Cinema como espelho, segundo Anna Muylaert

A cineasta paulistana Anna Muylaert, roteirista e diretora do celebrado "Que Horas Ela Volta" (foto: Gleeson Paulino)
A cineasta paulistana Anna Muylaert, roteirista e diretora do celebrado Que Horas Ela Volta? (foto: Gleeson Paulino)

Desde 27 de agosto, quando entrou em cartaz nos cinemas de diversas capitais do País, o longa-metragem Que Horas Ela Volta? tem motivado discussões inflamadas sobre questões seculares que permeiam as relações sociais no Brasil. Protagonizado pela atriz e apresentadora Regina Casé, o drama já foi visto por mais de 450 mil espectadores e recebeu indicação do Ministério da Cultura para representar o Brasil na pré-seleção da categoria Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2016.

Produzido a partir de roteiro original escrito por Anna Muylaert ao longo das últimas duas décadas, e também dirigido pela cineasta paulistana, o filme foi lançado fora do País no primeiro semestre de 2015, e arrebatou público e júri dos renomados festivais de Sundance (EUA) e Berlim (Alemanha).

Que Horas Ela Volta? narra a história do reencontro entre Val (Regina Casé) e sua filha, Jéssica (Camila Márdila), depois de 13 anos de distância. Tempo em que Val dedicou-se integralmente – primeiro como babá; depois como empregada doméstica – a rotina do menino Fabinho (Michel Joelsas) e de seus pais, José Carlos (Lourenço Mutarelli) e Bárbara (Karine Teles).

Com a chegada inesperada de Jéssica, que reside em Pernambuco, Estado de origem de Val, à mansão da família, no bairro do Morumbi, em São Paulo, cai por terra o convívio aparentemente harmonioso que havia entre Val e seus patrões. Jéssica vai a São Paulo para prestar vestibular de Arquitetura na FAU (a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). Cidadã, altiva e “sem saber colocar-se em seu lugar”, a adolescente torna visível estatutos sociais, discricionários e velados, denunciados desde a primeira versão de Casa-Grande & Senzala, clássico maior do sociólogo Gilberto Freyre, publicado em 1933.

“Um País diante do espelho”. Não por acaso, essa é a manchete da edição de outubro de Brasileiros, que traz como personagem de capa a diretora Anna Muylaert. Em reportagem extensa e esclarecedora, Anna revela a gênese de Que Horas Ela Volta?, fala sobre a repercussão do filme no Brasil, as questões sociopolíticas que há por trás dele e os significados que atribui às discussões provocadas por seu longa-metragem. A cineasta também relembra sua trajetória profissional e discute questões periféricas, mas caras ao filme, como o protagonismo feminino.

A rica conversa com Anna Muylaert, realizada no início de setembro, motivou nossa redação a elaborar uma série de reportagens sobre o cinema brasileiro. A ideia resultou em um pacote imperdível para os amantes da sétima arte. Além de Anna, formamos uma mesa-redonda virtual, com sete repórteres de Brasileiros, para entrevistar Fernando Meirelles, de Cidade de Deus, José Padilha, de Tropa de Elite, e Walter Salles, de Central do Brasil.

Preparamos também um balanço sobre os 20 anos da chamada “Retomada do Cinema Brasileiro”, movimentação iniciada em 1995, com o filme Carlota Joaquina, Rainha do Brasil, de Carla Camuratti. O especial sobre cinema também traz uma análise das novas plataformas de consumo audiovisual pela internet – por meio de tablets, notebooks e smartphones – e a migração de público das salas de cinema para canais de difusão virtual como o Youtube e o Netflix.

Leia a seguir alguns dos depoimentos publicados na reportagem com Anna Muylaert. Na íntegra, de oito páginas, você encontra muito mais. Garanta sua edição!

A vida em um “hotel”
Cresci na casa dos meus pais convivendo o tempo todo com empregadas. Quando saí de lá, aos 20 anos, não tirava o lixo do quarto, não sabia arrumar a própria cama. Era completamente dependente. Foi então que percebi que estava afogando em minha própria sujeira. Questões como essa, a inutilidade de grande parte da elite, que vive como se estivesse em um hotel, estão em Que Horas Ela Volta?.

Conquista da altivez
A mulher tem enorme dificuldade de subir no palco, ao contrário do homem, que faz isso a qualquer momento, porque sempre foi condicionado a se sentir pronto para receber os louros do trabalho. Demorei muito para conseguir fazer o mesmo. Tive de ter muita certeza de quem sou. Não fosse o fato de ter tido filhos, acho que jamais teria chegado a essa postura. Ser mãe coloca a mulher em um lugar diferente. No meu caso, fez com que eu sentisse uma força enorme e também percebesse como o ego desmedido pode ser algo muito feio. Começar a trabalhar nas minhas coisas também foi algo que me deu muita força. Somente depois que fiz o Durval Discos é que meu nome começou a aparecer, mas eu já era responsável por muitos sucessos entre os vários trabalhos que eu havia feito para a TV (Anna fez parte dos núcleos de criação de dois programas infanto-juvenis da TV Cultura que foram campeões de audiência, No Mundo da Lua e Castelo Rá-Tim-Bum). Fiz muita análise e fui aceitando cada vez menos esse tipo de situação. Hoje, não fecho trabalhos sem crédito e dinheiro justo.

Nação ou shopping center?
No Brasil, há dez anos 22% das empregadas dormiam na casa dos patrões. Depois da PEC das Domésticas (o projeto de emenda constitucional sancionado em 2013, que estabeleceu direitos trabalhistas aos empregados domésticos), não chegam a 2%. A patroa e o patrão estão batendo panela?! Pode ser que batam por mais um ano, mas uma hora eles entenderão que não tem mais volta. O sucesso do filme e o fato de ele emocionar pessoas de diferentes classes sociais demonstra que sua mensagem está acima de qualquer questão partidária. A elite brasileira tem de reavaliar algumas regras legadas por Portugal, como o gosto pelo ócio em vez do negócio (tese defendida pelo historiador Sergio Buarque de Holanda no clássico Raízes do Brasil, de 1936), parar com essa preguiça, sair da rede e somar forças para, juntos, construirmos uma nação de verdade e não um shopping center para menos de dez por cento de privilegiados. Nossos problemas ainda são enormes, como, por exemplo, a questão da educação, que evoluiu muito pouco, mas houve, nos últimos anos, uma série de mudanças no sentido de o Estado tratar os brasileiros um pouco mais como filhos.

OSCAR
Não tenho grande expectativa. O filme faz uma linda carreira internacional e, como fomos os escolhidos do Brasil a representar o País no Oscar, faremos agora o trabalho necessário para tentar uma nominação entre os cinco. Mas ainda é cedo para criar expectativas. Meu maior objetivo hoje é fazer o filme chegar a mais pessoas no Brasil porque aqui, além de ser um filme, ele é um espelho. Meu maior objetivo é que ele chegue ao público e gere debates.

LEIA MAIS
Na edição de agosto, abordamos o filme, em primeira-mão, na reportagem Divisas Sociais, que incluí entrevistas com Anna e Regina Casé. Leia.

VEJA O TRAILER DE QUE HORAS ELA VOLTA?


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