papel de humanização. Ela ganha muito se for uma forma de conhecer a maneira como a gente vive.

Uma das pessoas que você traduziu, a Susan Sontag, tem uma frase parecida. Ela diz que os livros são uma forma de nos humanizar.
Deveriam. Mas é uma frase inocente, porque o livro cada vez mais é uma mercadoria igual às outras, e hoje é feita, na verdade, mais para nos desumanizar. Se você conseguir colocar no livro alguma coisa questionadora, aí sim, mas o livro em si…

Mas é assim que você vê a literatura contemporânea?
Não, mas o que ela está defendendo? Não é a humanização, mas o seu negócio do livro. É muito frágil o pensamento dela. Imagine uma pessoa extremamente vaidosa, que acha que é uma estrela, que tudo é imortal. Isso é um monte de bobagem, tem artigos dela que são ridículos, insustentáveis. Mas é uma pessoa muito famosa, eu fui apenas um tradutor.  Por que o Tolstói era tão ácido quando ele se referia à literatura? É porque ele tinha perfeita consciência de que a literatura era instrumento de afirmação de supremacia de uma classe sobre as outras, era isso. Ainda é, só que mais ambíguo, porque é um produto de massa. O Tolstói compreendeu essas coisas com muita profundidade, ele se dedicava a isso, e o resultado foi muito proveitoso.

Dois de seus livros foram premiados com o Jabuti: "Barco a Seco", de 2002, e "As Palavras Secretas",  de 1998, publicados pela Companhia das Letras. Foto: Reprodução
Dois de seus livros foram premiados com o Jabuti: “Barco a Seco”, de 2002, e “As Palavras Secretas”,
de 1998, publicados pela Companhia das Letras. Foto: Reprodução

Proveitoso inclusive para o leitor contemporâneo?
Totalmente, absolutamente. Acho difícil encontrar alguma coisa mais contemporânea.

Em que sentido?
Quais são os assuntos de fundo do Tolstói? É a desigualdade de classes, de grupos sociais e a desigualdade de gênero, que ele teve dificuldade de alcançar de modo consciente, mas que aparece bem em sua ficção. E a relação entre os países, que nele é muito interessante: a maneira como parte da elite russa se manifesta em seus livros a respeito da cultura europeia rica, seja inglesa, seja alemã ou francesa, é muito parecida com a que a elite brasileira se manifesta em relação à dos Estados Unidos, e isso não é uma coincidência, é um processo histórico comum. Se no século 19 a Rússia viveu um processo de urbanização aceleradíssimo, brutal, traumático, o Brasil e a América Latina passaram por processo muito semelhante no século 20. Nos dois casos houve uma introdução rápida das relações capitalistas e a urbanização é um sinal desse processo. Tolstói trata muito do choque do campo com a cidade, dessa visão preconceituosa de que a cultura agrária é atrasada, retrógrada, ignorante, e a cultura da cidade avançada, progressista. Ele tinha, desde cedo, um repúdio pela cidade em si e optou claramente pela vida agrária. Desde a década de 1860, ele já tinha planos de escrever contos inspirados nas formas folclóricas de narração. Isso não era exotismo, mas a busca de uma forma alternativa para aquilo que era tido como a literatura decente, digna, que era a narração europeia.

Havia outros autores russos com essa postura?
Houve um movimento intelectual de grande alcance na Rússia para pesquisar a cultura do povo, que era desconhecida. A massa camponesa a partir da década de 1850, 1860, estava abandonada não só em termos materiais, mas em termos culturais. O saber daquele povo estava perdido, até mesmo a geografia do país não era conhecida. Grandes pesquisadores trabalhavam por iniciativa própria, inclusive eram perseguidos politicamente, porque aquilo era visto pelas autoridades, e com razão, como uma forma de crítica ao Estado, à dominação da elite, que eram os senhores de terra e os novos capitalistas, senhores da rede de comércio, de indústrias. Vários dos contos de Tolstói foram baseados em antologias publicadas por esses pesquisadores. Ou seja, a literatura russa do século 19 teve como eixo a preocupação com o povo, a despeito da posição política do escritor. Fiquei muito impressionado quando uma pessoa da universidade falou “ah, porque o Tolstói e aqueles personagens aristocráticos e tal”. Mas do que essa pessoa está falando? Quer dizer, ela não leu. Porque mesmo quando há um aristocrata nos livros do Tolstói, e eles estão presentes, o cara está em contato com o povo, é esse contraste que ele elabora.

Em 1908, aos 80 anos, dois antes de morrer, Tolstói posa para Sergei Prokudin-Gorskii na sua propriedade, Iásnaia Poliana. É o único retrato em cores do autor russo. Foto: Reprodução
Em 1908, aos 80 anos, dois antes de morrer, Tolstói posa para Sergei Prokudin-Gorskii na sua propriedade, Iásnaia Poliana. É o único retrato em cores do autor russo. Foto: Reprodução


O Liev, do
Anna Kariênina , é um exemplo famoso
É um caso. O Nekhlyudov, no Ressureição, tenta entregar a terra para os camponeses; no Guerra e Paz os dois principais personagens também estão totalmente em contraste com a população pobre. O peso das pessoas tidas como inferiores ou atrasadas na narrativa dele é equivalente ao dos outros, não são personagens de fundo ou decorativos, falam com a mesma autoridade de um rico. O interesse dele pela desigualdade vem desde a infância. Ele nasceu no final da década de 1820, no tempo da servidão, que é uma espécie de escravidão, e viveu numa propriedade rural. Assim que ele herdou a propriedade, ainda jovem, tentou dividi-la. Nunca conseguiu, por resistência da família, dos vizinhos, de todo mundo. Até dos próprios camponeses, que não confiavam no patrão; pensavam: “Isso deve ser uma armadilha”, como está retratado no Ressurreição. Uma das coisas que despertavam sua curiosidade era a linguagem popular. Há relatos de que o Tolstói se escondia atrás de arbustos nos caminhos da fazenda para ouvir as conversas dos camponeses (risos) e anotava os ditos, as frases e palavras curiosas. E quando a conversa estava muito quente, ele saía do arbusto e continuava falando com os caras para pegar mais dados. Esse mundo intelectual dos camponeses era um mistério para ele, estava ali soterrado por aquela camada de opressão, de humilhação. E o Tolstói via aquilo como um tesouro, uma coisa valiosíssima. É com esse material que ele escreveu muitos contos. É uma pesquisa de etnógrafo.

Você traduziu quase todos os grandes escritores russos, menos o Dostoiévski. Por quê?
O Brasil tem um grupo muito especializado e competente que está traduzindo o Dostoiévski, então eu acho que não convém. Mas é um autor que eu admiro bastante, só que é outra vertente. Se o Tolstói fez aquela opção pelo campo, o Dostoiévski fez a opção urbana e a cidade dele é um pesadelo contínuo. Não quer dizer que ele tomou o partido do progresso capitalista, pelo contrário. Ele escrevia sobre a cidade como uma agressão à tradição religiosa, cultural. Você vê que os dois responderam de maneiras diferentes ao mesmo processo, vivido de forma traumática pela sociedade russa. Na sua biografia, Joseph Frank chama o Dostoiévski de democrata, liberal e moderado contra todas as evidências que o próprio livro que ele escreveu apresenta. E tem um livro horrível (Tolstói ou Dostoiévski: um Ensaio sobre o Velho Criticismo) do George Steiner, aquele crítico medonho, vergonhoso, que mostra o Dostoiévski como representante da liberdade, da democracia, do progresso e o Tolstói como retrógrado, tudo porque a União Soviética fez o movimento contrário, ou seja, prestigiava o Tolstói e desconfiava do Dostoiévski – com certa razão. Ele chega a dizer que o Tolstói é o grande inquisidor no livro do Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov). Isso é George Steiner, considerado um grande crítico internacional, mas que é um picareta, um farsante. Como é que pode dizer uma barbaridade dessa? É uma vergonha, mas o pessoal engole. O que importa é que a diferença que há entre esses dois escritores tem como ponto de convergência a realidade russa e o povo russo. Eram tentativas muito sinceras, muito vívidas de encontrar não uma solução, mas de equacionar o problema do país, que era dramático. E eles estavam realmente envolvidos com isso.

Criterioso ao extremo, Rubens reescreveu "O Livro dos Lobos" 15 anos depois de lançado. Com sua crítica ao “darwinismo oportunista”, "O Passageiro do Fim do Dia" também passou por muitas mudanças ao longo da escrita. Foto: Reprodução
Criterioso ao extremo, Rubens reescreveu “O Livro dos Lobos”
15 anos depois de lançado. Com sua crítica ao “darwinismo oportunista”, “O Passageiro do Fim do Dia” também passou por muitas mudanças ao longo da escrita. Foto: Reprodução

Muitos dos contos que estão nessa edição já haviam sido lançados em português. Por que retraduzir?
Acho que quanto mais traduções melhor. A tradução é uma experiência interessante porque nos dá a oportunidade de pôr em questão a ideia do caráter definitivo de uma obra, de um conto. Nada é eterno, o que importa  é que o livro nos diga alguma coisa no momento em que a gente está vivendo. Toda vez que alguém se propõe a fazer uma edição crítica de um livro encontra dúvidas, variantes, soluções. E a tradução é uma oportunidade de entender de modo mais dinâmico um livro, é uma experiência, um movimento. Também é uma oportunidade de manter vivas obras que tendem a desaparecer, porque as línguas envelhecem. Há pouco tempo dois caras ingleses me surpreenderam falando: “Eu não consigo entender nada do Shakespeare”. Aí eu pensei: isso porque eles não leem traduções! Isso significa que a língua daquele autor de 400 anos está se tornando incomunicável para os falantes do inglês, mas aquele livro traduzido ganha uma vida nova para os leitores estrangeiros. É uma dimensão da tradução que é pouco observada.

O último livro que você escreveu, Passageiro do Fim do Dia,  é de 2010. Vem coisa nova?
Estou pensando. Não chega a ser um projeto, tem uma intenção ainda difusa de um assunto, um problema. O Tchekhóv dizia que não se devia esperar do escritor soluções, mas um problema bem formulado. Isso eu li na faculdade de letras ainda, era novinho, estudando russo, eu achei tão bem bolado! Porque o problema é uma coisa dinâmica, viva, não tem fim, ele se renova conforme as circunstâncias. Escrevi algumas coisinhas. Se um dia eu escrever está escrito. Se não, eu não escrevi (risos).

Como você vê hoje seus primeiros livros, O Mistério da Samambaia Bailarina, Essa Maldita Farinha e A Festa do Milênio?
São meio esquisitos, têm umas gracinhas de linguagem, são romances humorísticos, cômicos, de mistério, ação, mas paródicos, meio avacalhados. Escrevi entre os 20 e 30 anos. Não gosto deles e não tenho interesse em preservá-los. Cheguei a olhar e pensar em refazer, mas não consegui.

No entanto, você refez os contos de O Livro dos Lobos, que é seu quarto livro.
Aí merecia porque tinha coisas que podiam ser melhoradas e acho que consegui. Gosto também desses dois romances (Barco a Seco e Passageiro do Fim do Dia).Eles têm suas limitações, mas mesmo assim eu gosto.

Na década de 1920,  Prokúdin-Górskii viajou pela Rússia para captar imagens como esta, com sua técnica pioneira de superposição de três chapas de vidro com as cores primárias. Foto: Reprodução
Na década de 1920, Prokúdin-Górskii viajou pela Rússia para captar imagens como esta, com sua técnica pioneira de superposição de três chapas de vidro com as cores primárias. Foto: Reprodução

Como se vê como escritor em meio à produção nacional?
Fico muito perdido, mas sem dúvida as pessoas estão escrevendo, e nunca se leu tanto no Brasil, inclusive autores brasileiros. Mas acompanho pouco. Estou na fase de escolher bem o que eu leio e leio com mais concentração. Há poucos dias  li um texto chamado Relações Humanas, no livro Pequenas Virtudes, da Natalia Ginzburg. Ela descreve a vida de uma mulher, mas usa o pronome nós no plural e o gênero masculino. Só isso é um achado gigante! “Nós estamos cansados” (risos). É um texto de ficar besta, que coisa! É um conto? Não sei. É uma memória? Não sei. É um ensaio? Não sei. Não interessa. O que os escritores russos faziam também era inclassificável, não é? Se é um livro, se é um romance, não importa. O que importa é o que você está dizendo, isso tem que estar antes de tudo.

Tirando os russos (que incluem ainda Tchekhóv, Górki, Gontcharóv, Gógol e Turguêniev), teve alguma tradução de que gostou especialmente?
O que eu achei mais interessante foi um contista americano chamado Raymond Carver, que inclusive traduzi duas vezes (risos). Adoro meu trabalho, gosto muito de dar aula, gosto muito de traduzir. Mesmo que o livro seja uma porcaria, é um trabalho bonito ficar compondo as palavras. Mas não foi escolha minha nenhum livro que eu traduzi, só os russos. Sou um trabalhador braçal, intelectual também. Faço uma coisa digna, mas tenho posição modesta, sem essa participação de selecionar. Para isso existem os editores, o que não diminui o meu trabalho.

Você também acha que a tradução é uma criação?
Sim, mas é mais justo dizer o contrário, porque quando você diz que traduzir é igual escrever parece que você está querendo elevar o trabalho de tradução, e não é isso. Quando escreve, você está traduzindo coisas que estão em formas anteriores à linguagem verbal, são outras linguagens, a linguagem da emoção, das imagens, da memória. Isso é tradução, a palavra criação não me inspira nenhuma confiança.  Claro, tenho mais autonomia na ficção do que na tradução de um livro pronto, mas a natureza é a mesma, não dá para dizer que um é superior ao outro.

Foto: Reprodução
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